
No meu tempo, nazismo significava alguma coisa.
| Somir | Flertando com o desastre | 14 comentários em No meu tempo, nazismo significava alguma coisa.
Eventualmente chegaríamos nesse tema. Elon Musk fez um gesto na posse de Trump que se parecia demais com uma saudação nazista. Existem várias teorias sobre o que realmente aconteceu ali, eu tenho a minha, você tem a sua… mas acho que mais importante, o que aconteceu com o peso de ser considerado nazista?
Tempo de leitura: 80 anos
Resumo da B.A.: o autor afirma que o nazismo não é esse problema todo que as pessoas dizem.
Se quiser sair logo, minha teoria: Elon Musk é um troll, ele sabia o que estava fazendo, mesmo que eu não acredite que ele tenha planejado a saudação com muita antecedência. Ele achou engraçado fazer isso na hora, ele está numa fase em que só consegue cair para cima, então não teve medo. Levar muito a sério é entrar na pilha dele.
Mas isso não quer dizer que não tenha algo sério aí. Por trás da piada de gosto duvidoso existe toda uma cultura de tratar o nazismo de forma caricata, nos dois sentidos: ou é uma ameaça iminente que gera reações histéricas, ou é uma piada que não leva em consideração de verdade as atrocidades do regime.
E a verdade tem essa tendência de ter mais nuances do que nossas reações imediatas. O nazismo não é discutível na sua brutalidade supremacista, foram crimes horríveis contra a humanidade, mas é muito discutível na sua ameaça concreta contra o mundo moderno. Muito do que se chama de extrema-direita hoje em dia não é uma comparação direta com o que aconteceu na Alemanha do século passado.
O discurso nazista que cativava multidões era sério. Era raivoso. Embora Hitler e sua máquina de propaganda não contassem explicitamente para o povo o que faziam com os judeus nos guetos e campos de concentração, não é historicamente correto dizer que o povo alemão não tinha ideia da gravidade. É correto dizer que muitos se arrependeram quando já era tarde demais e o país estava sob o controle absoluto da máquina de guerra, que alguns até deram a vida para tentar derrubar o ditador, mas não que os nazistas faziam tudo aquilo completamente escondidos.
E isso conta para conversarmos sobre o que é o nazismo no Século XXI. A primeira coisa é o nível de brutalização do povo. Nos anos 30 e 40, mesmo na Europa, o que se passava por direitos humanos não tem o menor paralelo com o que entendemos agora. O brasileiro que se mata no bar por um olhar torto é possivelmente mais humanista que a média daquele tempo, mesmo em países mais desenvolvidos.
Vale lembrar que por mais que a escravidão já estivesse proibida, o cidadão médio achava normal segregação por raça e a superioridade do branco era fato consolidado na cabeça de quase todo mundo. E por mais que tenhamos muitos racistas agora em 2025, cem anos atrás mal se discutia se ser racista era algo errado. Todo mundo podia ser sem consequências.
Eu digo isso porque transplantar o nazismo do tempo do Partido Nazista alemão para o mundo moderno não faz sentido. Não acho que a versão moderna seja inofensiva, mas não estamos no mesmo mundo. Hitler e cia. são frutos de um ponto específico na história, ponto que já passou. Tanto que Musk provavelmente bebe da mesma fonte cultural que vários adolescentes, jovens e adultos modernos beberam: o nazismo irônico da internet.
É aqui que eu volto para a ideia de caricatura: sim, em muitas comunidades online foi normalizado apelar à estética e ideais nazistas. Só que não estamos falando do mesmo contexto. Não tem uma população pronta para votar em alguém que prega uma solução final para o problema judeu, quer dizer, tirando o pessoal do Oriente Médio que vive em guerra contra Israel. No resto do mundo, mesmo os tiranos mais tiranos precisam de algum verniz de legitimidade humanista para se manter. Putin atacou a Ucrânia chamando os vizinhos de nazistas, não podemos esquecer. Boa parte da identidade cultural dos russos modernos gira ao redor do orgulho de terem feito o trabalho sujo na derrota do regime de Hitler.
