Deus nosso.
| Desfavor | Ele disse, Ela disse | 5 comentários em Deus nosso.
A humanidade lida com o conceito de deuses há milênios, de inúmeras formas diferentes. E baseados nelas, Sally e Somir discutem sobre quais apresentam o melhor custo/benefício, mesmo sendo ateus. Os impopulares têm sua experiência mística.
Tema de hoje: das ideias de deus ou deuses, qual a menos nociva para as pessoas e a sociedade em geral?
SOMIR
Às vezes a gente acerta de primeira: o “deus natureza” original foi o conceito mais saudável de divindade produzido pela humanidade até aqui. Deus orgânico, sem aditivos ou corantes industriais… melhor que isso só mesmo largar essa muleta e ter um sistema de compreensão da realidade baseado em evidências, experimentos e conhecimento reprodutível acumulado e aperfeiçoado através das gerações.
E de uma certa forma, os deuses análogos à natureza são a coisa mais próxima da ciência que tivemos antes dela amadurecer. O conceito do deus natureza pode ser encontrado em diversas religiões antigas, com povos que tratavam com reverência uma série de fenômenos naturais como o clima e o ciclo da vida. Esse conceito era a base da crença de povos ancestrais, e de uma forma ou de outra, manteve-se vivo em diversas religiões politeístas: por exemplo, o deus do trovão pode ser encontrado na religião grega com Zeus, na nórdica com Thor, na tupi-guarani através de Tupã, e até mesmo no candomblé através da figura de Xangô. Mesmo em povos totalmente separados geograficamente, a ideia de entidades divinas gerenciando fenômenos naturais encontrou seu caminho para a cultura popular.
Há algo de muito intuitivo em tratar a natureza como uma divindade: até mesmo num mundo tão tecnológico como o nosso, as forças naturais ainda têm o poder de criar e destruir muito além do nosso controle. Poucas coisas nos deixam tão humildes quanto contemplar um processo natural como um terremoto, furacão ou tsunami. A natureza, especialmente em grandes escalas, pode ser aterrorizante e nos expor como os macacos pelados que somos. Então, na honesta inocência daqueles que começaram a tratar esses fenômenos como divindades, era uma forma de lidar com a realidade, por mais difícil que fosse.
E mesmo que a ideia de religião tenha seus problemas, muitos dos piores deles são mitigados por quem considera seus deuses processos naturais: o deus está presente e interagindo diretamente com as pessoas, eliminando a necessidade de aceitar a “bomba lógica” que é acreditar em formas misteriosas de agir. Religiões modernas precisam colocar esse veneno na sua cabeça para funcionar, fazendo com que a pessoa suspenda seu pensamento crítico para engolir o discurso de seus sacerdotes pra lá de humanos. O deus natureza é muito menos explorável nesse sentido: os atos divinos são inequívocos e não te impedem de buscar uma melhor compreensão do processo, nem que seja como uma forma de se aproximar dessa divindade.
O deus natureza nos incentiva a aprender com o mundo, sem colocar desejos e emoções humanas no centro de tudo. Trovão é trovão, fogo é fogo, fertilidade é fertilidade… e mesmo com a degeneração do conceito para formas mais humanas e caprichosas com o passar dos milênios, ainda se mantinham expectativas mais realistas na lida com as forças naturais. Os vikings pediam ventos bons para Thor, e não felicidade em geral. A relação com a realidade era muito mais direta.
Mas o ser humano tende à preguiça e ao açúcar: quanto mais o tempo passa, vai se afundando cada vez mais numa zona de conforto religiosa que culmina no venenoso deus monoteísta onipotente. O deus das religiões mais populares dos dias atuais é 100% humano, por mais que atribuam a ele poderes infinitos. É um deus de favores pessoais que escolhe favoritos. Não é natureza, é o desespero humano de tentar controlar as coisas. Deus defende a causa que você quiser, deus odeia quem você odiar. Esse deus moderno é um escravo dos desejos de seus fiéis, pronto para ocupar todos os buracos de afeto e pertencimento inerentes à nossa condição.
O deus natureza não te permite fuga, ele está ao redor e eternamente ativo, seja no clima, seja nas formas de vida. Ele te permite fazer parte do mundo, e te incentiva a aprender sobre a realidade, porque com ele não existe alternativa a conhecer e explorar a natureza para seu benefício próprio. O deus natureza mata o fraco e o despreparado, não o que tem menos fé. Ele nos incentiva a domar as forças naturais e encontrar harmonia com o ambiente. O deus natureza não se importa se você está triste ou feliz, ele se importa se você respeita os seus limites e se você se esforça para alcançar seus objetivos. Ele dá e tira, independentemente do que você acredita ou não.
