País adulterado.
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O mercado de consumo brasileiro enfrenta um problema crescente com a falsificação de bebidas alcoólicas. Segundo levantamento do Núcleo de Pesquisa e Estatística da Federação de Hotéis, Restaurantes e Bares do Estado de São Paulo (Fhoresp), divulgado em abril deste ano, 36% desse tipo de mercadoria vendida no país é adulterado, falsificado ou contrabandeado. LINK
A crise do metanol nas bebidas não é a doença, é só um sintoma. Desfavor da Semana.
SALLY
Ao menos 36% das bebidas alcoólicas vendidas no Brasil são adulteradas. Uma a cada cinco garrafas de vodca vendida no país é falsificada. Vinhos e destilados são o alvo preferencial dos falsificadores. Uma fábrica de bebida ilegal é interditada a cada cinco dias no país.
Chocado com os dados? São do ano passado. E foram enviados às autoridades que tinham competência para fiscalizar. Ou seja, o que aconteceu foi, só para variar, uma tragédia anunciada.
Tudo isso poderia ter sido evitado se quem fiscaliza fosse mais competente e/ou menos corrupto. Mas não foi. Morreu gente e vai morrer mais gente ainda. E a incompetência não é apenas na prevenção, é generalizada: quando os primeiros casos apareceram, as providências foram lentas, insuficientes e até mesmo erradas, piorando a situação.
Só para citar um exemplo, o Disk-Intoxicação da ANVISA estava sem funcionar em diversas partes do país. Algo criado para dar assistência e orientação imediata em uma questão grave e urgente (uma pessoa envenenada não pode esperar) simplesmente estava desativado. Recebendo recursos públicos, pagos com o seu dinheiro, para não funcionar.
As investigações nos bares também foi lenta e risível. A gente sabe que no Brasil se compra qualquer fiscalização, mas dessa vez chegaram ao cúmulo de conseguir ocultar o nome de diversos estabelecimentos que venderam bebida adulterada que matou pessoas. Sim, tem bar vendendo veneno, matando, deixando cego, e eles tem direito a proteção, a não ter seus nomes divulgados.
“Mas Sally, não tinha como imaginar que isso poderia acontecer”. Tinha sim, se não pelos dados que eu acabo de te passar, pelo fato de já ter acontecido antes: Só na Bahia, já ocorreram mais de 60 mortes e mais de 450 internações por bebidas contaminadas com metanol em um passado não muito distante.
O problema é: até aqui, acontecia com pobre, com fodido, com pessoas que, no sistema social de castas do Brasil, não importam. Agora foi no barzinho caro, agora morreu advogado. Agora vai gerar comoção.
E, veja bem, não digo que não deva gerar comoção. Digo que, em um país sério, qualquer morte por envenenamento desse tipo deveria ser um escândalo, algo com providências e consequências muito sérias, que garantam que nunca mais nada parecido aconteça. Mas é Brasil, né? Aconteceu novamente e, pelo visto, vai acontecer outras vezes no futuro.
Não estão fiscalizando de forma eficiente ou suficiente. Não estão tomando providências para que não se repita. Já apareceu meia dúzia de oportunista querendo criar lei para aumentar a pena adulteração de bebidas alcoólicas, como se isso resolvesse.
A pena de homicídio é bem maior e o Brasil é, segundo a ONU, recordista mundial em casos de homicídios, ficando na frente, inclusive, de vários países em guerra. Aumentar a pena não resolve, lei não resolve, pois não há fiscalização efetiva para punir quem a descumpre, não há Judiciário apto a condenar todo mundo e há um sistema de propinas fortíssimo que mantém tudo quanto é tipo de filho da puta a salvo.
Tá tudo errado. O sistema é corrupto, criminoso, perigoso e a qualquer momento uma adulteração de qualquer coisa (remédio, chocolate, bebida) pode tirar a vida dos seus pais, dos seus filhos, dos seus entes queridos, e o brasileiro está preocupado se vai poder beber este final de semana. Nada nunca vai se resolver em um país com essa mentalidade.
Aposto inclusive que tem gente pensando “Não é problema meu, eu não bebo”. É problema de todos que um país seja tão merda a ponto de que isso aconteça de forma sistemática. E, por mais que a pessoa não beba, ela é afetada, se não pelo risco de que isso aconteça com algum produto que ela consome, pelo estresse de viver em um lugar assim, onde esse tipo de coisa pode acontecer.
