O STF finalmente reconheceu no mundo jurídico o que de fato existe no mundo real desde que o mundo é mundo: a união estável entre pessoas do mesmo sexo. Infelizmente, como direito não é ensinado nas escolas do Brasil (e deveria ser), muitas pessoas não tem a menor idéia do que isto signifique e ficam dizendo asneiras, “achando” coisas sem o menor fundamento. Isso me aborrece. Tenho certeza que vou me aborrecer nos comentários, mas como pediram, vou falar sobre o tema.
Gostaria de não precisar escrever este parágrafo cada vez que trato de algum assunto jurídico, mas como sempre tem um espírito sem luz que vem reclamar da simplicidade do texto ou do vocabulário, lá vai: não é um artigo jurídico, não tenho a intenção de ser profunda e o texto não traduz todo o meu saber. Só quero bater um papo informal sobre o assunto e me fazer entender. Não estou agindo como profissional, a que escreve é a mesma que escreve sobre peido e holocausto. Vou escrever informa, vou escrever palavrões, se quiser ler algo sério procure outra fonte.
Para começo de conversa, é preciso esclarecer que não foi criada nenhuma “lei” reconhecendo nada. O STF faz parte do poder JUDICIÁRIO, a quem cumpre julgar e não ao poder LEGISLATIVO, a quem cabe fazer as leis. Nossas leis não são feitas pelo STF (sorriam, são feitas pelo Tiririca), o STF apenas julga o que ele considera e melhor forma de aplicá-las e interpretá-las. Então, não devemos falar em “nova lei” e quando alguém falar em “nova lei” devemos repreender a pessoa aos berros para constrangê-la de modo a que ela estude um pouco antes de falar sobre direito. Se não é lei o que é? Somos obrigados a acatar? É a forma como a lei que JÁ EXISTE deve ser interpretada por todos os tribunais do país, então, um juiz não deve decidir de forma contrária à recomendação do STF. Os juízes são “obrigados” a decidir assim, caso contrário haverá um recurso, a questão chegará no STF e o STF vai passar por cima.
E qual seria essa “lei” que existe regulamentando a união estável e recebeu nova interpretação? Bem, para simplificar muito a história, temos o art. 1.723 do Código Civil, que diz o seguinte:
“É reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família”
Com esta decisão do STF, onde está escrito “entre o homem e a mulher” deve ser interpretado como “entre pessoas do mesmo sexo ou de sexos opostos”. A decisão não criou uma lei nova, apenas deu à lei que já existia uma abrangência maior. “Mas Sally, isso é roubo!”. Sim, é basicamente isso que o STF faz, distorce as coisas para onde quer. No caso, foi para bem, mas vocês não imaginam quantas vezes eles o fazem para o mal, pegam o que não está escrito e “interpretam”, mudando completamente a intenção do legislador. A lei diz uma coisa clara e o STF “interpreta” quase que o oposto. Lembrando sempre que o STF se compõe por INDICADOS DO PRESIDENTE DA REPÚBLICA, ou seja, existe toda uma tendência a decidir de forma favorável a quem te colocou lá.
Bom, para existir união estável não basta que se prove que “tá rolando um sentimento” faz tempo. Independente de homem com mulher, homem com homem, mulher com mulher ou qualquer combinação que se queira fazer, é preciso que se atendam a alguns requisitos para que se possa chamar de união estável. Além dos requisitos citados no artigo que devem estar presentes (convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com objetivo de constituição de família) também existem os requisitos que NÃO PODEM estar presentes.
O parágrafo primeiro do art. 1.723 diz que a união estável não se constituirá se estiverem presentes os impedimentos do art. 1.521, que seriam aquelas causas que impedem o casamento. Ou seja, quem não poderia casar com seu parceiro em função de um destes impedimentos, também não pode ter união estável. Estas causas são basicamente parentescos, já ser casado e outras coisinhas que não vem ao caso. Logo, você, independente de sexo, que paga de amante de uma pessoa comprometida e fica berrando que tem união estável, saiba que NÃO TEM porra nenhuma. Se um homem é casado com uma mulher mas vive em com outro homem há 88 anos, não será caso de união estável.
