Vocês votaram, eu obedeço. Hoje é dia de Eu, Desfavor.
Ictiofobia. É esse o nome de quem, como eu, tem fobia de peixes. “Mas… de PEIXE, Sally?”. Sim, de peixe, porra. “Mas peixe não faz nada… é um bicho limpinho, vive na água, blá blá blá”. Fobia é um medo irracional. Eu tenho fobia de peixe, dá licença? Hoje está controlada (alou?, dez anos de terapia?) mas na época era mil vezes pior do que o meu medo de lagartixa.
Não é uma coisa que eu saia contando por aí quando começa a sair com alguém, primeiro porque a pessoa vai me achar maluca (não que eu não seja, é que eu prefiro que descubra mais tarde, quando já gosta de mim) e segundo porque vai ficar com esse discurso tentando me convencer que peixe é inofensivo e eu vou mandar tomar no cu. Tem que manter toda uma finesse no começo, né? Só no começo. Depois eu mando tomar no cu por qualquer merdinha.
Enfim, estava saindo com um Zé Ruela. Era bem interessante o Zé Ruela. A coisa estava começando a ficar séria. Eu estava realmente interessada no Zé Ruela. Estava naquela fase nojenta onde você sai sempre com a pessoa mas ainda não tem verbalização, e vocês sabem, essa fase me deixa surtada. Eu queria uma verbalização.
Um belo dia, o Zé Ruela me liga e começa uma conversa estranha. Disse que achava que precisava conversar pessoalmente mas antes queria saber uma coisa, para decidir se a gente iria conversar pessoalmente ou não. Perguntou se eu ainda gostava do meu ex-namorado, porque era um término recente e ele queria saber onde estava pisando. Eu disse que não, claro que não, que era um relacionamento falido etc. Ele disse então que queria conversar comigo naquela noite.
Desgraçou meu dia, o infeliz. Primeiro que fiquei tão nervosa que nem comi, e mesmo que não estivesse nervosa, não teria tempo de comer porque meu intervalo para almoço foi usado para fazer mão e pé, que estavam em um estado lastimável, uma coisa vermelha descascada medonha.
Enquanto fazia mão e pé ligava para as minhas amigas, histérica, especulando sobre o que ele iria conversar comigo. Porque eu sempre acho que vou levar um fora. Eu tenho TOC com fora quando estou nesse período quase-namoro. Fiquei me perguntando se viria a verbalização ou um fora.
Saí do trabalho voando para casa, tomei banho e me arrumei em tempo recorde, daquele jeito que só mulher apaixonada faz: enquanto passa maquiagem veste a calça ao mesmo tempo e ainda confere no celular se ele não ligou. Dez mil coisas ao mesmo tempo.
Daí, claro, tive meu ataque de “não quero ir” já narrado em outros textos meus. Fiquei gritando que não queria ir até que ele ligou dizendo que estava me esperando na porta da minha casa e uma amiga minha me empurrou porta afora me mandando parar de ser frouxa.
Entrei no carro dele, gelado (porque todo homem deixa o carro feito uma geladeira, caralho? Vocês suam enquanto dirigem?). O desgraçado não deixou transparecer nada, ele parecia normal. Eu pensei “eu devo ser muito doente mental para me abalar tanto com uma simples saída, o sujeito ta aí, numa boa, blasé, e eu quase vomitando de nervoso… eu sou uma loser”.
Perguntei onde iríamos e ele disse que era uma surpresa. Travei no banco do carona. Mulher sabe muito bem o que essa “surpresa” costuma significar. Comecei a pensar em um jeito educado de escapar da “surpresa” e comecei a sondar. Tentei ser discreta, mas não é o meu forte:
Sally: “Que surpresa? Eu sou curiosa, não gosto de surpresas!”
Zé Ruela: “É surpresa”
Sally: “Ahhh… dá uma dica…”
Zé Ruela: “É um lugar que a gente vai para comer”
Normalmente, eu saberia interpretar que estava sendo levada para um restaurante. NORMALMENTE. Mas, na emoção do momento, completamente transtornada, me subiu um troço e eu soltei sem pensar:
Sally: “mas… você diz… para comer como?”
Zé Ruela: “comer”
Sally: “comer alguém?”
