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Jeitinho argentino – Parte 4

Jeitinho argentino – Parte 4

| Sally | | 10 comentários em Jeitinho argentino – Parte 4

Depois de várias colunas explicando um pouco mais a cabeça do argentino, acho que já podemos ter A Conversa. É como quando você começa a namorar com alguém e chega a hora de tocar em algum assunto delicado, tipo “olha só, escrevo um blog com textos que ofendem e em parceria com meu ex”. Só que pior.

Normalmente, nossas postagens sobre a cultura argentina são engraçadas. Esta não será, mas precisamos ter A Conversa. É hora de falar sobre o “Negro de Mierda”. Não sei quantos de vocês vão realmente compreender, mas, meu papel é expor a informação.

Vamos entender exatamente o que o argentino quer dizer quando chama alguém de “Negro de Mierda”?


Eu quis começar com essa imagem antes de qualquer explicação pois ela fala mais do que minhas palavras. Estas duas pessoas, este homem e esta mulher, ambos de pele branca, cabelos lisos e olhos claros, são considerados “negros de mierda” na Argentina.

Percebam que não são postagens pinçadas à minha conveniência, são postagens com curtidas na casa dos cinco dígitos, ou seja, tem muita gente concordando com o que está sendo dito. Eu sei que é muito diferente de tudo que vocês conhecem, mas, na Argentina, o termo “Negro” não está vinculado à cor de pele.

Assim como no Brasil ser chamado de “favelado” não quer dizer que você viva na favela, ser chamado de “baiano” não quer dizer que você tenha nascido na Bahia ou ser chamado de “Paraíba” não quer dizer que você tenha nascido na Paraíba, na Argentina ser chamado de “negro” não tem relação com a cor da sua pele.


Mais um exemplo. Reparem que o rapaz da foto tem a pele muito branca, o cabelo muito liso e o olho muito claro, ainda assim, ele é chamado de “negro de mierda”. Nenhum traço do seu rosto aponta para ascendência negra. Mas… analise o contexto dele: sobrancelha raspada, tatuagem no pescoço, cordão grosso, foto da balada… será que é mesmo sobre cor da pele?

Não é. É sobre postura. É sobre estilo de vida. É sobre aparência (mas não cor da pele). É sobre educação. Pode ser ofensivo mesmo assim? Claro, afinal, pessoas que fazem coisas cafonas, sem educação ou bregas são chamadas de “negras”. É vincular a cor a algo ruim. Mas isso acontece no Brasil o tempo todo (não com negros, mas com outros) e ninguém reclama.

Nós podemos discutir sobre o desaforo que é vincular características sociais negativas à palavra “negro”, e aí eu te dou razão. Mas forçar a narrativa de que é sobre cor de pele não vai dar. E, como eu disse, o próprio brasileiro incorre no mesmo erro.

Nos meus tempos de Brasil cansei de ver pão-duro sendo chamada de “judeu” ou alusões a isso. Joelho branco, feio, descamado, sendo chamado de “russinho”. Gente burra sendo chamada de “português” ou alusões a isso. Gente mal dotada recebendo referências a “japonês”. Gente que faz cagada ouvindo que fez uma “baianada”. A lista é enorme, poderia escrever muitas páginas, mas acho que vocês entenderam meu ponto. Se pode aí, tem que poder em qualquer lugar, ou por acaso agora pode bater em alguns e em outro não?


Esta foto mostra o jogador Ricardo Centurión com sua ex-namorada. Ela conta que a família do jogador dizia que ela “era uma negra que ele havia resgatado de um buraco”. Tem muita coisa para ser dita aqui.

Primeiro vamos para o tema mais gritante: se a gente fizer uma avaliação de aparência entre os dois, me parece que a menina é mais branca do que ele, não apenas na cor de pele, mas nos traços também (esse lábio é preenchimento). E a família dele é ainda menos “branca” do que ele, acredite. No entanto, quem está sendo chamada de negra é a moça. Por qual motivo? Por não ser sobre cor da pele.

Agora a sutileza: o termo “negra”, por si só, já é pejorativo. Não se faz necessário acrescentar o “de merda” ou qualquer outra coisa. Negro, na Argentina, mais do que cor de pele, é ofensa mesmo. Por sinal, quando o argentino quer se referir à cor da pele, ele nem costuma usar “negro”.

É um “adjetivo” que tem muitas décadas de existência, o argentino nem mesmo teria referências para gostar ou desgostar de pessoas pela cor de pele, já que no país nunca se escravizaram negros e, até poucos anos atrás, nem existiam negros em sua população.

A etimologia de “negro” como vinculado a algo nocivo é muito controversa e eu não vou ser a chata palestrinha que vai ficar batendo nessa tecla, basta que vocês saibam que existe um vínculo entre “negro” e “oscuro” com o mal, com o perigoso, com o ruim. Mais ou menos como “o lado negro da força” de Star Wars.

