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Aposta na pobreza.

Aposta na pobreza.

| Desfavor | | 14 comentários em Aposta na pobreza.

Sally e Somir concordam que é um absurdo que os beneficiários do Bolsa Família gastem o auxílio com apostas, mas entre ser contra e criar regras para proibir, existe uma grande diferença entre os dois. Os impopulares fazem suas apostas.

Tema de hoje: beneficiários do Bolsa Família deveriam ser proibidos de gastar o dinheiro que recebem do Governo em bets?

SOMIR

Não. Programa de distribuição de renda é para ser diferente de assistencialismo tradicional. Goste ou não do Bolsa Família, a ideia é dar dinheiro para as pessoas que não conseguem gerar renda sozinhas. Não dar comida, não dar remédio ou habitação… dar dinheiro. E essa diferença é essencial.

Toda sociedade tem que lidar com o problema de pelo menos uma parcela da população viver com pouco ou nenhum recurso. São muitos fatores contribuintes, desde exploração até mesmo incapacidade de algumas pessoas. Tem quem é pobre porque seus antepassados foram escravizados, tem quem é pobre porque faz escolhas terríveis seguidas vezes. Tem de tudo.

E aí, um dos caminhos é providenciar o básico para essa pessoa, na forma de objetos diretos: o governo comunista, por exemplo, define que o cidadão tem direito a dois sacos de farinha por mês e entrega isso para cada família. Tem toda uma burocracia de coletar recursos, analisar as necessidades básicas dos cidadãos, fazer a divisão igualitária e entregar. Que isso tira muita gente da fome, tira. Mas é um caminho que tira do cidadão a capacidade de gerenciar seus recursos. Alguém define por ele o que é essencial e o entrega justamente isso.

Outro caminho, esse bem mais recente na nossa história, é a entrega de dinheiro para o cidadão necessitado. A ideia é que ninguém melhor do que a pessoa para decidir o que realmente precisa. Talvez ela prefira comprar vegetais ou invés de farinha. Pode ser que ela tente comer coisas ainda mais baratas e economizar para comprar algo que julga importante. Talvez ela esteja razoavelmente bem alimentada e resolva usar esse dinheiro numa roupa mais bonita para fazer entrevista de emprego…

Distribuição de renda ao invés de comida cria várias novas possibilidades para a pessoa em situação de necessidade. E sim, algumas dessas possibilidades são péssimos usos do dinheiro. Tem gente que compra coisa totalmente supérflua com o dinheiro e deixa os filhos passarem fome no final do mês. Tem gente que entrega todo o Bolsa Família para o traficante e fica mendigando na rua. E tem gente que pega esse dinheiro e aposta.

Evidente que eu acho uma estupidez sem fim e um desrespeito com os impostos que eu pago. Mas a escolha de dar ao cidadão marginalizado a chance de decidir como usa seus recursos já foi feita. E ela não foi feita pensando que o cidadão teria que gastar seu dinheiro em comida. Porque se fosse esse o objetivo, só se você desse um vale-alimentação cheio de regras ou mesmo distribuísse o pão em filas comunistas.

Pode fazer assim? Pode. Mas… esse é o plano? Porque distribuição de renda é pensada para dar liberdade e mobilidade social para a população mais pobre. Não é só para evitar que passe fome. Tenho mil críticas ao PT, mas o modelo definido para o Bolsa Família não é uma delas. Eu já escrevi várias vezes aqui como não enxergo outro caminho senão Renda Básica Universal para lidar com a pobreza no futuro, então óbvio que sou do time “dá o dinheiro e deixa a pessoa tocar a vida dela”.

Seria melhor se tivesse uma faixa mais generosa para que a pessoa complementasse sua renda sem perder o benefício, essa linha baixa é uma armadilha de pobreza (não prospere senão você perde o básico e fica pior que estava antes). Como o brasileiro médio é bem limitado, eu até entendo a exigência de manter filho matriculado em escola, mas em tese não deveria ter isso.

Mas entre a ideia de dar “dinheiro para comida” e “dinheiro para usar”, eu percebo claramente como a segunda é mais lógica no mundo moderno. Países comunistas que deram muito errado apostaram na primeira, países focados em bem-estar social que deram muito certo foram mais para o caminho da distribuição de renda.

Não torna certo jogar no lixo dinheiro dos nossos impostos em bets e tigrinhos, mas é um preço que se paga pela estratégia de dar um pouco mais de autonomia para as pessoas. Quanto mais liberdade, maior o potencial de erros. Percebam que eu estou indo até contra o próprio PT, porque foi o Lula que começou a falar sobre bloquear o Bolsa Família para bets. Aposto (há) que nem sabiam por que o caminho da renda era mais inteligente que o da entrega de alimentos, só copiaram algo que viram em outros lugares sem entender bem o motivo.