E mesmo em escalas menos gritantes, líderes como Trump atendem aos desejos de sua base evangélica usando argumentos como igualdade de tratamento. Eu também acho uma excrescência as políticas de “segregação do bem”, mas não me engano: muitos dos votos que causaram essa vitória são de pessoas que acham que gays são uma aberração segundo suas escrituras religiosas.
Tudo isso para dizer que não dá para ser nazista agora como se foi nazista na Alemanha de Hitler. Não é o mesmo mundo, não é o mesmo peso. O nazismo prático ficou para trás sob a ideia de uma vitória definitiva dos Aliados na Segunda Guerra Mundial, e foi se transformando numa ideia mais amorfa com o passar das décadas. É um conceito de intolerância menos focado: a pessoa simpatiza com nazismo em alguns contextos, mas não em todos.
Meio como muitas pessoas mais velhas usam “xiita” como sinônimo de extremista. O termo denomina uma das vertentes do islamismo, mais popular no Irã, e como essas pessoas viram a revolução iraniana colocar rédeas curtas num país que já estava bem ocidentalizado, o termo ficou maior que apenas uma variação de uma religião. Eu argumento que o termo “nazista” passou por um processo parecido para muitos Millenials: a pessoa entende que é o mesmo grupo que cometeu um genocídio defendendo superioridade racial, mas o significado foi abrandando para encaixar intolerâncias das mais variadas, violentas ou não.
E no fundo, muitos dos que “brincam” com a ideia de nazismo não estão realmente querendo ir até o fundo do significado histórico. Eu entendo o ser humano médio moderno como menos propenso a esses extremos genocidas. Mesmo na Alemanha, com um partido de extrema-direita crescendo, não é sobre exterminar imigrantes, é sobre expulsar os excedentes e fechar fronteiras. Tem uma gradação aqui.
Sinta-se livre para acreditar que é uma decisão errada do povo alemão atual ou mesmo americano que votou em Trump, mas muito cuidado com achar que é a mesma coisa, o momento histórico e o ser humano médio são bem diferentes. O nazismo de Hitler não vai voltar. Podem vir coisas bem ruins nessa esteira de intolerância, xenofobia e nacionalismo, mas aquela escala de brutalidade já não faz parte do inconsciente coletivo do mundo mais civilizado.
Mas nazismo também não é só uma piada. Se você acha que são só adolescentes brincando na internet, está dando pouco crédito para o problema real. Pode ser piada, mas para muita gente tem um fundo de verdade. Não o de esquadrões da morte aparecendo nas nossas ruas, mas de uma rejeição cada vez mais agressiva contra o movimento cultural identitário. Como fazemos aqui no Desfavor, é totalmente possível entender que não existem vantagens reais em reforçar separação entre etnias e sexos e não tolerar abusos contra os Direitos Humanos. Não precisa colocar uma suástica no braço para discutir imigração…
Concordando ou não com políticas como as que Trump está aplicando, eu até argumento que dar vazão às reclamações do povão ajuda a reduzir o apelo do extremismo. Se as pessoas passam décadas sendo ignoradas, vão ficando cada vez mais irritadas. A contracultura do que se chama de movimento woke foi sendo cooptada por imagens e memes nazistas, sem necessariamente esposar os sentimentos nazistas originais.
Considerando até onde o nazismo pode ir de verdade, essa versão meio caricata é um dos cenários menos problemáticos. Tem espaço para melhorar? Com certeza. Acredito que passou tanto tempo que o cidadão médio nem entende o tamanho da desgraça, o presidente do Brasil mesmo deu declarações estúpidas sobre o tema pouco tempo atrás. Sempre precisamos focar em excelência, mas não precisamos desse pânico todo sobre estarmos prestes a ser dominados pelos literais nazistas do século passado.