O fato do STF admitir ser POSSÍVEL o reconhecimento da união estável, não quer dizer que esta união seja dada de forma automática e certa para todo mundo que está junto em um relacionamento. É preciso fazer prova, para evitar uma série de fraudes. As formas mais comuns de provar são correspondências para os parceiros endereçadas ao mesmo domicílio, (preferencialmente contas de luz, água, telefone etc), um contrato de locação de um imóvel em nome de ambos, seguro de vida sendo um dos parceiros o beneficiário do outro, plano de saúde onde um seja dependente do outro, conta bancária conjunta e coisas mais informais como fotos, testemunhas, vídeos, cartas, e-mails e coisas do tipo. Para facilitar a vida, é possível que o casal façam uma escritura declarando a união estável, que será assinada por ambos e levada a cartório. Facilita porque nela pode ser estabelecido o regime de bens do casal, questões ligadas a pensão alimentícia e outras que futuramente poderiam gerar problemas em caso de término de relacionamento.
“Mas Sally, então agora casais homossexuais podem adotar crianças?”. Desde sempre. Não tem absolutamente nada a ver com adoção. A decisão do STF apenas reconhece o direito de que se estabeleça uma relação formal aos olhos do direito daquele casal. Não precisa ser casado para adotar criança. Não precisa nem ser casal. Um pessoa sozinha pode adotar uma criança, um casal de pessoas do mesmo sexo pode adotar uma criança. E não é de hoje.
“Ah tá, entendi, então quer dizer que agora uma pessoa do mesmo sexo pode deixar herança para seu companheiro!”. Não, também não. Podia antes desta decisão, através de testamento. O companheiro não herdava de forma automática, era preciso fazer um testamento, a quantidade dos bens era limitada, mas era possível. Mesmo com o reconhecimento da união estável pode haver briga pelos bens do falecido se os herdeiros vivos discordarem e mesmo com o reconhecimento da união estável pode acontecer de não ser possível deixar todos os bens para o parceiro.
“Mas Sally, então me explica quais foram os direitos que essa decisão deu aos casais de homossexuais!”. Bom, deu alguns direitos previdenciárias como o direito a inscrever parceiros como dependentes da previdência, receber abono-família, receber auxílio-funeral, incluir parceiros como dependentes no plano de saúde, ter licença-maternidade para nascimento de filho da parceira, ter licença-luto, para faltar ao trabalho na morte do parceiro, participar de programas do Estado vinculados à família, inscrever parceiro como dependente de servidor público e outros, sendo que alguns destes já eram reconhecidos mesmo antes da decisão.
Também acabou gerando outros efeitos não necessariamente patrimoniais como o reconhecimento em si da união estável, o direito de usar o sobrenome do parceiro, o direito de acompanhar o parceiro servidor público transferido, a garantia de pensão alimentícia em caso de separação, o direito de assumir a guarda do filho do cônjuge, o direito de adotar o filho do parceiro, o poder ser inventariante do parceiro falecido, o direito a visita íntima na prisão, o direito de alegar dano moral (pedir indenização) se o parceiro for vítima de um crime, o direito de proibir a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição ou a utilização da imagem do companheiro falecido ou ausente, o direito de requerer segredo justiça nos processos que se referirem a qualquer coisa que esteja discutindo a união ou separação, o direito de autorizar cirurgia e risco e direito à herança. Mas, novamente, vários destes direitos já existiam. Lembram com quem ficou o filho da Cássia Eller quando ela morreu? A vida é assim. Quando o direito ignora a realidade, a realidade se vinga e ignora o direito. A maior parte dos direitos já existia e era aplicada, só não era reconhecida formalmente.