Vocês jogam The Sims? Eu jogo. Sabe quando os Sims estão conversando e começam a se desentender e aparece um sinal de menos (subtração, para ser mais precisa) no alto da cabeça deles? Pois é, juro que vi um “menos” vermelho saindo do alto da cabeça do Zé Ruela. Perdi pontos nesse momento. Isso me desestruturou. Bem, os homens não devem ter entendido o que senti, porque macho que é macho não joga The Sims (ou não admite). Imagina que seu time entra numa final de campeonato e toma um gol nos primeiros cinco minutos. Foi isso que eu senti.
Depois da minha lastimável pergunta ele riu e disse que iríamos a um restaurante japonês que eu já tinha dito que queria conhecer. Fiquei roxa de vergonha e disse com a maior cara de pau “Eu sei, bobo! Estava brincando!” (estava nada, estava é descontrolada, isso sim).
Chegamos no restaurante japonês, que hoje nem existe mais. Era daqueles chiquerésimos, cheio de frescuras. Eu já fico meio intimidada em ambientes assim, cheios de gente rica. A situação só piorou. Se eu já estava apavorada e nervosa, agora estava apavorada, nervosa e em pânico.
Seguiu-se um dos maiores vexames em matéria de jantar que eu já protagonizei. Pior do que um jantar fino onde eu tentei cortar uma lagosta de plástico no prato (porra, como eu ia saber que a lagosta era aquela merda daquele purê mastigado que estava no canto?). Vou contar para vocês, que são meus amigos. Não espalha não.
Na entrada do restaurante havia um grande lago com carpas, aqueles peixes MEDONHOS, ENORMES E COLORIDOS que japonês cria. Era preciso cruzar uma pontezinha de merda de madeira, por cima das carpas para entrar. Para piorar, o CHÃO da porra do restaurante era de VIDRO, então, as carpas ficavam passeando debaixo do seu pé!
Cá entre nós, Amigo Leitor, independente da minha fobia de peixe, vocês não acham de péssimo gosto expor os animais que você vai comer? Vamos combinar, alguém iria em uma churrascaria que tem vaquinhas te olhando do lado de fora? Alguém comeria uma feijoada com um monte de porquinhos passeando do lado? MAU GOSTO. MAUS GOSTO DO CARALHO.
Vi aquilo e fiquei congelada. Como disse, minha fobia era descomunal, a ponto de não conseguir entrar em um recinto que tivesse um aquário. Uma ponte separava a gente do restaurante, por baixo dela carpas passeavam. Digo mais: eu vi uma carpa pular, apesar de todo mundo me dizer que carpas não pulam. EU VI!
Ele me puxou pela mão e disse “Vamos?”. Sabe mula quando empaca com as quatro patas no chão? Era eu. Travei. Simplesmente travei, não me mexia. Travei e sorria. Fiquei sem reação. Ele olhou meio espantado e deu meio que um puxão no meu braço. Eu continuei travada. Travada e sorrindo. Parecia uma maluca (parecia?). As pessoas que estavam nas mesas do pátio do restaurante começaram a olhar.
Ele começou a ficar impaciente e disse “Algum problema?”. Eu pensei que se falasse que tinha medo de peixe ele ia me achar maluca, além disso iria arruinar a surpresa que ele tinha preparado e quem sabe ele ficasse meio broxado e desistisse da verbalização. Eu queria muito aquela verbalização. Fiquei pensando em um jeito de inventar alguma coisa que me fizesse parecer menos doida varrida e que não fizesse parecer que ele deu uma bola fora com a surpresa dele.
“Algum problema, Sally?” – ele repetiu. Essa era a hora de me jogar no chão e fingir uma convulsão, mas eu não tive essa presença de espírito. Vocês sabem que desgraça vem em bandos, né? Nesse momento eu vi que alguém acenava para mim de uma mesa. Era meu ex. Estava ali com um grupo de amigos. Realiza: QUE HOMEM VAI A UM JAPONÊS COM AMIGOS?
Tudo bem que o Rio de Janeiro é um ovo e tem apenas uma meia dúzia de bons restaurantes, a gente acaba se esbarrando com todo mundo mesmo, mas porra, era muito azar.