Quem está dentro costuma não perceber, mas quando você sai, se dá conta do quanto esse ambiente de ter que desconfiar de tudo e de todos, de regras não cumpridas, de irresponsabilidade, envenena a alma. É como um programa secundário que fica o tempo todo rodando, consumindo energia. É insalubre. Certamente mina a saúde, mesmo de quem está determinado a entrar em negação.
Viver em um país permeado por insegurança, impunidade, incompetência e corrupção faz mal. O que as pessoas vão beber neste final de semana é o menor dos problemas. Prender o Zé das Couves que adulterou a bebida, acreditem, também é, pois tem duzentos para tomar o lugar dele e continuar falsificando. Se querem dar um passo real para resolver isso, a pergunta é: quem é que tinha que ter fiscalizado isso e não fiscalizou? É para cima desses que tem que ir.
Se quem fiscaliza tiver medo das consequências de não fazer seu trabalho direito, o país passa a ter uma boa fiscalização e, não importa o quanto se tente falsificar bebida, nenhum estabelecimento vai topar comprar, pois saberá que pode ser multado e fechado. É por aí que se resolve, e não aumentando a pena de quem falsifica. A falha maior, só para variar, é do Estado.
Mas, arrisco dizer que nem o próprio brasileiro, que sofre risco de contaminação, não quer uma fiscalização eficiente. Ele quer continuar comprando bebida alcoólica do contatinho de Whatsapp, mais barato do que no supermercado. Ele quer o mercado paralelo para pagar menos. O brasileiro também é parte do problema. O brasileiro é medíocre e aceita viver em uma sociedade insalubre para se dar bem e pagar uns trocados a menos.
O fundo do poço do Brasil tem um alçapão. Anotem essa frase, em vários momentos das suas vidas vocês vão lembrar dela – e de mim.
SOMIR
Eu já vou partir do princípio de que a contaminação por metanol foi causada por incompetência do mercado “alternativo” de bebidas. Os números são suficiente para defender essa hipótese: sem matar pessoas, os contrabandistas e falsificadores já estavam ganhando muito dinheiro, gerando mais de um terço das vendas nacionais.
Pode ser do interesse desse mercado ilegal aumentar as margens de lucro falsificando bebidas, mas é suicídio comercial criar uma crise do tipo que mata pessoas, mesmo do ponto de vista mais amoral possível isso significa queda nas vendas e menos dinheiro. E considerando que envenenamento por metanol é algo que acontece de tempos em tempos aqui e em diversas partes do mundo, é óbvio que sempre estiveram flertando com esse desastre.
Existem níveis de consumo de metanol que não viram crises de saúde pública, mal viram notícia. E pode apostar que as pessoas falsificando bebidas achavam que tinham achado a medida certa de adulteração. O suficiente para aumentar seus lucros sem chamar atenção. Os casos recentes de envenenamento por metanol apenas sugerem que um ou mais desses produtores ilegais erraram a mão.
Risco Brasil: antes de continuar, eu gostaria de dizer que é possível que uma empresa legalizada tenha errado por “incompetência honesta”, se descobrirem isso nos próximos dias, não vai ser uma grande surpresa.
Num país onde as pessoas acham normal economizar dando a volta em regulações, o risco desses erros sempre vai ser grande. Se tem tanta gente comprando produto contrabandeado ou adulterado, quer dizer que existe muita demanda para levar vantagem na compra e venda de álcool. E muito mais importante, tem muita demanda pelos lucros possíveis na ilegalidade.
Pode ser simples como sonegar imposto num produto original, mas isso vai escalando: quem compra mais barato por ter comprado produto contrabandeado está aceitando mais riscos que o normal, porque é o tipo da coisa que não dá para resolver na polícia depois, não?
Existem mil motivos para ficar irritado com impostos no Brasil, existem mil motivos para desconfiar da fiscalização oficial, mas no final das contas, quem aceita o mercado ilegal está aceitando junto os riscos que o sistema tenta mitigar. Riscos como bebidas alcoólicas com doses letais de metanol.
Estou indo por esse ângulo não para aliviar a crítica que a Sally fez, eu parto do ponto dela sobre os mecanismos oficiais terem falhado em prevenir algo totalmente prevenível e adiciono que além disso, existe um incentivo enorme no Brasil de fazer as coisas do jeito errado e arriscar a vida alheia para levar vantagem. E é uma relação doentia: o brasileiro faz errado porque não confia no sistema, e o sistema não melhora porque o brasileiro escolhe fazer coisas erradas.
