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Entrando na guerra.

Entrando na guerra.

| Desfavor | | 2 comentários em Entrando na guerra.

Continuamos vendo pessoas ao redor do mundo, inclusive no Brasil, “entrarem” na disputa entre Israel e Irã. Se você não está na linha de fogo, é muito estranho que seja uma disputa. Desfavor da Semana.

SALLY

No meio desse conflito entre Israel e Irã tem muita coisa bizarra em matéria de postura e opinião acontecendo. Eu vou fazer um rápido passeio e o Somir vai aprofundar o problema principal que, na nossa opinião, é uma das causas da maior parte dos comportamentos bizarros que estamos vendo, sejam eles relacionados a guerra ou não.

Vamos começar pela contradição mais gritante: grupos “minoritários” que defendem Palestina, Hamas, Irã e tantos outros governos que os matariam se tivessem oportunidade. Se você faz parte do grupo LGBT, saiba que em qualquer desses grupos/países, você seria morto, de forma cruel, por entenderem que você é uma aberração e não deveria existir.

O que leva pessoas a defenderem países, regimes e pessoas que negam seu direito a existência? É como se galinhas se unissem para protestar a favor do KFC. Você já se perguntou como você reagiria se um país, um regime ou um povo negasse seu direito de existir? Pessoas que, se colocassem as mãos em você, te torturariam e te matariam apenas pelo que você é?

O grau de dissonância cognitiva que alguém precisa ter para defender seus potenciais algozes tem que ser muito alto, quase doentio. E eu acredito que um dos combustíveis seja esse sentimento “anti-EUA” que se convencionou ser bandeira da esquerda brasileira.

Percebam que ninguém é obrigado a gostar dos EUA. Eu mesma não gosto, nunca gostei, você vai achar muito texto meu dizendo que é um povo infantilizado, tosco, que a qualidade de vida em lugar sem uma boa saúde acessível é terrível, que a saúde mental é completamente deteriorada e até dizendo que americano é brasileiro que ganha em dólar.

Porém, levantar bandeira de EUA como vilões do mundo a serem combatidos é infantil. Se você passou dos 20 anos e faz isso, precisa ou de um choque de realidade, ou de terapia. Quem pega qualquer coisa e deposita nela a culpa por tudo de ruim é criança: um vilão é sempre o responsável por tudo de negativo que aconteça ou venha acontecer. Adultos, normalmente, conseguem ter uma evolução mental e psíquica de ver diversos tons de cinza, e não tudo preto no branco. Conseguem ver a construção para que algo ruim aconteça, e nunca é culpa de uma coisa só.

Infelizmente, muito adulto no Brasil tem mentalidade de criança e, por diferentes motivos, seja aplauso da sua bolha, seja pela incapacidade de ver nuances, defende o indefensável. Guerra não é jogo de futebol. Não é para tomar lados. É, em primeiro lugar, para ser contra, pois quem mais se ferra é civil inocente. Depois, pode se avaliar ato a ato e decidir o que quer reprovar de acordo com um contexto. Tomar um lado em uma guerra é validá-la. E quem valida guerra é burro ou canalha.

Mas a pessoa veste a camisa de um dos lados e aplaude tudo que ele faz e critica tudo que o outro lado faz, banalizando uma das maiores tragédias do mundo moderno, como se fosse um Fla x Flu. Isso gera incoerências, contradições e até defesa de pessoas que, se pudessem ter acesso a eles, os matariam sem dó. Em nome de ser contra os EUA, defendem grupos que violam sistematicamente os direitos humanos. A que ponto chegamos…

O mais triste nisso tudo é que todo brasileiro que odeia os EUA é um vassalo dos EUA e sequer percebe, pois nem resistência sabe ser. Mesmo aquele que diz odiar, prestigia os EUA. O brasileiro pautou toda sua cultura, estrutura, lazer, sistema de trabalho e sociedade no modelo americano. Eu tinha alguma ideia disso, mas só percebi a dimensão quando saí do Brasil. Foi aí que me dei conta que tudo, basicamente tudo do Brasil é chupinhado ou adaptado dos EUA.