Se o ser humano tem essa necessidade toda em acreditar que faz parte de algo maior, o ecossistema é um excelente candidato. O deus natureza humaniza a realidade mais do que deveria, mas ainda sim é muito mais honesto do que as alternativas atuais. Na verdade, o raio é gerado por um diferencial de cargas entre atmosfera e crosta terrestre, não por um ser furioso, mas desde que as pessoas não acreditem que o raio é direcionado por alguma crença interna delas, existe espaço para evolução.
O deus interno que Sally defende exige muito trabalho para não descer um degrau rumo ao deus pessoal das religiões mais populares. Mesmo que a ideia tenha surgido com boas intenções, o caminho rumo à degeneração do conceito é muito atraente. A partir do momento que humanizamos demais qualquer divindade, a tentação de reduzir sua compreensão para se equiparar com a nossa é grande demais: o deus do racista se importa com quanta melanina tem na pele de uma pessoa, o deus do ignorante acredita que a Terra é plana, o deus do egoísta decide em seu favor… trazer deus para dentro é pegar uma ideia gigantesca e tentar contê-la dentro de uma mísera mente humana. Evidente que vai acabar limitada, assim como nós.
O deus natureza não sofre desse mal: ele está lá fora, chacoalhando os elementos e enxergando o mundo como um todo, e nós somos apenas uma parte disso. O deus natureza não precisa ser tão pequeno como nós, ele tem muito mais o que fazer do que escutar orações e decidir resultados de jogos de futebol. E na falta da ciência, dificilmente fica melhor do que isso. O que consideramos como ciência hoje em dia é o herdeiro direto desse deus natureza, com os deuses pessoais sendo um preguiçoso caminho alternativo criado por gente que não sabe o que fazer com pensamento abstrato. O deus natureza não cria massacres e inquisições, ele leva embora tudo o que estiver no seu caminho, e só te pede para prestar mais atenção na realidade.
E mesmo que seja uma forma limitada de ver as coisas, pelo menos o deus natureza existe.
Para me chamar de pagão, para me mandar ir abraçar uma árvore, ou mesmo para dizer que é muito cedo na semana para pensar em tanta coisa: somir@desfavor.com
SALLY
De todos os conceitos de “Deus” que existem, qual é o menos nocivo às pessoas e à sociedade?
A ideia de Deus interno: toda força e poder que você precisa está dentro de você mesmo (e não fora, nem em outra pessoa nem em uma criatura divina) e você pode aprender a acessá-lo sempre que quiser. Você é senhor da sua vida, não depende de nenhum ritual, mandinga ou bondade de uma criatura externa.
Qualquer conceito de Deus externo (divindade, pessoa, natureza, animal) tira a responsabilidade daquele que acredita em Deus. A pessoa se torna um mero mendigo, um pedinte, implorando para que esse ente externo o ajude, o atenda, o ampare. Para com isso! Você é o responsável pela sua vida, apenas você. Não uma vaca, não um senhorzinho sentado em uma nuvem no céu, não um ser humano “escolhido”, não uma floresta. Você, apenas você.
Você está onde está pelas escolhas de vida que fez, que te trouxeram aqui. Você criou sua atual situação e você tem o poder de descria-la. Nada de ficar pedindo para algo fora de você te ajudar. É sua responsabilidade e, acima de tudo, é seu poder. Sim, você tem esse poder. Muita gente nega esse poder pela carga de responsabilidade que ele gera (muito mais fácil culpar uma vontade divina de um ente externo), mas o poder é todo seu.
A ideia de um Deus externo, por mais fofo que ele seja, é desempoderadora. Tira o poder do indivíduo para colocá-lo nas mãos de uma entidade: um coala, uma criança, uma garrafa de vinho, não importa o que você adore, saiba que o poder está em você e não na alegoria que se convencionou depositar esse poder. Ceder esse poder é nocivo.
O grande problema do “Deus interno” é: se você e Deus são a mesma coisa, você não precisa de prepostos. Não precisa de religião. Não precisa de rituais. Não precisa adquirir bens materiais para louvar esse Deus. Obviamente quem de alguma forma orbita em torno de religiões não vai gostar nada disso. Onde já se viu acessar Deus sem desembolsar dinheiro, sem se deslocar, sem abaixar a cabeça para algum ritual?
Eu sempre disse aqui: não tenho nada contra Deus, o que me incomoda são os seus prepostos. A partir do momento em que se tira o poder da pessoa e se coloca em qualquer outro lugar, ela fica mais amedrontada, mais submissa, menos propensa a se sentir segura e autônima. Seja pelo medo do inferno, seja pelo medo de uma catástrofe natural, quando o poder está fora a pessoa sempre tem o que temer. Quando o poder está dentro não.
