Siago Tomir não é paciente com cães. Desculpa, Siago Tomir não é paciente com animais. Quer dizer, Siago Tomir não é paciente com nada nem com ninguém. Um belo dia várias casas da vizinhança começaram a ser assaltadas. Siago Tomir teve um surto e decidiu, em um rompante, comprar um cão de grande porte para garantir a segurança do seu lar, afinal, segundo ele, quem mora em casa precisa ter um cachorro. Eu fui contra. Já tínhamos problemas suficientes e não tínhamos tempo para isso. Mas ele fez questão.
O problema é que Siago Tomir escolheu a raça de acordo com suas preferências pessoais, sem levar em conta o fato de que não se tratava de uma raça de cães de guarda e que além de tudo era uma raça agressiva, forte pra caralho e de difícil adestramento. Eu avisei.
Sally: Siago, não é um cão de guarda…
Siago: É um cão de que? Intelectual?
Sally: Não debocha, Siago. É um cão de briga
Siago: Ótimo, eu quero que ele brigue com quem entrar no meu quintal
Sally: Siago, é um cão de rinha, agressivo. Não é um cão de guarda
Siago: Eu quero um cão agressivo mesmo! Não quero deixar você com um cão amistoso sozinha em casa sabendo que tem um assaltante solto!
Sally: Siago, eu não quero um cão agressivo
Siago: E quando eu tiver que viajar? Como é que um poodle vai te defender?
Sally: Siago, essa raça é difícil… existem outras melhores
Siago: Shhh! Eu sei o que estou fazendo! Eu quero uma máquina mortífera!
Vendedora: Temos estes três filhotinhos…
O filhote 1 estava prostrado. O filhote 2 estava sentado olhando e o filhote 3 corria, pulava, mordia a grade e latia sem parar. Adivinha qual filhote Siago Tomir escolheu?
Siago: Vamos levar aquele ali, que é o mais espertinho!
Sally: Siago, ele não é espertinho, ele é endiabrado! Leva o primeiro
Siago: Aquele que parece uma almofada?
Sally: Siago, essa raça é difícil, se você levar um macho dominante…
Siago: Você está insinuando que eu não consigo adestrar um cachorro?
Sally: Não é assim que se escolhe filhote
Siago: Eu quero esse!
Vendedora: Qual vai ser a forma de pagamento?
Siago: Qual é o valor do cachorro?
Sally: *tampando os ouvidos
Quando a vendedora disse o valor, Siago começou a soltar palavrões e perguntar se o cachorro sabia falar e sabia fazer o imposto de renda dele. A vendedora riu sem graça tentando acreditar que tinha sido uma piada. Não foi. Siago estava injuriado e acredito que nem fosse levar o cachorro se não fosse uma pisada de bola minha:
Sally: Vamos embora, Siago. Olha o preço do cachorro! É um sinal de Deus para você não comprar!
Siago: O dia que eu obedecer a um Deus você me interna. Vou levar.
Sally: Siago, você não tem tempo nem paciência, não vai conseguir educar esse cachorro e eu não quero essa responsabilidade!
Siago: Vou sim
Sally: Siago, quer levar essa raça tudo bem, mas não leva o filhote alfa, leva outro mais submisso
Siago: Se eu gostasse de submissão não estava com você
Já no carro o filhote começou a tocar o zaralho.
Sally: Siago, esse cachorro não é de Deus
Siago: SATANÁS!
Sally: Sim, é um cachorro do demo
Siago: Não, Satanás vai ser o nome dele!
Sally: Não bastava o nome que você deu para seu último cachorro? Tem que ter mais um de cunho provocativo-religioso?
Siago: O Senhor?
Sally: Sim, Siago, o Senhor
Siago: Sally, aquilo foi inevitável! O cachorro era um Pastor!
Sally: …
Siago: O SENHOR É MEU PASTOR! Hahahaha
Sally: …
Chegamos em casa com o pequeno Satanás e mais 257 coisas que compramos para ele e que mal duraram três horas, porque ele as destruiu. Destruiu inclusive a sua própria casinha feita de madeira, sua tigela de plástico e seu colchão. Tivemos que comprar uma tigela de metal e mesmo assim, ela ficou toda marcada, amassada pelos dentes do Satanás. Na sua segunda semana aprendeu a abrir a se enfiar pela portinhola para os gatos da casa e entrar, o que nos custou o sofá. Quando acordamos nos deparamos com a cena:
Siago: MAS O QUE É ISSO???
Sally: Me parece a estrutura metálica do sofá
Siago: * um único olho latejando
Sally: Desossaram nosso sofá
Siago: SA-TA-NÁÁÁÁÁS!
