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Crises científicas.

Crise na astronomia! Crise na física quântica! Crise na antropologia! Crise na… não importa para qual lado da ciência de ponta que você comece a estudar, vai achar alguma crise, explicada por especialistas e leigos das formas mais bombásticas possíveis. A ciência em geral está em crise? Podemos confiar nela?

O telescópio James Webb fez algumas observações chocantes recentemente: encontrou galáxias de 12 bilhões de anos atrás com tamanhos incompatíveis com as previsões da evolução do universo. Grandes demais. Nossos modelos baseados nas melhores teorias físicas diziam que há tanto tempo não tinha sequer condição de criar uma galáxia tão grande. Mas o que as imagens mostraram é que elas estavam lá, muito mais desenvolvidas que o esperado.

Muitos começaram a chamar isso de crise. Já tinha um outro problema de observações não batendo com os cálculos que também era chamada de crise na astronomia, essa última versão só aumentou o drama. A física moderna parte do pressuposto que a ideia de matéria e energia escuras funcionam para explicar as grandes estruturas do universo; mas os números começam a bater mais com outra teoria, que mexe com alguns números da gravidade newtoniana para explicar a mesma coisa (MOND para os íntimos).

Para quem estuda isso profissionalmente, eu concordo que é uma crise. Será que anos e anos de esforço num campo de conhecimento vão dar com os burros n’água? Será que as observações estão corretas mesmo? Porque se estiverem erradas e o cientista for com elas, pode perder seu tempo de novo. Imagina se sai um estudo dizendo que algo que você usa todos os dias no seu trabalho pode não ser uma boa ideia? Eu ficaria em crise.

Mas entre uma crise na vanguarda da ciência e uma crise para o cidadão comum, tem muita diferença. Tanto que as coisas são tratadas de forma bem diferente: se descobrem que a forma como uma bactéria interage com uma estrutura específica de uma célula do seu corpo pode ser diferente do imaginado, não muda o fato de que o antibiótico ainda funciona para a maioria das pessoas e evita bilhões de mortes!

Descobrir que o DNA da bactéria não foi analisado corretamente é uma crise na biologia, descobrir que o antibiótico não mata a bactéria é uma crise de todo mundo. Na primeira a gente nem participa. Meio que me dói dizer isso, mas é quase como se estivéssemos vendo fofoca sobre celebridades: você pode ter quantas opiniões quiser, mas não tem participação nos acontecimentos. E por mais que eu prefira ter ao meu redor gente que busca entretenimento em “crises na ciência” do que com quem influencer A ou B fez sexo, isso me leva a repensar algumas coisas.

Eu não sei mais se eu quero que todo mundo tenha interesse genuíno em ciência. Não consigo deixar de ver uma relação entre negação científica e maior acesso ao conteúdo científico. Eu prefiro dizer agora que quero que todo mundo tenha capacidade de ter interesse genuíno em ciência. Se você começar a acompanhar as notícias sobre as pesquisas mais recentes, corre um sério risco de entender muito errado o que esse povo está realmente fazendo.

Se você tiver a mentalidade correta de que crises em campos avançados da ciência são prova de que continuamos no caminho certo, excelente. Mas se você não souber o porquê, corre o sério risco de cair em papo furado de gente que empurra pseudociência com fins lucrativos.

Porque é meio como chegar na adolescência e descobrir que seus pais não são infalíveis. Nunca foram, mas você não tinha subsídios para saber a diferença. Como a maioria dos adultos tem um mínimo de noção para separar comportamentos danosos de seguros, a criança está mais segura confiando cegamente nos pais. Mesmo em lugares como o Brasil, com crianças de corpo adulto criando outras crianças, ainda é melhor do que estar totalmente abandonado.

Conhecer mais sobre ciência é se deparar com pais falíveis. É descobrir que para muita coisa a melhor resposta que temos são bons palpites. No mundo dos adultos as pessoas continuam sem saber muito bem o que fazer, a diferença é que algumas pessoas têm mais estudo e experiência com o que estão tentando fazer, e tendem a fazer escolhas melhores que um leigo.

E mantendo a analogia, é a mesma coisa de jogar uma criança numa situação muito adulta. Ciência avançada para quem mal tem capacidade de entender um parágrafo escrito é que nem colocar seu filho de 8 anos de idade para dirigir um carro. Ele nem deveria ser exposto a essa situação, eventualmente algum vai se virar e fazer direito, mas não é o que se espera da média. Tanto que existem leis impedindo menores de 16 anos de dirigir: mesmo que alcancem os comandos do carro, é quase certeza que vão fazer besteira.

Achar que a ciência está mentindo para você porque os físicos estão confusos sobre como a gravidade funciona com o mundo quântico é o equivalente de uma criança entrar na contramão dirigindo um carro porque é o caminho mais curto. Decisões de quem não entende de verdade com o que está lidando. A criança quase sempre acha que é imortal e que as outras pessoas vão fazer o que ela quer, o ignorante científico quase sempre acha que é capaz de resolver todos os problemas técnicos dos campos de estudo humano usando apenas dedução básica.

Tirar a conclusão que existe uma conspiração escondendo a verdade de você na ciência é prova cabal de incapacidade de entender ciência. O que o povo do jaleco está discutindo é tecnicalidade que exige décadas para entender de verdade. Não é à toa que existem comunicadores científicos: eles filtram a parte complicada e reduzem o tema para uma pessoa sem conhecimento prévio entender alguma coisa.

Ênfase no alguma coisa. Porque não é o quadro completo. Nem existe isso de entender o quadro completo através de um conteúdo só. A ciência está cheia de crises para transformar em clickbait, mas nenhuma delas é comparável a uma crise que impacta todos nós. É um cidadão absorvendo essa “alguma coisa” que caiu na sua frente e achando que estão perguntando sua opinião.

