Histórias de Vida – Zinho Caga Ovo
Zinho Caga Ovo, candidato a vereador em Amélia Rodrigues/BA
João, como tantos outros brasileiros, nascera numa casa humilde na zona rural baiana. Sua estatura diminuta, mesmo para os padrões locais, estabeleceu a alcunha de Joãozinho desde a infância. Caçula sobrevivente de oito, Joãozinho seguiu o rumo dos irmãos e irmãs trabalhando na roça, sem acesso a estudo além de uma pequena escola fundamental.
Mãos calejadas e pele castigada pelo sol, Joãozinho era daquelas pessoas que pareciam ter 40 anos de idade lá pelos 20. Trabalhava duro na plantação da família até que uma seca prolongada finalmente matou a terra. Nada crescia. Os irmãos mais velhos já haviam se mandado para Feira de Santana, trabalhando em empregos braçais, mal se sustentando.
A exceção era Leonardo, o segundo mais velho, e na opinião do pai, a ovelha negra da família. Sabe-se lá como conseguia dinheiro para mandar todos os meses para a casa onde cresceu, mas o patriarca desconfiava que coisa boa não era, afinal, passara dois anos preso por porte de drogas. Joãozinho e a mãe aceitavam a ajuda, fingindo que era o sucesso das negociações do caçula no mercado regional que mantinham o pouco de recursos que ainda tinham.
Quando uma tuberculose levou o pai, Joãozinho e a mãe decidiram entregar a terra para o vizinho por uma mixaria e se estabelecerem próximos da cidade grande. Amélia Rodrigues foi a escolha, pelo preço mais em conta da terra. Dessa forma, ficavam mais próximos dos outros irmãos, o que liberava Joãozinho para buscar uma profissão.
Com a única experiência sendo no trabalho de roça, tentou ajuda de outros irmãos, mas não tinha habilidade para muito mais. Durou um dia na oficina sendo ajudante, depois de acelerar um carro em direção à parede. Como vigia noturno, pediu as contas em uma semana por medo de assombração. De bico em bico, estava no limite da miséria o tempo todo.
Foi quando decidiu chamar Leonardo. O pai não aprovaria, mas os remédios da mãe custavam caro. Leonardo abraçou o caçula e revelou sua fonte de renda: trabalhava para uma facção criminosa, a qual fora convidado a entrar quando foi preso pela primeira vez. Mas segundo o irmão, não trabalhava mais com drogas, tinha se convertido e até achado uma mulher de bem para casar na igreja. Agora, ele só trabalhava ajudando os seus “irmãos” a distribuir alimentos.
Joãozinho desconfiou, mas o dinheiro falou mais alto, para ajudar o irmão em uma ou duas entregas, ganharia mais que um salário mínimo. O primeiro trabalho não poderia ser mais simples: ajudar a descarregar farinha de trigo para uma padaria local. Joãozinho, o irmão e mais dois comparsas entram numa van branca carregada de sacos de farinha de trigo e partem logo no começo da madrugada para uma cidade vizinha.
Os comparsas, Jacaré e Formiga, não demoram dois minutos para começar a chamar o mirrado Joãozinho de Zinho. Ele não gosta, o que garante que em cinco minutos até mesmo seu irmão tinha adotado o apelido. A viagem segue com piadas de baixo calão, mas num clima descontraído. Zinho pergunta por que a facção estava entregando farinha, para o riso solto dos três próximos. O irmão diz que o segredo é diversificar, e que existem negócios de verdade para fazer também.
A entrega acontece sem dificuldades, isso é, tirando a de Zinho em carregar sacas de 50 quilos da carro até o estoque da padaria. Mesmo assim, 500 reais por três horas de trabalho estava ótimo. E Leonardo disse que se ele quisesse, tinha entrega quase todo dia.
E lá foi Zinho fazer as entregas, a coisa funcionava tão bem que muitas vezes nem o irmão ia. No começo, era sempre farinha de trigo, mas com o tempo ele foi recebendo todo tipo de trabalho de carregamento, a maioria de alimentos. Foi numa dessas entregas, mais de mil ovos de codorna para um restaurante, que a vida de Zinho mudou de vez.
O trabalho começou simples, coletando os ovos numa granja especializada nos arredores da cidade. Leonardo não pode ir, mas Jacaré e Formiga estavam acompanhando. O grupo sempre recebia um extra para fazer uma refeição, e quando o irmão estava junto, usavam a verba para comer em bons restaurantes. Dessa vez, Formiga os afunilou para um bar horrível de beira de estrada, dizendo que a comida era excelente. Não era. O marmitex cheirava mal e tinha gosto pior ainda. Jacaré disse que Formiga sempre embolsava a verba do almoço quando era o dia dele de decidir.
Formiga dirigia, e como de costume, era extremamente desagradável nas suas piadas. Foram mais de 50 quilômetros de estrada esburacada e comentários sobre como os dois na traseira estavam segurando os ovos. Jacaré respondia de forma agressiva, Zinho ignorava, como de costume.