Sally: Fala baixo, Siago! Sua vizinha está se benzendo
Siago: SATANÁÁÁÁS ENTROU EM CASAAAAA!
Sally: Siago, não adianta brigar agora, tem que dar bronca NA HORA, de der uma bronca agora ele não vai entender
Siago: SATANÁS ESTÁ DENTRO DA MINHA CASAAAAA!
Siago partiu para cima de Satanás, que olhava confuso sem entender nada. Consegui segurar o Siago antes que ele mate o cachorro. Depois deste episódio pregamos a portinhola e na semana seguinte aprendeu que ele podia pular pela janela. Novamente, ao acordar, uma surpresa nos aguardava. Satanás comeu toda a fiação da televisão, o que, na Siagolândia é crime inafiançável. A cena era a seguinte: o cachorro com o fio da Tv do Somir na boca:
Siago: SATANÁS ESTRAGOU MINHA TV!
Sally: Sabe, você podia falar mais baixo…
Siago: SATANÁS ESTRAGOU MINHA TV!
Sally: Os vizinhos, Siago. Fala baixo.
Siago: Agora que ele está com a boca nos fios eu posso dar esporro!
Sally: SIAGO… NÃO!
Tarde demais. Siago partiu para cima dele e ele saiu correndo, sem largar os fios, o que fez com que a TV de um milhão de polegadas tombe para frente, não apenas quebrando como ainda caindo em cima da mesinha de centro onde havia um notebook e um Playstation. Perda total em tudo.
A cena se repetiu por meses. Siago saia para trabalhar e Satanas fazia merda. Lá ia o Siago dar porrada no cachorro por uma coisa que ele tinha feito horas antes. Isso não adianta nada, porque o cachorro não sabe porque está apanhando. Ele pense “Toda vez que esse cara me vê ele me enche de porrada” e começa a ficar puto. Satanás foi criando um certo ressentimento de Siago Tomir, o que não significava muito naquela data, mas, meses depois, quando Satanás pesava mais do que eu, virou um problema.
Perdi as contas de quantas vezes Satanás fez merda e de quantas vezes Satanás apanhou. Fugia para a rua e apanhava. Destruía o quintal e apanhava. Uivava no meio da noite acordando a rua toda e apanhava. Matava o gato do vizinho e apanhava. Eu avisei várias vezes que não ia prestar educar um cachorro assim, mas não quis assumir a responsabilidade porque eu sabia que se o fizesse, Siago ia delegar a educação do cachorro para mim. E nessa Satanás foi crescendo.
Um dia, já mais velho, Satanás passou por Siago Tomir no quintal e como gesto de revolta levantou a perna e mijou nele:
Siago: SATANÁS MIJOU EM MIM! SATANÁS MIJOU EM MIM!
Sally: Siago, você está assustando os transeuntes
Siago: EU VOU MATAR ESSE CACHORRO!
Sally: Siago, um dia ele vai reagir e vai te machucar
Siago: Agora ele vai ver!
Sally: Siago, eu não estou vendo isso! Siago! SIAGOOOO!
Siago: Pronto! Gostou? Tá feliz agora?
Sally: SIAGO! QUAL É O SEU PROBLEMA?
Siago: Porque? Vai tomar o lado dele? Se ele pode eu também posso!
Sally: Você mijou no Satanás?
Siago: SATANÁS MIJOU EM MIM PRIMEIRO
Sally: Você é idiota? Você vai agir de igual para igual?
Siago: Bem feito pra ele!
Sally: Agora você vai ter que dar banho nele, gênio!
Siago: * palavrão
Além do inconveniente de ter a casa invadida e destruída e do quintal parecer um campo de batalha cheio de trincheiras (nem a grama Satanás poupou, o quintal parecia uma quadra de saibro), o nome do cão trazia uma série de problemas. Certa vez estava saindo de casa e uma vizinha comentou com a outra que nós tínhamos pacto com o demônio. Eu insistia na importância de um adestramento mas Siago estava sempre ocupado, ou cansado ou sem dinheiro para pagar alguém que o faça. A coisa foi ficando do jeito que estava.
Mesmo as atividades mais rotineiras envolvendo o cão causavam apreensão na vizinhança, principalmente porque metade era de evangélicos e não sabiam que Satanás era apenas o nome do cachorro. Toda noite Siago dava comida ao cão, ritual que consistia no seguinte: ele abria a porta de casa todo descabelado, usando apenas uma calça de moletom preta e chamava gritando “SAAATANÁÁÁÁS! SATANÁÁÁÁS!!!” até o cachorro vir comer. Realiza a cena: seu vizinho, que já não era um exemplo de simpatia e normalidade, começa a aparecer no quintal semi-nu gritando por Satanás toda noite. Quando Siago andava na calçada as senhorinhas atravessavam a rua para não passar do lado dele.