Não tem crise em nenhum campo científico que esteja impactando negativamente a longevidade e a prosperidade da humanidade moderna. Existem discussões, teorias mais malucas, mas nada que faça a gente perceber a mortalidade infantil deixar de cair na média que está caindo desde o século passado. Dois grupos de cientistas disputando para ver qual teoria sobre a formação das galáxias é mais condizente com as observações nada tem a ver com a ciência que mexe com a sua vida.

A Teoria da Relatividade pode ter um monte de detratores, mas o GPS (que usa suas previsões de dilatação de tempo para corrigir relógios) está funcionando. Muito da negação científica, pelo menos da forma como eu vejo, vem de gente sendo exposta a discussões totalmente fora da sua camada de compreensão das coisas e se sentindo obrigada a tomar um lado.

De que lado eu, um publicitário, estou em relação à Teoria das Cordas? Foda-se, nem eu acho importante a minha opinião sobre o tema. Eu acho bacana ver gente defendendo e ver gente atacando. Não é problema meu tomar essa decisão, eu tomo pressão quando meus clientes querem que eu decida como melhor investir seu dinheiro em publicidade, fora disso eu posso ser só um curioso, e observar todas as “crises científicas” buscando entretenimento.

E entender o que é uma crise ou uma confusão nesses campos de conhecimento: provavelmente nada que impacte sua vida direta se você teve que ir procurar essa informação. Na época da pandemia virou problema de todo mundo, mas existiam os mecanismos básicos de segurança: testaram a vacina, fizeram as contas se morria mais ou menos gente com a vacina do que com a doença, e com os números voltando dizendo que morriam menos, o produto foi distribuído.

Se a vacina matasse mais que a Covid-19 e mesmo assim fosse aplicada, aí sim seria uma crise acima da ciência de ponta. Existem mecanismos de proteção contra crises de resultados, não existem em crises de análise ou explicação. Porque se os cientistas estão se batendo para definir qual a melhor definição para uma situação, as coisas estão funcionando do jeito certo.

Crise na hora de explicar por que algo dá os resultados que dá quando observado e testado é crise boa. Porque você já consegue fazer as previsões, só não entende exatamente por que elas saem do jeito que saem. Crise quando os resultados experimentais não batem com as previsões também é crise boa: você fica sabendo na hora o quanto se desviou do previsto e afunilar as possibilidades para prever melhor na próxima vez.

E se você começar a acompanhar notícias sobre ciência sem entender que esses resultados inesperados são prova de que não estão acomodados e estão fazendo as coisas do jeito esperado, tudo bem se aprofundar em qualquer tema. Mas se você não consegue entender que confusão é parte do processo, pode começar a desconfiar do que não precisa desconfiar. Podem descobrir mais mil explicações diferentes para as vacinas, mas está provado que o número de pessoas sofrendo pelas doenças prevenidas por elas desabou desde que começamos a usar. Não foi coincidência.

Ou que os prédios e pontes continuam de pé, mesmo que a física funcione diferente da explicação padrão moderna. Concreto e barras de ferro ficam de pé se você fizer do jeito certo, a relação entre os quarks dos átomos que fazem o cimento pode entrar em crise uma vez por semana sem mudar a estabilidade da construção.

O que funciona, funciona. O que está em discussão é só isso, discussão. Claro que quem trabalha nesses campos, direta ou indiretamente, vai levar a coisa mais a sério, porque de alguma forma impacta no que eles fazem da vida, mas a gente que está de fora? Não tem crise nenhuma, não mexe em nada nas nossas vidas nem diminui a confiabilidade da ciência já estabelecida. A crise é deles, não sua.

E não faz o menor sentido entrar nessa pilha e alimentar uma ideia (bem ignorante até) que isso de alguma forma precisa da sua participação. Se uma mulher me disser que está com dor de TPM, eu só posso torcer para melhorar e no máximo dizer que posso cobrir ela em alguma obrigação para ajudar, porque no problema específico, não tenho estudo nem experiência. O negador científico médio é meio como o homem que primeiro diz que ela nem deve estar com tanta dor assim, e ainda por cima sugere uma aspirina porque funciona com a dor de cabeça dele.

Tem informação que você consome, tem informação que você participa. Quase toda crise científica vai cair na categoria consumo mesmo. Eu acompanho todas que posso, porque acho que delas sempre sai algo inovador e interessante, mas nunca com a ilusão de que sou parte do progresso ou realmente habilitado a escolher um lado.

Você não tem que saber qual o melhor jeito de fazer uma cirurgia ou construir um foguete. É uma ilusão da era da internet acreditar que sua opinião é essencial para o tema. E digo isso até por questões de saúde mental: já é estressante fazer escolhas sobre temas que você entende bem, imagina só ficar se colocando no papel de alguém que tem que resolver uma fuckin’ crise na vanguarda científica a cada artigo que lê ou vídeo que vê? Repito: a crise é deles, não é sua.

Até por isso estou tirando o meu embargo autoimposto sobre Desfavor Explica: estava entrando nessa pilha de querer que todo texto tivesse uma conclusão. As partes mais bacanas da ciência moderna não tem conclusão. O fascinante para mim é ver onde o povo especializado está enroscando.

Nada melhor do que a Semana Antiviral para fazer esse retorno. Hora de abraçar os textos sem conclusão de novo. Por mais 16 anos de inconclusões!

Para dizer que está tendo crise de tédio, para dizer que não confia na ciência porque é muinto entelijente, ou mesmo para dizer que eles não querem que a gente pense nisso: comente.

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ciência, cultura, negacionismo

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