Nem sei se é possível fazer com que as gerações atuais e futuras entendam a gravidade do que aconteceu na Alemanha, porque aqueles acontecimentos moldaram décadas de humanismo pronunciado, que por sua vez fizeram o cidadão médio achar que nem era tão absurdo assim. O mundo no qual você cresce molda até sua visão sobre a história. Tempos de paz fazem com que a pessoa não tenha contexto emocional sobre a brutalidade do ser humano.
Elon Musk pode ter mil defeitos, mas ser nazista não é um deles. Nem Trump, nem Bolsonaro, nem Biden, nem Lula… por mais que de tempos em tempos tenham seus arroubos autoritários. A escala é muito diferente. O mundo é muito diferente. Não é piada, não é ameaça iminente. E como sempre, basta estudar sobre o tema e não reagir apenas com o fígado para entender como isso funciona.
Eu me lembro que comecei a ler o desfavor em 2013 e em 2015, quando começaram a surgir as primeiras ideias extremistas que temos hoje, algo tambem mudou por aqui, acho que aconteceu mais ou menos oq aconteceu com grande parte dos brasileiros. Aqueles que tinham vergonha de externar seus pensamentos mais perversos, suas ideias mais extremistas, viram um eco de validação nas novas “lideranças politicas” que ali surgiam. Pouco depois, se consolidou o maior representante dessa nova mentalidade. Pronto, o desfavor mudou de vez, para em 2025 relativizar um tema que é tao complicado como esse. “Tadinho do Elon Musk é so um autista que nao sabe oq faz”. Que triste fim para uma parada que um dia eu ate curtia ler os posts.
Acontece. São mais de 15 anos, nesse tempo mudamos nós e mudam os leitores, é apenas natural que no meio dessas mudanças se tomem caminhos opostos e o Desfavor não seja mais interessante ou não desperte afinidade.
O que me parece sintomático é se colocar como arauto do bom-senso e achar “triste fim” o caminho que nós tomamos, mas, isso você vai ter que resolver na sua vida, mais cedo ou mais tarde.
Repetindo o que dizemos desde 2008: não gosta, não leia. Vir aqui deixar comentário sobre como está decepcionado é um pouco patético, tipo criancinha frustrada porque não teve as expectativas atendidas.
Entender isso do texto? Hã? Eu nem sei como você chegou nessa conclusão… eu até reli para confirmar que não estava maluco e escrevendo coisas aleatórias no meio do texto. Então, não sei como responder. Boa sorte na sua vida aí.
No meu tempo, nazismo significava alguma coisa”. Sim. Mas hoje parece que é “Ein Volke, Ein Reich, Ein Twitter”
Eu acho que a contextualização colocada pelo Somir vale para o bem ou para o mal. Sem dúvida o patamar civilizatório é outro, mas a capacidade de fazer M também. Alguém aqui já ouviu falar em armas nucleares de dissuasão? Isso foi discutido por gente bastante importante recentemente, para resolver os problemas da faixa de Gaza ou da Ucrânia mais rapidamente. E saiu na grande mídia, não foi em fórum ou rede social que eu vi isso não.
Existe esse problema fundamental tecnológico: quanto mais o tempo passa, maior o poder dos indivíduos. Não sei se estamos no momento histórico de um pequeno grupo começar uma guerra nuclear, mas parece mesmo que nos próximos séculos vamos dar de cara com esse possível Grande Filtro: o que fazer quando uma pessoa puder matar milhões? Civilizações sobrevivem a esse ponto?
Pra boa parte da geração mais nova, Hitler é apenas o nervosinho dos memes feitos com uma cena do filme “A Queda” e não o maluco antissemita radical que convenceu seu país a aceitar uma ideologia genocida que levou o mundo à maior conflagração da História. E isso me preocupa…
Isso também me preocupa, UABO. Nós ainda temos sobreviventes do Holocausto vivos. Está um pouco cedo pra humanidade esquecer, não acha?