No que diz respeito à questão financeira, após a decisão do STF reconheceu-se formalmente o direito ao casal somar renda para aprovar financiamentos, somar renda para alugar imóvel, o direito à impenhorabilidade do imóvel em que o casal reside, fazer declaração conjunta do Imposto de Renda, reivindicar os bens comuns, móveis ou imóveis, doados ou transferidos pelo outro companheiro ao amante,
solicitar o seqüestro (uma espécie de indisponibilidade) dos bens do casal, caso o companheiro os estiver dilapidando e estiverem dissolvendo a união.
Na verdade o que a decisão do STF fez foi dizer “Ok, eu admito, VOCÊS EXISTEM COMO CASAL”, e por existirem como casal, ganham os direitos que todos os casais tem desde sempre de forma oficial. Já era hora, né? Não foi dado nenhum favor, nenhuma medida protetiva, nenhuma benesse. Foi dado o que qualquer casal tem direito. E a maior parte destes direitos já era dado mesmo antes da decisão, a diferença é que agora é OBRIGATÓRIO que sejam dados estes direitos. Para alguns isso significou muito, para mim, significou pouco. Mereciam mais, muito mais. Porque outros grupos historicamente discriminados e execrados ganham cotas, ganham porcentagens em cargos e outros incentivos, enquanto que os gays ganham aquilo que lhes era de direito e isto lhes é dado como um grande presente? Eu hein…
“Sally, agora que o STF reconheceu união entre pessoas do mesmo sexo virou crime xingar homossexual?”. Sempre foi. Dependendo do que você diga, pode configurar crime de calúnia, injúria, difamação e outros. Eles querem uma lei específica para criminalizar homofobia porque historicamente foram um grupo muito massacrado, então, este povinho bunda brasileiro só entende quando se coloca por extenso que não pode esculhambar com gay. Em tese a proteção já existe, só é daquelas leis que “não pegou”. Adoro isso, lei que “não pega”. Uma vergonha mesmo.
“Sally, se só pode ter união estável quem não tem impedimento para casamento, então gays também podem casar?”. Pois é, vai ter que fazer essa pergunta ao STF. A tendência é abrir a porteira mesmo. A própria Constituição da República, em seu art. 226 parágrafo terceiro reconhece a união estável ENTRE O HOMEM E A MULHER e ainda assim o STF passou por cima e decidiu que pode ser entre pessoas do mesmo sexo, por isso, nada impede que o faça com casamento também. Ao menos nada de cunho legal, porque tem umas Igrejas aí que estão quicando no calcanhar. Casamento sim seria um marco significativo, simbólico, um direito concreto que garanta a inclusão. Espero viver para ver.
À comunidade gay, meus parabéns, mas acho que a luta continua. Bacana ser reconhecido como casal, mas tem que poder casar também. Tem que poder ter um beijo gay na TV sem que a produção do BBB se desdobre para tentar evitar. Tem que poder ter beijo gay em novela, porque afinal, tem coisa muito mais pesada em novela. Tem que poder sentar em um restaurante, cinema ou uma praça e tascar um beijo de língua no parceiro do mesmo sexo sem que isso cause qualquer estranhamento. Isto é tirar o direito do papel e fazê-lo valer na realidade. Um direito oculto à previdência social não basta. Quero reconhecimento legal em atos públicos, como casamentos, cotas para homossexuais no exército, em empresas e em cargos públicos (aproveita e bota aí cotas para argentinos também que a gente é discriminado pra cacete). Eu não sou favorável a cotas para NINGUÉM, mas já que o Brasil vai adotar essa política, tem que incluir os gays.
Se você está lendo isto chocado, melhor repensar sua postura. Já sinto um princípio de preconceito contra heteros aqui no Rio de Janeiro. Pode chegar o tempo onde o discriminado seja você. E se vierem me dizer mais uma vez que os homossexuais vão quebrar a previdência, vai ouvir um palavrão. Um recado para quem julga as pessoas só porque elas fazem sexo anal: será que se todo mundo soubesse detalhes do que VOCÊ faz quando faz sexo, você também não seria discriminado? Pense nisso.