Quando o poder é seu e você pode acessá-lo quando quiser, você não precisa de mais ninguém. Não tem mais ninguém te dizendo o que fazer, como fazer, quando fazer. Talvez em um primeiro momento seja um caos? Sim, sociedades involuídas sempre se beneficiam de alguma contenção social na base do medo, que cai como uma luva para o Brasil, mas, no saldo final, seria benéfico.
A verdade é que essa contenção social pelo medo não dura muito. As cadeias estão cheias de evangélicos tementes a Deus que saem com a Bíblia debaixo do sovaco e voltam a delinquir. Todo mundo aqui conhece um católico que usa drogas ou trai a esposa. Contenção não é bem a palavra, talvez o que a religião crie seja uma hipocrisia, um verniz social falso, que nos impede de ver as coisas como elas realmente são (sórdidas) e fazer por onde melhorar.
Se removemos essa contenção, se você passa a ser o único responsável pela sua vida, cada um de nós ganha um poder muito grande. Com grandes poderes, grandes responsabilidades. Se a pessoa merdar, não vai ter amigo imaginário para pedir clemência, ela vai ter que lidar com isso diretamente com a sua consciência. Isso sim pode ser um mecanismo eficiente para educar ou conter esse povo animalesco. Então, por mais que inicialmente fosse um caos, seria um caos que educa.
Muito fácil fazer uma pá de bosta quando a sua religião te diz que se você se confessar e se arrepender vai para o céu. Eu quero é ver como esse povo grotesco se comporta quando a responsabilidade cair sobre seus ombros e não tiver um mecanismo mágico para limpar sua barra.
Além disso, se a pessoa parte da premissa que o poder está dentro dela, isso a obriga a olhar para dentro, que é algo que está faltando nos dias de hoje. Olhar para dentro, refletir, se conhecer, se entender. Quer acessar o que há de melhor em possibilidades para você? Beleza, vai ter que fazer um trabalhinho interno. Chega de distrações, chega de atalhos. Oferendas, danças para o Rei Sol, sacrifício de animais, rezas ou o que quer que seja só servem como barganha, como moeda de troca automatizada para limpar as cagadas que as pessoas fazem.
Em vez disso, vamos refletir sobre as cagadas? Entender de onde elas vêm e corrigir a mente aos poucos, para não viver na merda? É um pouquinho mais trabalhoso do que as outras versões, mas ao menos é de verdade e proporciona ganhos concretos, não ilusórios.
Não tem poder fora de você. Se Deus fosse um ente externo e poderosos certamente já teria voltado para dar uma surra no que fizeram com a sua história através da religião. Se o planeta ou a natureza fosse um ente externo poderoso, já tinha aniquilado o ser humano que só causa destruição. Não tem para onde correr, é você quem cria sua realidade, por mais medo e resistência que você tenha a essa ideia.
E aqui surge um filtro muito interessante: a gente vê quem é gente que faz, gente que quer, gente com gana. Estas pessoas ficam felizes ao entrar em contato com essa ideal: que legal, tudo depende delas, sinal que tudo vai ficar bem. Ao mesmo tempo, gente que refuta essa ideia, que desgosta dela, que foge, é gente que não tem um pingo de autoconfiança: fodeu, não pode depender da pessoa, se não ela está fodida.
Relutem, refutem, esperneiem. Deus está dentro de vocês e em nenhum outro lugar. Bobo daquele que precisa de intermediários e alegorias para acessar esse Deus. Esses mecanismos causam um dano social enorme.
Para dizer que tem umas pessoas aí que não tem Deus dentro delas, para dizer que a religião menos nociva é a de seitas suicidas, pois eles não ficam muito tempo vivos ou ainda para dizer que sempre soube que você era Deus: sally@desfavor.com
O melhor Deus eu não sei, mas o meu Deus interior prefere INRI Cristo a Edir Macedo.
POUCOS COMENTÁRIOS PRA UM ASSUNTO TÃO DENSO
O que normalmente é a regra nesse tipo de tema.
“Quer acessar o que há de melhor em possibilidades para você?”
Não há ideia mais libertadora. Em vez de dispor do seu bem-estar (e de seus bens) para buscar força e poder que já lhe são inatos submetendo-se a algo ou alguém, o que por si só não faz o menor sentido.
Você chegou a um patamar admirável, Suellen. Sua mente, suas ideias… você é uma luz para todos nós!