Após meses deste inferno, um dia o pior aconteceu. Satanás já pesava mais do que eu e nutria um rancor justificável por Siago. Satanás me respeitava, não me dava muita moral mas nunca fez nada contra mim. Ele me tolerava. Mas odiava Siago, a coisa era bem pessoal.
Sally: Comprou a ração pro cachorro?
Siago: Ihhhh
Sally: Siago, eu te lembrei três vezes!
Siago: Esqueci… mas não tem problema, tem ração ainda
Sally: Siago, conforme eu te disse hoje de manhã, a ração que tem está com a validade vencida! Vou fazer arroz com frango para ele…
Siago: Putz! Acabei de dar a ração pra ele!
Sally: Ihhh…
Siago: Vou pegar de volta
Sally: Vai tirar a comida do bicho enquanto ele está comendo?
Siago: Não pode?
Sally: Olha, eu tirava dos meus cachorros, mas eles me respeitavam porque eu nunca os espanquei
Siago: Você acha que eu não devo tirar?
Sally: Eu acho que o cachorro não pode rosnar para o dono em hipótese alguma, MAS, no caso do Satanás, ele vai rosnar para você
Siago: Tiro ou não tiro?
Sally: NÃO TIRA, se ele te morder vai te machucar
Siago: Você acha que eu sou um fracote?
Sally: putaquepariucaralho
Siago: Eu tenho que poder tirar a comida dele sem ele me morder!
Sally: Concordo, mas você não fez por onde ter o respeito dele!
Siago: E por isso eu vou ficar escravo do cachorro?
Sally: Deixa pra lá, Siago. Deixa ele comer.
Siago: Não, agora eu quero tirar
Não foi uma escolha inteligente. Acho que nada justifica que um cão rosne ou ataque seu dono, desde que ele tenha sido bem educado. Não era o caso. Siago se aproximou da tigela e Satanás olhou feio. Siago meteu a mão na tigela e Satanás rosnou. Siago gritou com o cachorro e o cachorro rosnou mais ainda, enquanto eu gritava para o Siago parar e voltar para dentro. Siago pegou um cabo de vassoura e se trancou no canil com um cachorro que pesava mais do que eu. Parecia uma cena de desenho animado daquelas onde você só vê pés, mãos e fumacinha.
Desse dia em diante a relação dos dois azedou de vez. Não raro Satanás tentava atacar Siago sem razão aparente e por algum motivo desconhecido Siago se recusava a dar ou sacrificar o cachorro. Ele dizia que a casa precisava de proteção, mas sinceramente, quem coloca a própria vida em risco diariamente para proteger a casa é que precisa de proteção. Imagino que de alguma forma bizarra, nesse seu estilo “morto por dentro” ele tenha se apegado a Satanás. Mas se você perguntar ele vai insistir que era para proteção da casa.
A coisa chegou a tal ponto que para sair da casa Siago precisava prender Satanás no canil, e para conseguir prender Satanás no canil ele precisava sair no quintal com um bife na mão e ir levando o cachorro com a isca até a porta do canil, jogar o bife dentro e esperar ele entrar para fechar a porta. Claro que algumas vezes o “plano perfeito” falhava, como uma vez em que a irmã dele (*arrepios) estava nos visitando com seu poodle e o poodle simplesmente tomou o bife das mãos de Siago no meio do caminho. No que Satanás se tocou que não havia bife nenhum começou a correr atrás de Siago.
Siago: SAAAALLYYYYY! ABRE A POOOORRTAAAAAAA! *correndo
Sally: Tô indo
Siago: RÁÁÁÁPIDOOOO *correndo
Parecia uma cena de Indiana Jones. Eu abria a porta, Siago se jogava do lado de dentro e eu batia a porta praticamente na cara do Satanás.
Sally: Siago, tem que dar esse cachorro
Siago: Pra quem? Só se for pro seu ex! Pra ele eu dou o Satanás!
Sally: Porra, Siago, manda sacrificar!
Siago: A casa precisa de segurança
Sally: Compra outro cachorro, compra outro que eu adestro e educo!
Siago: Se eu comprar outro vai demorar um ano até ele crescer e tomar conta da casa!
Sally: Compra um cão de guarda já treinado adulto!
Siago: Sally, dá para lidar com ele, é só manter o esquema. O cachorro da minha irmã que estragou tudo
Sally: O cachorro da sua irmã saiu com você???
Siago: Saiu… e roubou o bife!
Sally: Mas não voltou com você…
Siago: Acho que não
Sally: Onde ele está agora?
Ele estava metade no estômago do Satanás, metade espalhado pelo quintal em vários pontos diferentes. Em parte foi bom porque a irmã do Siago ficou quase um ano sem falar com a gente.