Zinho observa uma das caixas de ovos solta, ao contrário das outras amarradas por todos os lados para evitar impactos. Ele pergunta para Jacaré se não ia quebrar deixando solto assim. O homem ri, e diz que esses aí não tinha problema. O celular de Formiga toca, e ele atende enquanto dirige, fazendo a van chacoalhar no processo. Ele solta um palavrão, para acompanhar os inúmeros de Jacaré pela direção perigosa.
A van para. Formiga se vira para trás e diz que tem polícia na entrada da cidade, e que pelo o que ouviu tem viatura vindo na direção deles. Jacaré respira fundo. Formiga pede para ele abrir uma das caixas, a mesma caixa solta que Zinho tinha notado. Jacaré, sem pestanejar, pega uns cinco pacotes de ovos de codorna e vai distribuindo entre os três.
Zinho, confuso, pergunta o que estava acontecendo, que problema tinha com a polícia. Formiga diz que se ele não quiser ir para a cadeia, é para começar a engolir os ovos. Zinho titubeia, achando que era uma pegadinha dos dois, mas Jacaré começa a engolir os ovos, um por um, diante de seus olhos. Ele olha para Zinho e diz em tom agressivo para começar logo. E que não era para mastigar, só engolir.
Com um olhar para a cintura, onde Zinho sabia que tinha uma arma, Formiga deu o incentivo final para que ele começasse a engolir os ovos. Eles não eram quebradiços, na verdade, eram bem resistentes para um ovo de codorna. Engoliu uma cartela antes de começar a sentir algo estranho no estômago. Aquela marmitex estava começando a cobrar sua verdadeira conta.
O medo de represálias de seus comparsas o fez continuar. Cinco cartelas, o estômago quase explodindo. Jacaré e Formiga fizeram parecido, e em menos de meia hora a caixa estava esvaziada. Formiga, sôfrego com a barriga distendida, voltou ao volante. Andaram por mais uma hora pela estrada, já começando a enxergar as primeiras construções da cidade. Quando achavam que tinham se livrado de vez, o som da sirene da Polícia Rodoviária chamou atenção. Estavam escondidos atrás das árvores. Formiga soltou um palavrão e se dirigiu ao acostamento.
Zinho já sentia um suor frio tomando conta do corpo. Alguma coisa estava muito errada com seu sistema digestivo. Os policiais se aproximaram, armas em punho, berrando para todos saírem do veículo. Jacaré disse para Zinho que se falasse alguma coisa estaria morto, e foi o primeiro a sair com as mãos para cima.
O primeiro passo de Zinho para fora da van foi recebido com um tapa violento do policial. Em segundos estava estendido no chão, recebendo chutes e berrando por socorro. Escutava berros de todos os lados, e ainda olhando para o chão de terra vermelha, escutou uma sequência de tiros. Quando finalmente conseguiu olhar para cima, viu Formiga caído no chão, mão sobre a barriga, sangue escorrendo.
O pânico tomou conta, e algo desandou de vez em seu corpo. A calça ficou pesada, o som dos ovos, ou imitação de ovos de codorna batendo uns nos outros chamou atenção dos policiais, ainda em estado de alerta. Ele estava num misto de vergonha e alívio quando começou a ouvir as risadas dos policiais. Quando tentou virar a cabeça para o outro lado, foi impedido pela bota de um policial. Sentiu suas calças sendo baixadas, e os risos aumentaram de volume.
A cena deprimente de um homem com dezenas de ovos de codorna falsos dentro das calças misturados aos restos daquele almoço horrível foi um dos materiais mais populares nas redes sociais locais por semanas. Zinho Caga-Ovo virou celebridade na região, e depois de contar sua história várias vezes não só para os policiais como para diversos blogs e perfis locais, recebeu a clemência do poder público.
Acreditaram que ele não sabia que estava entregando drogas disfarçadas de alimentos, e que não teve escolha ao engolir os ovos. O irmão fugiu da cidade assim que viu o vídeo, e nunca mais se ouviu falar dele. Jacaré tentou usar a mesma defesa, mas uma longa ficha corrida pesou na sua prisão. Formiga passou duas semanas na UTI, e saiu de lá direto para a cadeia. Ainda está sendo julgado pelo caso dos ovos de codorna, mas era fugitivo e tinha mais dez anos para cumprir por outros crimes.
A fama de Zinho fez com que a facção criminosa o considerasse tóxico demais para se aproximar. E como ele honestamente não sabia de nada, escapou de represálias, não tinha o que denunciar. Ainda não consegue ir na esquina na sua cidade sem que alguém berre seu apelido.
Resolveu então transformar sua fama em votos. Candidato a vereador, promete ajudar os mais pobres a encontrarem oportunidades de trabalho para não caírem nas garras do crime organizado. Se a vida política não der certo, tem em vista ganhar dinheiro fazendo propaganda de um remédio laxante milagroso que uma das vizinhas da mãe começou a produzir.
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Etiquetas: contos, piores nomes de candidatos
W.O.J.
Somir deveria escrever para cinema ou TV. Descreve as situações e as pessoas muito bem. Cheguei a visualizar as coisas acontecendo enquanto lia…
UABO
Entrou no crime na cagada e saiu com outra…