Não muda nada. A ideia por trás do Bolsa Família ser “dinheiro grátis” ainda vale todas as besteiras que o povão fizer com ele. Porque tem muita gente que tira valor dessa liberdade para melhorar as condições da família, mesmo que aos poucos. Manter uma massa de pessoas controladas pelo Estado recebendo só o básico cria estagnação e faz com que pessoas mais esforçadas e talentosas fiquem presas nessa armadilha da pobreza. Não podem economizar, não podem investir, não podem se planejar: só vão ter comida (a que o Estado achar que eles devem comer) e mais nada.

Sem contar que cria uma casta de incapazes: se você ganha Bolsa Família, é diferente de quem não ganha por não poder apostar. Além do óbvio da criação de um mercado negro de troca de alimentos por dinheiro para apostar, ainda mexe de forma negativa com o psicológico da população. O cidadão apoiado pelo programa social vai ter que ficar se explicando como usa o seu dinheiro, sentindo-se sempre um vassalo em comparação com o resto da população.

Por isso que governos autoritários adoram dar comida e não dinheiro: porque isso deixa o povo mais limitado e dependente. Isso mexe com o psicológico do cidadão para se tornar menos independente, sentindo-se uma criança de novo. A única forma humanitária de combater desigualdades que conhecemos na atualidade é distribuição de renda em forma de dinheiro, não de comida. É cheio de problemas, como qualquer solução, mas são problemas que derivam da liberdade, não da autoridade de um Estado que infantiliza as pessoas.

Ninguém disse que seria fácil. Não é. As pessoas fazem coisas que nos deixam putos, e você nunca pode misturar o seu sentimento pessoal com os projetos de longo prazo de um Estado. Deixa as antas apostarem, é melhor que elas tenham esse direito do que a alternativa de manter o povo estagnado indefinidamente.

Para dizer que eu sou um idealista, para dizer que se seu cachorro for livre vai cagar na casa toda, ou mesmo para dizer que tem que deixar a natureza cuidar: comente.

SALLY

Beneficiários do bolsa-família deveriam ser proibidos de gastar o dinheiro que recebem do Governo em bets?

Sim. Não é bastante óbvio que se alguém recebe o dinheiro dos outros (no caso, do contribuinte) para suprir necessidades básicas de subsistência as quais a pessoa não tem condições de arcar, esse dinheiro tem que ser destinado única e exclusivamente a isso?

Quem já trabalhou no serviço público conhece bem a regra: com seu dinheiro você faz o que quiser, com o dinheiro dos outros você dá a destinação para a qual ele foi pensado, caso contrário será punido por isso. Quer gastar tudo que tem em apostas? Maravilha, trabalha e ganha o seu dinheiro. Com o meu dinheiro não.

“Ain mas a liberdade…”. Sabe quem tem liberdade? Quem trabalha e ganha o seu dinheiro. Com dinheiro do contribuinte, ninguém tem liberdade, nem mesmo o Governo. Não é possível que vocês não achem um absurdo que tomem o seu dinheiro em impostos para que o povo jogue tudo fora em bets.

Caso você não saiba, já existem restrições sobre gastar dinheiro dado pelo Governo. Um exemplo é a Lei 7294, que, abro aspas, proíbe o uso de dinheiro assistencial de um auxílio específico do Governo “para aquisição de bebida alcóolica, cigarro ou qualquer outro produto que não tenha natureza estritamente alimentar, sob pena de perda do benefício para os beneficiários e de descredenciamento para os estabelecimentos.”

Memso o Bolsa Família tem uma destinação específica: além de alimentação, busca promover saúde, educação e assistência social. Nada disso se encontra no jogo do tigrinho, então, me parece extremamente burro e redundante argumentar que não tem lei específica proibindo pode fazer (nem existia jogo online quando o benefício foi criado). Vai de encontro com o objetivo da lei? Não pode.

A restrição na autonomia dos gastos já existe, inclusive tem lei falando especificamente dela: tem que usar para o fim a que se destina. Não cabe falar em liberdade quando usamos o dinheiro dos outros. É para comida? É para comida. É para saúde e educação? É para saúde e educação. Quer apostar? Ganhe o seu dinheiro e aposte.

“Ain mas então proíbe para todo mundo”. Amigão, eu não sei em qual mundo você vive que lhe parece justo equiparar a pessoa que acorda às 4 da manhã, pega 3 ônibus e trabalha igual um filho da puta a um beneficiário do bolsa família. Não é sensato que tenham os mesmos direitos, as mesmas liberdades, o mesmo poder de escolha com o dinheiro que recebem.

Eu até acho que tem que proibir para todo mundo por causa da bolha de endividamento que se está criando, que pode quebrar o país, mas sabemos que não vai acontecer pois o lobby está forte. Então, o mínimo que eu espero é que quem pega o dinheiro do contribuinte para comprar comida compre comida, inclusive pelo fato de que em quase 100% das vezes tem criança sentindo fome, afinal, se tem uma coisa que o pobre brazuca sabe fazer é filho.