O Zé Ruela estava virado para mim, de costas para as mesas, não viu meu ex acenando. Eu, no desespero de fazer com que ele não olhe para trás e veja, comecei a agarrar ele, do nada. Para sair dali, eu disse no ouvido dele “Quero sair daqui JÁ, não agüento mais esperar um minuto!” e fiquei agarrando ele. Curiosamente, ele me disse que primeiro iríamos jantar, porque ele tinha uma coisa importante para dizer. PORRA! Homem tenta me comer o tempo todo, na hora em que eu precisava, o desgraçado queria conversar!
Quando ele virou, meu ex tinha parado de acenar. Ele me puxou em direção da ponte. Eu continuei travada. Ele me perguntou o que estava acontecendo, bastante irritado (sinais de menos subindo novamente). Eu estava sem reação, não tinha conseguido pensar em uma boa desculpa. Eu apenas disse “Desculpa, mas eu não quero entrar aí”. Ele, cada vez mais irritado, me perguntou o motivo e eu disse que não queria e pronto: “Não quero, por favor, vamos embora?”.
Ele ficou muito chateado. Primeiro me perguntou se eu estava maluca e depois me mandou parar com a frescura. “É por causa da roupa? Você acha que a roupa não está boa?”. Eu estava com aquela cara ridícula de criança logo antes de começar a chorar e ele estava cada vez mais irritado. Chegou a um ponto em que ele disse “Chega disso, você vai entrar!” e me pegou e me colocou no ombro dele, de cabeça para baixo, e foi entrando comigo à força. Eu, na minha condição patológica de fobia aguda, comecei a gritar de pavor. O restaurante todo parou.
Meu ex levantou da mesa e foi na direção dele. Pararam os dois frente a frente no meio da ponte, com as carpas quicando no calcanhar logo abaixo e eu berrando feito uma sirene:
Zé Ruela Ex: “Tá maluco, Mermão? Não ta vendo que ela não quer? Solta ela!”
Zé Ruela: “Não se mete, dá licença que a gente vai entrar”
Zé Ruela Ex: “Aqui você não vai entrar não, só se ela quiser”
– isso tudo eu berrando, de cabeça para baixo, com o nariz quase enfiado nas carpas –
Zé Ruela Ex: “Me erra! Agora que você viu a gente resolveu se meter?”
Zé Ruela: “Seu imbecil, eu to vendo ela se recusar a entrar faz meia hora!”
Sally: “PELO AMOR DE DEUS, DISCUTAM FORA DA POOOONTEEEEEEE”
Garçom: “Os senhores estão assustando os clientes…”
Zé Ruela Ex: “COLOCA ELA NO CHÃO!”
Sally: “NÃÃÃÃÃÃOOOO! SAIAAAM DA PONTE CARALHOOOOO!!!”
*silêncio
*todo mundo me olhando
Saindo da ponte, pedi para meu ex voltar lá para dentro, disse que estava tudo sob controle.
Zé Ruela: “Agora eu entendi porque você não queria entrar! É porque seu ex está aí e você ainda gosta dele, não queria ser vista comigo!”
Sally: “NÃO! NÃO! JURO QUE NÃO!”
Zé Ruela: “Você ainda está saindo com ele, né? É por isso que ele não podia saber da gente?”
Sally: “AI MEU DEUS! NÃÃÃO! NÃO É NADA DISSO!”
Zé Ruela: “EVIDENTE QUE É!”
Sally: “Não! Não! Não entrei porque eu tenho medo de peixe!”
Zé Ruela: “Hã?”
Sally: “ME-DO-DE-PEI-XE! MORRO DE MEDO DE PEIXE!”
Zé Ruela: “Desses peixinhos aqui?” *apontando para as carpas
Sally: “éééééé!”
Zé Ruela: “Você não tinha uma mentira PIOR para inventar não?”
Sally: “Eu juro que é verdade! EU JURO!”
Zé Ruela: “Já entendi. Tchau. Seja feliz com ele.”
Virou e foi embora. Não fala direito comigo até hoje.
Para me dizer que riu da minha desgraça, para me dizer que peixe é um bicho bonzinho que não vai me morder e para dizer que minha psicoanalista vai para o céu em função do milagre que ela fez comigo: sally@desfavor.com