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Ele disse, ela disse: Solução viciada.

| Desfavor | | 112 comentários em Ele disse, ela disse: Solução viciada.

Digamos que se crie uma vacina contra os efeitos prazerosos de todas as drogas ilícitas disponíveis no mercado… a droga é suficientemente barata e simples de se reproduzir. Nesta coluna, Sally e Somir vão discutir sobre o papel do Estado a partir dessa suposição. Os impopulares estão convidados a não praticar a abstinência e injetarem suas opiniões na conversa.

Tema de hoje: O Estado pode obrigar a população a tomar uma vacina anti-drogas?

SOMIR

Não! Apesar de compartilhar com Sally a opinião de que não se deve legalizar a maconha, não dividimos exatamente da mesma motivação. Acredito na liberação TOTAL das drogas como medida de evolução social. Qualquer coisa menos do que isso é limpar a bunda com as leis vigentes, com as políticas de saúde pública atuais, e até pior do que isso, ceder ao lobby de gente mais preocupada com conveniência pessoal do que com a sociedade na qual está inserida. Ou faz direito ou não faz.

Pois bem. Já garanto aqui que vou respeitar a premissa da vacina “perfeita”, partindo do princípio indiscutível que todos os efeitos prazerosos das drogas ilícitas nulificam-se após sua administração. Mas tudo o que acontece DEPOIS da premissa está aberto à interpretação. Meu argumento passa pelas liberdades pessoais, evidente, mas também passa pelo exercício fútil de esperar que soluções instantâneas resolvam algum problema nesse mundo. Vamos por doses…

Direito do Estado. A discussão gira sobre a legitimidade do Estado para exigir algo como vacinação compulsória de sua população. Se fosse o caso de um vírus mortal ameaçando a própria existência do Estado, é razoável aceitar um estado de exceção. Mas… e para evitar que as pessoas sintam prazer com drogas ilícitas? O Estado, representante de seu povo, está sob ameaça? Não nego os danos gerados pelas drogas ilegais, mas… É esse o limite para o direito de um ser humano sobre seu próprio corpo?

Eu sei que parece uma causa nobre, mas ela exige uma contraparte horrível: Seres humanos sendo forçados a consumir uma substância que modifica o funcionamento do seu organismo, ignorando suas vontades pessoais SEM QUE ESSAS VONTADES incorram em crime. Atenção: Sentir prazer não é crime. Os crimes possíveis estão todos fora do objeto da vacina… Isso abre precedentes.

E vamos lembrar aqui que a premissa deste texto não define o Estado como entidade honesta, justa, impessoal e… acima de tudo… infalível. O Estado erra, o Estado pode ser manipulado, subornado, pressionado… E se uma das substâncias “malignas” for liberada? Considerando que a vacina é dose única e funciona para sempre, vamos ter uma parte da população perdendo o direito de sentir prazer com ela por causa de irresponsabilidade do Estado. Se a vacina não for vitalícia, aí… aí piora: Porque o sistema vai poder ser abusado de acordo com interesses pessoais.

E se amanhã o trigo que não foi plantado com semente da Monsanto virar substância ilegal? Ninguém vai tomar um tiro por comer pão feito com outro trigo, mas ele vai perder a graça. Parabéns pra todo mundo que abriu as pernas para o Estado, viu? Parabéns mesmo.

Liberdade pessoal. Não tenho a menor pretensão de passar por defensor de situação utópica, pregando liberdade irrestrita e negando que várias das leis que seguimos existem justamente para reprimir essa liberdade em prol de um bem maior. Eu não quero uma sociedade onde a liberdade de matar seja cláusula pétrea de uma constituição, claro que não. Só que botar limite nas pessoas é se equilibrar numa linha que além de tênue, ainda tem o hábito de mudar de lugar durante nossa história. Proibir todo mundo de fazer uma coisa tem um custo muito alto numa sociedade: Tem que ter toda uma infraestrutura que dê conta de prevenir, vigiar e gerar consequências para quem faz o proibido.

E é aí que começam mais problemas práticos. Como é que se obriga milhões de pessoas a se vacinar? O custo exorbitante de produzir e administrar a vacina já existe, esse é o básico. Se não for dose única, isso ainda vai ficar se repetindo inúmeras vezes. Mas tem mais custos, claro. Como saber quando todo mundo já foi vacinado? Como impedir que pessoas escapem? Como punir quem evade a vacinação?

Imagino que Sally esteja pensando num sistema de sanções políticas e econômicas, porque eu duvido que ela aceite obrigatoriedade na “força física”, afinal, isso incorreria em tortura. Não combina com ela, de forma alguma. Mas muito se engana quem acha que punir sem enfiar a porrada não causa problemas também… Não acredite, nem por um segundo, que vai existir algo próximo de unanimidade na população. Vai ter muito dissidente, e alguns até achando válido derrubar o governo na base da bala numa situação dessas (eu, por exemplo… eu não sei dar um tiro, mas ajudo a montar a propaganda para impulsionar o exército revolucionário… povo se amarra numa revolução).