Não é nada tão insólito assim. Até bem pouco tempo no Brasil se falava que “a coisa está preta” quando estava ruim e outras expressões similares. Está embutido na cultura popular ocidental que brancos são bons e negros são malvados e não tem a ver com cor da pele. A escuridão é símbolo de terror, de medo, de coisas ruins.

No Brasil provavelmente não se fala mais “a coisa está preta”, afinal, em um país que tem mais da metade da população se declarando negra, há quorum para exigir que a sociedade faça um esforço para abolir certos termos. Você sabe qual é o percentual de negros na Argentina? É de 0,6%. Tem mais esquimó do que negros. Então, desculpa se o país não abraça a causa que vocês acham tão relevantes, para a sociedade argentina ela é praticamente inexistente.


Aqui uma pessoa explica o que, para ela, é ser “negro”: fumar maconha na rua, andar sem camisa na rua, comer tangerina no transporte público e deixá-lo infestado pelo cheiro, escutar música sem fone de ouvido no transporte público, fazer oferendas a um santinho local.

Entendam que o Brasil é um país informal e descontraído. A Argentina é o oposto. As pessoas exigem um patamar do que eu chamo de “civilidade” (e muito brasileiro chama de “frescura”) muito maior. Talvez para você algum desses itens seja uma besteira, mas cada cultura tem suas regras. E essas, pelo número de curtidas, são incontroversas no país.

Novamente, chamar de “negro” não me parece correto, mas afirmo: nada tem a ver com a cor da pele. E fica mais difícil de abolir o termo quando não existem negros em número significativo na sociedade, pois é uma fala sem vítimas no cotidiano.

Até ontem, no Brasil, se falava “programa de índio” quando algo era um passeio desagradável. Por que durou tanto tempo a expressão? Porque não tinha índio para se ofender. Não ao menos sendo exposto a essa expressão. O mesmo vale para a Argentina.


Aqui a primeira postagem reforça tudo que eu disse, pedindo para que as pessoas entendam de uma vez que não é sobre cor da pele, e a segunda brinca com essa incapacidade das pessoas de aceitar a origem do termo: “Negro de merda é um insulto incorreto de qualquer ângulo que se olhe, o termo correto seria pessoa de qualquer cor que eu considere malvada, independente da sua etnia, e por isso a associo com merda”. Pois é, o argentino desistiu de explicar, agora ele só debocha.

“Mas Sally, se sabem que incomoda, porque continuam usando?”. Bom, isso já foi bem explicado em textos passados. O argentino é um povo legal, mas não tolhe seu humor por nada, muito menos por ofensa que acontece uma vez a cada cem anos, já que, como explicado, na Argentina isso não gera qualquer problema.

Eventualmente, até acabamos aprendendo que para alguns países isso dói e evitamos usar nas raras situações pontuais em que estamos com essas pessoas. Mas, quando entra no campo da rivalidade, seja por disputa, seja por ter sido hostilizado, o argentino vai usar, pois, como já foi explicado em outras postagens, o revide é sempre desproporcional.

E ainda tem outro fator que dificulta abolir a expressão: na Argentina é totalmente normal. É muito difícil corrigir o que não é socialmente reprovado. E é muito difícil fazer que algo seja socialmente reprovado em uma sociedade na qual o grupo supostamente ofendido não está presente (0,6% é nada).

O brasileiro não fala “esquimó” na maior tranquilidade? Os esquimós não gostam de ser chamados assim. Mas, você já viu um esquimó puto com um brasileiro por ser chamado de esquimó? Pois é.

Fora isso, ainda tem o fato de que o argentino muitas vezes fala de forma “ofensivo-amistosa” com todo mundo: com seus amigos, com sua namorada, com sua mãe, com sua bisavó. É muito difícil traçar o limite entre ofensa e carinho. De verdade.


BÔNUS

Aqui a pessoa está elogiando o poodle e o chama de “negro de mierda”. Percebam que 1) o poodle não é preto e 2) é uma demonstração de carinho.

Mais uma vez, eu sei que soa terrivelmente inconcebível para vocês “negro de mierda” sem ter conotação racista e com conotação carinhosa, mas a Argentina não é um país normal. Inclusive a palavra “negro” também pode ter uma expressão carinhosa. Metade da minha família me chama de “negra” e eu sou mais branca do que um fantasma.

Assim como na Bahia me chamavam de “mãe” sem eu ter filhos, aqui eventualmente me chamam de negra, mesmo eu sendo branca. Se “mãe” ou “negra” fossem termos ofensivos, acredito que as pessoas não me chamariam assim em plena luz do dia.

Se quiserem reivindicar trocar o termo “negro” por acharem ofensivo, vocês têm o meu apoio, mas se quiserem acreditar que essa ofensa está de alguma forma vinculada à cor da pele, sinto muito, não é verdade.

Para dizer que está pegando a pipoca para assistir a gritaria nos comentários (não vamos aprovar), para dizer que prefere quando estas postagens são engraçadas (a próxima será) ou ainda para dizer que o Brasil é pior pois expressões como “trabalho de preto” sim estão vinculadas à cor da pele: comente.


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