Não é apenas sobre o desaforo de pagar para os outros apostarem em um país no qual tem hospital e escola caindo aos pedaços. É bem além. Se a pessoa perde o dinheiro que seria destinado para necessidades básicas (e vai perder, pois em bet o apostador sempre perde), essas necessidades básicas não desaparecem, elas continuam ali e precisam ser atendidas – inclusive de inocentes que nada tem a ver com essas bets.

A pessoa tem que comer. A família da pessoa tem que comer. A pessoa perdeu tudo em bet. Faça as contas e chegue à mesma conclusão que as últimas pesquisas sobre isso: para começo de conversa, a criminalidade vai aumentar. Em nome da “liberdade” você está disposto a cagar mais ainda a segurança pública? Para que beneficiário possa jogar no tigrinho você majoraria as chances do seu filho ser assaltado? Porque é justamente isso o que está acontecendo.

“Ain mas a liberdade…”. Não. Pais não tem a liberdade de comprometer necessidades básicas dos filhos com jogatina, nem mesmo se forem ricos e estiverem usando seu dinheiro fruto do seu trabalho. Há proibição legal para isso. Por qual motivo o pobre tem direito a essa liberdade? Tem que proteger essas crianças filhas de viciados em jogo que ficam sem comida na mesa. Não é possível que uma pessoa com mais de dois neurônios não veja isso. Não tem como fiscalizar se os pais estão dando comida para os filhos, a única forma de proteger é impedir quem não tem dinheiro para comer de gastar em aposta.

Além disso estamos falando de uma questão de saúde mental. Uma pessoa que gasta o dinheiro destinado a comida em apostas é uma pessoa viciada que precisa ser protegida dela mesma, independente dos filhos. Liberdade é o caralho. Ninguém dá liberdade para viciado fazer péssimas escolhas que colocam a sobrevivência dele em risco e a de sua família. A lei tem muitos mecanismos para impedir que isso aconteça. E não é sobre tolher a liberdade, é sobre proteção.

Vê se alguém vai permitir usar dinheiro do bolsa família para comprar drogas. Alguém vai ser a favor disso? Não, claro que não. Por qual motivo pode ser usado por viciados em apostas? Só pelo fato da lei não criminalizar apostas? Meu amigo, que argumento raso. Essa ginástica argumentativa deixa criança vulnerável sem comida na mesa, tenha vergonha.

Além de tudo seria bem contraproducente do ponto de vista pedagógico dar essa liberdade para um dinheiro bancado pelos outros. Se está dizendo que tanto faz trabalhar ou não, você vai receber dinheiro para gastar no que quiser. Não, não é lenda, mais de uma vez tive funcionário que pediu demissão para viver de auxílio governamental. É uma mensagem muito errada que se passa.

“Ain mas o pobre vai ser tratado diferente?”. Em qual país você vive, meu anjo? Todo o ordenamento jurídico brasileiro trata de forma diferente quem é mais vulnerável, inclusive intelectualmente. Todo. O tratamento diferente já existe e inclusive é um dos pilares: equidade. Tratar desigualmente os desiguais na medida da sua desigualdade. Se aplica em todas as áreas do direito. O pobre (assim como muitos outros grupos vulneráveis) já são tratados diferente.

Eu sei que qualquer pessoa de qualquer classe social pode ficar viciada em apostas, mas vocês hão de concordar comigo que quando mais deficitária a educação, mais vulnerável a pessoa fica. E essas pessoas precisam de proteção. As famílias dessas pessoas precisam de proteção. Não dá para você deixar pessoas completamente despreparadas e desamparadas se autorregularem. É sacanagem. É crueldade travestida de liberdade. Eu concordo com todos os argumentos do Somir em tese, porém a realidade do Brasil obriga a dar essa proteção.

Parem de tratar o brasileiro como uma pessoa razoável, um mês sem “Ei, Você” já os fez esquecer da realidade? Quando sair o primeiro “Ei, Você” sobre apostas vocês vão chorar na pia de torneira aberta. Parem de olhar a coisa pelo ponto de vista do indivíduo, pois as bets fazem estrago no coletivo, um estrago que inclusive vai chegar em você e na sua família.

Pagar para quem não trabalha gastar o dinheiro do almoço dos filhos com aposta é um dos maiores absurdos aos quais já tive que me opor nos 15 anos desta coluna. Eu sinceramente não sei em qual país vocês acham que vivem. Eu não sei em qual universo isso é normal. Dinheiro pago pelo contribuinte tem que ter restrições sim, caso contrário o impacto negativo será sentido por toda a sociedade. Quem quer gastar o dinheiro sem restrições que trabalhe por ele.

Para dizer que acha que dá para dar liberdade sem que isso impacte você e sua família (não dá), para dizer que o brasileiro vai acabar se autorregulando (viciado se autorregula?) ou ainda para dizer que não é justo (justo é pegarem seu dinheiro para bancar aposta de quem não trabalha?): comente.


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