Se o cidadão não pode ser amarrado e injetado na marra (novamente, espero DE CORAÇÃO que esse não seja o plano dela…), vai ter que tirar dele o direito de ser cidadão até que ele se adeque. Vamos ter uma enorme classe de párias, em atrito com a possível maioria de ovelhas que abriram mão do direito ao próprio corpo. Esse choque de classes PODE ser derrubado aos poucos com sorte do Estado, mas pelo perfil “idealista” da recusa à vacina, não vai ser só povão e drogado não. Isso pesa. O Estado perde receitas e controle sobre uma parte da população. É direito do Estado SE AUTO-DESTRUIR?

Para corrigir um problema, vamos criar milhões de outros. Literalmente. A sociedade tem seus limites, e não são canetadas “bem intencionadas” que resolvem as coisas. Como de costume, o plano mais racional é ir com calma e sempre: Ao redor do mundo, o consumo de tabaco está desabando. A guerra contra a indústria do tabaco está dando resultados, e ninguém foi obrigado a deixar de fumar. Mais algumas décadas e a merda vai estar praticamente desfeita e o consumo do tabaco vai voltar aos níveis pré-industriais. Porra… FUNCIONOU! Vai atrás da indústria do álcool e das drogas ilegais agora.

Inteligência resolve o problema das drogas, não truculência. Se um dia essa vacina surgir, é fácil montar um plano: Torne-a grátis, distribua bem, crie VANTAGENS para quem a tomar e mantenha uma campanha agressiva contra as drogas. Pronto. Pra quê obrigar? O Estado não só não tem o direito de obrigar as pessoas, como nem motivo tem.

Para concordar comigo e dizer que também aprendeu sobre a Revolta da Vacina na escola, para dizer que tinha mesmo era que matar todo viciado (não cospe pra cima…), ou mesmo para especular se eu teria a mesma opinião se a vacina fosse contra religião: somir@desfavor.com

SALLY

Supondo que fosse desenvolvida uma vacina que bloqueia os efeitos prazerosos das drogas ilícitas, você acha que o Governo teria o direito de exigir que todo cidadão se vacine?

Sim, eu acharia justo obrigar a todos a tomar a vacina. E dali para frente, toda criança deveria ser vacinada ao nascer. Seria uma forma de solucionar de vez o problema das drogas, que, diga-se de passagem, prejudica a sociedade de tantas formas diferentes que eu nem me atrevo a enumerar. É questão de saúde pública, então, como qualquer outra vacina, tem que ser obrigatório.

Eu sei, eu sei, em um primeiro momento a ideia causa um desconforto, mas não é tão tirânica quanto parece. É apenas uma vacina contra uma doença, como tantas outras. Isso não me assusta, sabe porque? Porque eu não sou uma viciada. O mesmo não se pode dizer da Madame aqui de cima, que só de pensar em largar um cigarro fica em posição fetal e treme. Viciados são irracionais, perdoem o Somir, ele não sabe o que fala.

Muita gente pode estar pensando: “O Estado não tem o direito de me privar de sentir prazer”. Ué… a única forma de sentir prazer nessa vida é usando drogas? “Prazer não é crime”. Depende do seu prazer. E se o prazer de alguém for estuprar, não é crime? “Mas o estuprador faz mal aos outros”. Muita inocência pensar que uma pessoa usuária de drogas é sempre inofensiva e incapaz de fazer mal a alguém, drogas causam muitas mortes, muito transtorno e muito gasto de dinheiro que poderia ser usado para coisas boas.

Aliás, a dinâmica da droga em si já faz mal à sociedade: desde o tráfico até o uso. Antes de vir com esse discurso hippie sobre o que o Estado tem o direito ou não de fazer (em abstrato), já pensou no caso concreto? Já pensou nas pessoas que perderam os filhos para as drogas? Ou pessoas que perderam filhos por causa da violência de um usuário de drogas ou de um traficante? Antes de falar em abstrato, vá para o concreto e converse com viciados. Garanto que eles mesmos desejariam ter tomado essa vacina ao nascer.

Não sou contra a diversão, não sou contra o prazer. Mas se para se divertir você coloca a coletividade em risco, aí existe um bem maior a ser protegido. Diante dessa realidade, é preciso uma medida que coíba esta conduta. Drogas são nocivas para o usuário e para a sociedade. Eventualmente uma ou outra pessoa conseguem fazer uso meramente recreativo sem que isso prejudique a coletividade? Sim, mas é raro.

Assim como eventualmente uma ou outra pessoa conseguem beber e dirigir razoavelmente bem. Nem por isso se permite que pessoas que beberam dirijam. Vamos sacrificar milhões de vidas por ano porque meia dúzia consegue fazer uso não nocivo de drogas? Não, né? Vamos sacrificar o prazer dessa meia dúzia para que milhões não morram. Até porque, como eu disse, drogas não são a única forma de se sentir prazer na vida.