O que só torna mais patético pessoas que levam um estilo de vida americano atacando o país. Nessa hora sempre surgem os militantes para dizer que eles não levam uma vida pautada nos EUA, mas na real, levam sim, só não sabem disso pois desde pequenos foram criados nessa realidade e presumem que ela seja brasileira. Não é. A vida de vocês é 100% americana revestida de algumas alegorias nacionais. É EUA com saci, carnaval, festa junina e samba.

Fica parecendo aquele filho que vive na casa do pai, que ganha mesada do pai, que depende do pai, mas vive criticando o pai e desmerecendo tudo que vem dele, que, por sinal, é outra figura muito comum na cultura brasileira. O Brasil com os EUA é esse filho em larga escala. Pelo amor de Deus, bebam de outras fontes se quiserem odiar esse país. Vai acontecer? Claro que não.

É o clássico Brasil: está tão umbilicalmente ligado a algo, de forma tão subserviente, dependente e incontrolável, que toma raiva daquilo. O babaca que vai bater em travesti e depois vai em sauna gay. O idiota que pauta a vida na defesa da família e depois bate na esposa. O imbecilóide que diz que aborto é assassinato e depois leva a amante para fazer aborto. É um modo de funcionar. E a maior parte das pessoas vai viver e morrer sem nunca perceber esse mecanismo.

Parece aquela criança que, na escolinha, puxa o cabelo da menina pela qual está apaixonado: não sabe lidar com o que sente e isso transborda em uma pseudo-rejeição irracional cujos atos e sentimentos contradizem. É bobo, infantil e todo mundo que está de fora e é adulto percebe o que está acontecendo. Mas a criança tá lá, cheia de raiva e jura que odeia a coleguinha.

Estão dispostos a defender quem os assassinaria para se posicionar contra os EUA mas não parecem estar dispostos a parar de consumir seus produtos. Curioso. Dão muito dinheiro para os EUA. “Mas Sally, tal coisa que eu comprei foi feita na China”. Sim, a pedido dos EUA. O chinês ganhou uma moeda por um dia de trabalho em um porão escuro, quem realmente ganha dinheiro é a marca americana que você consome.

Se você está disposto a defender gente que te assassinaria tal é seu repúdio pelos EUA, não faz nenhum sentido consumir nada de marca americana. Ou assistir nenhum filme, seriado ou peça. Ou viajar para lá. Ou prestigiar de qualquer forma qualquer coisa que venha de lá. Se o repúdio é forte o bastante para defender quem te mataria, todo o resto deveria ser apenas uma consequência natural.

Vamos amadurecer? Vamos parar de depositar a culpa de tudo em um único lugar? Vamos sair dessa dualidade onde um país é a causa de todos os males? Tá feio. Tá feio demais.

Se você, sob algum pretexto, defende um grupo que te mataria, você não é herói, não é mais consciente do que o resto das pessoas e não é bom. É apenas um idiota.

SOMIR

A minha linha política hoje em dia é basicamente antiautoritária. Por isso, mesmo quando um lado me parece pior pelas ideias atrasadas sobre ciência e liberdades pessoais, se o outro tem esse viés de concentração de poder, eu mantenho a desconfiança. Acredito que a fase de reis e ditadores já passou e não ajuda a humanidade em nada buscar isso de volta.

Por isso, critico Israel pelos abusos que comete sem achar que o modelo iraniano é válido. Muita gente parece esquecer que ser contra a guerra é uma posição válida. E aqui, a ideia que explica por que tanta gente resolve “vestir a camisa” de Israel, e bizarramente, do Irã: o mundo virou conteúdo por causa da comunicação em tempo real.

Conteúdo é uma palavra antiga com novos significados na era digital. Com tanta gente reagindo em tempo real e infinitas conexões entre humanos, nossa relação com o que acontece no mundo veio para o primeiro plano. As coisas existem mais como plataforma para reações do que como coisas em si. Mais do que a troca de mísseis entre israelenses e iranianos, a guerra é conteúdo explorável por atenção e todos os ganhos secundários dessa atenção.

E isso influencia a forma como as pessoas pensam. O elemento principal nesta análise é como isso vai fazendo as pessoas acreditarem que precisam ter uma opinião forte sobre o tema. Você provavelmente tem uma opinião forte sobre alguém que divide a casa com você ou sobre um tema com o qual trabalha diariamente. Você pode ter opiniões fortes sobre seus hobbies e interesses cotidianos… mas dificilmente vai ter uma opinião forte sobre uma guerra cujas bombas não caem no seu quintal.