Satanás estava fora do controle e Siago não assumia isso. Como este, aconteceram vários acidentes. Tanto que quando o Siago ia sair de casa eu sempre tinha que ficar de prontidão na porta para o caso de algo dar errado. Um domingo ele saiu para comprar comida depois de um jogo que o Corinthians tinha vencido: levou o bife e jogou no canil. Quando Satanás estava entrando no canil algum corintiano soltou fogos, Satanás se assustou, esqueceu o bife e começou a correr atrás do Siago
Siago: SAAAALLYYYYY! ABREEEEE! FAAAAAIIIIL!
Lá estava eu abrindo a porta para ele entrar e batendo a porta na cara do cachorro.
Cada semana tinha uma moda nova. Uma época ele deu para uivar a noite toda e nenhum de nós tinha coragem de ir ao quintal pedir para ele calar a boca. O pior é que Satanás era má influência. Quando ele uivava todos os cachorros da rua começavam a uivar depois e ninguém mais dormia.
Siago: Estamos sem dormir direito desde o começo da semana…
Sally: Siago, esse cachorro tem que ir embora
Siago: Calma, deixa eu pensar em alguma coisa
Sally: Não, Siago, o cachorro tem que ir
Voltamos a dormir e Siago me prometeu que daria um jeito. Uma hora depois os uivos recomeçaram. A solução do Siago foi ótima:
Siago: SEU FILHO DA PUTA VAMO CALÁ ESSA BOCA CARALHOOOOOO!!!
O cachorro de fato calou a boca, o que foi péssimo, porque recompensou o mau comportamento do Siago. O efeito durava pouco tempo, horas depois o cachorro voltava a uivar e o Siago saia na varanda e fazia um novo escarcéu. No fim das contas, o Siago me acordava mais com os seus berros que o cachorro com os uivos.
Siago: Bom dia!
Sally: Siago, é sério, quero esse cachorro fora desta casa até o final do mês
Siago: Não vai ser necessário, eu tive uma idéia genial!
Sally: Vai mandar fazer uma lobotomia nele?
Siago: Melhor!
Naquela noite, como sempre, Satanás começou a uivar. Já coloquei o travesseiro na cara esperando pelos palavrões do Siago, quando, para a minha surpresa, vejo ele pegando algo na gaveta.
Sally: O que é isso?
Siago: Estalinhos
Sally: Você vai jogar estalinhos no cachorro?
Siago: Vou
Siago se debruçou na varanda e começou a jogar estalinhos no Satanás. Satanás parou de uivar e se recolheu no seu canil. Poucas horas depois o mesmo processo.
Sally: Você percebe que ele para apenas momentaneamente, né?
Siago: Mas funciona!
Sally: Você percebe que acorda todo mundo com o barulho dos estalinhos, né?
Siago: Mas funciona
Sally: Quero o cachorro fora da casa até o final da semana
Siago: Porque? Se funcionou!
Antes tivesse me escutado. Na semana seguinte Siago foi buscar uma coisa do lado de fora da casa e a porta bateu com o vento, trancando ele do lado de fora. Ele estava sozinho em casa, trancado no quintal com Satanás. Siago ficou quieto e se fez de desentendido. Ficou ali por horas antes de ser notado, porque Satanás dormia. Quando Satanás acordou, colocou a cabecinha para fora do canil e viu a cena. Siago jura que Satanás sorriu. Segundo Siago, a cena que se seguiu foi Satanás correndo em câmera lenta em sua direção e pulando no seu pescoço. Por reflexo, Siago colocou o braço na frente e foi o braço que Satanás acabou abocanhando. Para sorte de Siago eu cheguei logo depois e consegui tirar o cachorro de cima dele com o Doutrinador (para quem não conhece, é o nome do meu aparelho de choque). Siago levou uns vinte pontos no braço.
Sally: Esse cachorro vai ser sacrificado
Siago: Não vai acontecer novamente
Sally: Ele tentou te matar
Siago: Ele estava estressado
Sally: SIAGO, CHEGA! OU O CACHORRO OU EU!
Siago: Odeio ser pressionado: o cachorro
Sally: * palavrão
Na semana seguinte, infelizmente, Satanás veio a falecer de causa desconhecida. Vai ver comeu alguma coisa que não lhe fez bem… Siago ficou umas duas semanas sem falar comigo.
Siago: Foi você?
Sally: Não
Siago: Se fosse você, você me diria?
Sally: Não
Siago: Você acha certo matar o cachorro dos outros?
Sally: Não
Siago: Você pode me dar alguma outra resposta que não seja “não”?
Sally: Não
Desde então Siago Tomir cria apenas gatos com nomes de frutas.