A minha preocupação é se as pessoas que compram produtos contrabandeados e/ou ilegais são capazes de entender o risco que estão repassando para o consumidor final ou se é simplesmente ignorância severa ao ponto de achar que não tem problema nenhum. O dono de bar que se acha esperto por colocar bebida falsa no drink porque ninguém percebe, só botar mais açúcar na batida para as moças… ele entende que pode matar alguém ou acha que é o truque perfeito porque acha que dá no mesmo?
Essa sempre é a parte mais desesperadora de imaginar o grau de ignorância de um povo como o brasileiro: uma pessoa pode te matar por pura incapacidade de entender que aquilo pode te matar. Ela pode receber a informação de que algo é perigoso cem vezes, mas não transforma aquilo em reflexão. É que nem o terraplanista que diz que a Terra não pode ser redonda porque ele olha para o horizonte e acha que é reto.
E cada vez mais eu acho que o tipo de resposta que estão dando – achando que tornar falsificação de bebida crime hediondo é uma resposta – é reflexo de uma visão distorcida da realidade, uma tentativa de não lidar com o elefante na sala: o risco de pessoas terem morrido por contaminação de metanol por pura burrice de algumas pessoas é difícil de lidar.
É mais confortável achar que os bandidos sabiam o que estavam fazendo, mas fizeram porque a pena era leve. Porque isso cria a ilusão de resolução de um problema, não é que empresários imbecis estão comprando produtos falsos para levar vantagem, feitos por outros imbecis que mal entendem que metanol mata… não, no mundo de fantasia de controle, são pessoas ruins que podem ser presas ou mortas e tudo se resolve.
Estamos numa sociedade onde você precisa regular mercados para evitar que pessoas tomem decisões burras e perigosas. Antes de tentar controlar a maldade do ser humano, é preciso dar um jeito dele entender que algumas escolhas que faz tem consequências que precisam ser previstas. E que quanto mais longe do ato são essas consequências, mais gente precisa estar envolvida no processo, porque não dá para confiar nem que o dono de um bar num lugar chique vá ter a capacidade cognitiva básica de prever que eventualmente vai ter contaminação nos produtos piratas que ele compra para economizar um dinheirinho.
E que depois que pessoas começarem a morrer, não tem mais volta. Não dá para ter ilusões de liberalismo no Brasil atual, tem que ter agências regulatórias e fiscais em tudo quanto é lugar, não porque o brasileiro médio está mal-intencionado de matar os outros, mas porque ele não tem treino nem incentivo para pensar meia hora no futuro.
Digo mais: nenhuma sociedade nesse mundo evoluiu além da necessidade de regulação séria. O que alguns países têm é menos casos absurdos de incompetência e negligência, reduzindo a carga de trabalho de fiscais e mantendo o sistema mais funcional. O governo pode fazer a parte dele, mas enquanto o povo estiver viciado em vantagens de curto prazo sem medo de ser punido (não tem a ver com ser 5 ou 50 anos de cadeia, é sobre ser descoberto e punido), é só questão de tempo até mais produtos falsificados matarem pessoas em grande escala de novo.
O sistema continua o mesmo, não importa se a pena do crime muda. Se a mentalidade continuar sendo essa de ser esperto doa a quem doer e se continuarmos pegando uma pequena fração de quem faz isso, não se cria nem a ideia de que deu errado na cabeça das pessoas. Eu temo que vamos sair dessa crise com alguns culpados que vão pagar pelos pecados de todos, mas que a ideia básica de levar vantagem com produto contrabandeado e/ou falsificado vai continuar como se nada.
O governo é uma bagunça, mas o povo não ajuda. Talvez nem entenda que precise ajudar.
Agora foi no barzinho caro, agora morreu advogado… Como se ser advogado fosse lá grande coisa.
É um advogado pra 200 pessoas no BR e isso desconsiderando o exército de reserva de bachareis que não atuam na área.
Mas entendi. É o equivalente ao cara do cafézinho na Fábula dos Dois Leões do Stanislaw.
Nesse caso das bebidas com metanol, o Brasil mostra mais ma vez que é o país em que tudo é falsificado: as próprias bebidas, a fiscalização omissa e corrupta, a indignação de conveniência de uns e outros, a “vontade de resolver” de mentirinha com a criação de (mais) leis inócuas que não atacam as causas do problema…