Sim, eu sei: defina opinião forte. No contexto deste texto, opinião forte é aquela baseada no impacto que as coisas têm na sua vida. Sua opinião sobre o passo certo da dança que mais gosta, da tática certa para o jogo que joga, sobre a melhor forma de fazer algo no seu trabalho… ou mesmo sobre o ronco da pessoa que dorme ao seu lado; essas são opiniões fortes baseadas em experiência e conhecimento aprofundado de como isso mexe com a sua vida.

Israelenses e iranianos na linha de fogo conseguem ter opiniões fortes sobre a guerra. Nós não. E isso é uma coisa ótima, eu não quero ter opiniões fortes sobre ter medo de ser explodido por um míssil balístico. Mas quando a realidade é substituída por conteúdo, é como se estivéssemos lá. O que aquelas pessoas que vivem a guerra estão dizendo começa a parecer coisa nossa. Repito: não é.

O comportamento esperado de quem consome conteúdo é reagir. E como tudo acontece tão rápido por causa da comunicação de massa, pessoas acabam se enganando que estão lá. A fúria de israelenses e iranianos por causa do que acontece diretamente com eles é transferida para observadores externos. E aí, muita gente acredita que precisa entrar na guerra de alguma forma.

É que apesar de tudo, ainda temos empatia. Quando alguém aparece para nós com todos os sentimentos de quem vive a guerra, eles pegam na gente. Seja numa vítima desesperada, seja num líder tentando unir seu povo numa causa, alguma coisa passa pela tela, grande ou pequena. E aí a nossa análise pode ser contaminada. É humano sentir o que o outro sente.

Só que tem algo menos nobre que vem junto: empatia também é uma fonte de entretenimento. Quando você lê ou ouve uma história, quando você vê um filme ou série, é a capacidade de se colocar no lugar do outro que faz daquela experiência algo realmente interessante. O meu ponto aqui é que guerras transformadas em conteúdo são muito eficientes em gerar atenção e toda uma gama de sentimentos.

Especialmente se você está longe das explosões. Mais ou menos como num filme de guerra, é a sensação sem o perigo. Tanta gente toma lados e começa a defender o indefensável porque o conflito da vez é conteúdo. Público LGBT+ defendendo o Irã não está conectando os pontos entre o sistema iraniano e sua vida. Se não estão morrendo na mão do regime, não está acontecendo de verdade.

É meio como torcer por uma personagem numa série. Você não precisa concordar de verdade, só ter interesse no avanço daquela história. E mais, como um dos lados é muito mais forte que o outro, gera uma torcida inconsciente pelo azarão. Se a pessoa não estiver se forçando a entender o que aconteceria se um dos lados tivesse poder real sobre ela, é bem possível que não entenda mesmo.

Estou absolvendo os defensores do Irã? Não. Porque eu nem estava culpando mesmo. A diferença fundamental entre os textos da Sally e os meus é que ela acha que essas pessoas podem ser melhores. Eu acho que não, porque não conseguem ou não querem ter o trabalho. Tem uma base mínima de inteligência e conhecimento mesmo para entender essas questões sociopolíticas e a única alternativa humanitária é aceitar as limitações de quem não vai dar o próximo passo.

Elas mal sabem por que estão falando ou fazendo besteira. Eu já escrevi isso outras vezes: burrice e ignorância não doem, não custa tão caro assim na mente de alguém defender o Irã mesmo que o Irã fosse o torturar e matar se vivesse minimamente parecido com o que vive no Brasil.

Pode ser uma anta o quanto quiser, especialmente na internet. É relativamente fácil fingir ser mais complexo do que realmente é, pessoas podem decorar palavras difíceis e repetir discursos que não entendem, porque elas devem se sentir bem fazendo isso. O ponto destes textos é talvez buscar alguém precisando organizar melhor os pensamentos que já tem, ou mesmo dar um suporte para quem tem que conviver com gente assim. Não é exatamente uma opinião sobre a guerra, é uma opinião sobre conteúdo. Novela, filme, jogo de futebol. Parece político e ideológico, mas é entretenimento.

Se eu puder pedir alguma coisa, no entanto… é não dar cargos de poder para brasileiro que fica muito pilhado por causa de guerra entre Israel e Irã.

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