Também é desesperador pensar que o QAnon começou como sátira e virou o que é porque mais gente do que o esperado passou a levar a sério.
Sinto que as pessoas começarem a banalizar nazismo e fascismo como tudo aquilo que elas não gostam politicamente acabou contribuindo demais pra isso, e fez com que neonazistas de verdade passassem despercebidos. Mas como combater isso agora, antes que seja tarde demais?
Puta que pariu! Sendo assim, então não deve estar longe o dia em que esta cena do filme “Idiocracia”, de um parque temático histórico todo errado em que Charlie Chaplin é confundido com Adolf Hitler, se tornar real.
https://yorokobu.es/wp-content/uploads/2015/11/Chaplin-Hitler.jpg
Aí que entra a discussão sobre os riscos reais da ideologia: a meme dilui a ideia genocida ou a ideia genocida dilui a meme? O meu texto fica mais para o lado que a caricatura das redes sociais está influenciando uma visão mais branda sobre a história, e que existe um lado positivo nisso: de Hitler ser mais intolerância cotidiana do que genocídio. O ideal seria deixar o nazismo enterrado no passado? Com certeza. Mas não foi essa a escolha da sociedade: desde o fim da Segunda Guerra Mundial, falamos compulsivamente sobre nazismo e Hitler. Dado esse fato, o que seria melhor, degenerar o significado ou dar a ele um peso imenso?
Eu só posso apostar minha ficha: caricaturas esvaziam ideologias.
Assim como você, acho que ele não queria sinalizar nazismo de fato. Ao contrário de você, acho que de última hora ele pensou em “trollar”: ele não pensa antes de fazer as coisas (a fortuna que pagou pelo Twitter e ter feito de tudo pra fugir da compra é um exemplo).
Quando começaram a usar símbolos nazistas para gerar reações de histeria no movimento woke, eu não achei nada demais e é condizente com o modelo estratégico que o Steve Bannon usou da primeira vez. Biroliro chegou a copiar, teve aquele vídeo dele e mais algumas pessoas bebendo leite. Na verdade, eu até faço esse tipo de piada em alguns contextos, porque o pensamento de alguém ser nazista de verdade hoje em dia soa perturbador e bizarro demais, e não dá pra negar que o termo foi banalizado para “nazista” significar “pessoa que pensa diferente” em alguns setores políticos.
Mas tive de repensar essa postura recentemente, porque descobri que neonazistas de verdade, que pregam e querem extermínio existem num número muito maior que a gente imagina. E talvez peguem carona nessas piadas para chegar ao poder, o que não ia ser bom mesmo se eles não tivessem como colocar suas ideias em prática.
https://www.amazon.com/Everyone-Dont-Like-Hitler-Discussion/dp/B0DN6FGPPC?crid=DXKHX18Y6LD4&dib=eyJ2IjoiMSJ9.PlKjpgfNQc30zWaS8v3-NC7PtGIJus1EIcoXDq9owqBOo2t03CulslX1PbyG7te6hLjVt1H58POXLdiX1YrV6KJOibyC77sLLZI-xy1QfppEboT5p4q7TGgF4MFrsvkDZaB3wCv4JpBuOmcOZOVEu_i-aOv9t0hNkNrFluKVE7rBxdNv1ZbTVZB08ll73aJOGzMx6AtkHOTrZ5fi0GTWiw.EV5g6LjdiK3m6wDcCo3w-8fXOFcqEZl4MtIgeOgSiOw&dib_tag=se&keywords=everyone+i+dont+like+is+hitler&qid=1737677613&refresh=1&sprefix=everyone+I+don%2Caps%2C726&sr=8-1
Sim, tem gente demais com ideologias genocidas no mundo. Mas a minha questão seria: isso aumentou desde os tempos da Segunda Guerra Mundial? A cultura moderna criou mais nazistas ou expôs mais nazistas? Acho que em qualquer país do mundo você acha pessoas que acreditam piamente que precisam exterminar grupos inteiros de seres humanos para “melhorar o mundo”.