Porque quando se fala em drogas todo mundo pensa no EU, no individual, nos SEUS direitos? As pessoas não compreendem que é uma questão muito maior do que isso? Não compreendem os danos que causa à sociedade, o montante de dinheiro que se gasta anualmente, as vidas que se perdem (muitas vezes vidas de pessoas que não tinham qualquer relação com o evento) e o sofrimento dos próprios viciados que querem largar esta porra mas não conseguem?

Ok, a vacina talvez não seja a solução perfeita, mas entre sacrificar o prazer de alguém que quer descumprir a lei e sacrificar milhões de vidas, eu prefiro a primeira opção. A vacina salvaria milhões de vidas sem causar um mal efetivo a quem faz uso dela, então, tem que ser obrigatória sim. Não precisa usar de violência, de repressão. Não precisa pegar a criança à força e vaciná-la. Basta estipular consequências significativas para quem não o fizer, como já existem para outras vacinas. Não proponho uma intervenção estatal violenta nem uma pena corporal. Vacina não é pena corporal, vacina é prevenção de doenças e o toxicômano é um doente aos olhos da lei e aos olhos da medicina.

E se você estava começando a pensar em faniquitar sobre o Estado mandar nas suas escolhas pessoais, pense duas vezes, porque ele já manda muito mais do que você imagina, só que você se acostumou com isso. Você não pode sair pelado na rua se quiser (e isso nem ao menos causa danos a outras pessoas), você não pode fazer sexo no meio da rua se quiser, você não pode fazer inúmeras coisas se quiser e não sofre por isso, porque se acostumou com as regras desde pequeno. Você não pode nem deixar seus filhos sem vacina.

Então, não adianta esse discurso de “Não vou deixar o Estado mandar em mim”, porque ele já manda e manda em coisas que causam muito menos mal à sociedade. E se você desobedece, existem consequências. Vá tomar um banho, pentear esse cabelo e passar desodorante, porque na vida real o Estado manda no cidadão naquilo que é indispensável para manter uma convivência minimamente harmônica e segura. E drogas se encaixam nesse conceito, tanto é que é configuram crime.

Sempre tem um Fulano Falácia para dizer “Daqui a pouco o Estado vai querer definir a cor da minha cueca”. Querido, no dia em que a cor da sua cueca for a responsável pela morte de milhões de pessoas, eu acho que seria bem válido que a lei defina a cor dela. Chega dessa babaquice focada no EU. O cidadão médio não é você, é alguém que provavelmente vai acabar viciado e fazendo uso irresponsável de drogas e é essa a realidade que deve ser levada em conta, inclusive para o SEU próprio bem, já que esta mesma pessoa viciado pode acabar matando (mesmo que sem querer) sua mãe, seu pai ou seu filho em decorrência do vício, direta ou indiretamente. Droga não é uma questão individual, é uma questão social. É legítimo um Estado estabelecer restrições à coletividade quando a questão se reflete em números alarmantes de mortes e violência como ocorre com as drogas.

“Mas bebida também provoca morte, então tem que proibir bebida também”. Não tenho dados concretos para argumentar. ACHO que o grosso das mortes relacionadas a bebida são oriundas de acidentes de trânsito e justamente por isso se modificou a lei e hoje não pode dirigir nem mesmo quem bebeu um mísero gole de cerveja. Se for isso, não precisa proibir bebida. Porém, se for comprovado que o consumo de álcool (ou qualquer outra merda) gera uma quantidade alarmante de mortes, sim, o Estado tem o direito/dever de tomar uma atitude para coibir o uso dessa substância. Inclusive contra o cigarro também.

E lembrem-se que não estamos falando em proibição, que é algo muito mais complicado e caro (fiscalizar todas as pessoas o tempo todo é muito difícil). Estamos falando de uma VACINA que apenas retiraria a sensação de prazer causada pela droga ou, se fosse o caso, pela bebida ou pelo cigarro. Sinceramente? Se houvesse uma para cigarro, eu pegava o Somir debaixo de cacete e aplicava nele mesmo que ele nunca mais falasse comigo. “Ah, mas cigarro e álcool não são proibidos, então não tem que proibir droga”. Raciocínio muito bacana. Jack, o Estripador matou um monte de gente e nunca foi preso, então eu posso matar quem eu quiser e não podem me prender. Parabéns por estuprar a lógica.

Vamos parar um segundinho só de pensar no que é melhor para o próprio umbigo e pensar no que é melhor para a coletividade? É assim que as normas são pensadas. Porque se for melhor para você mas for pior para a coletividade, mais cedo ou mais tarde essa decisão pode voltar para te morder na bunda. Se existe uma forma, ainda que implique um sacrifício pessoal de cada um de nós, de reduzir os índices de criminalidade, desafogar as prisões, desafogar o Judiciário, reduzir a violência e reduzir as mortes, de forma pacífica, através de uma mera vacina, de uma FUCKIN´ GOTINHA NA LÍNGUA, não vale a pena? Se você acha que não, provavelmente nunca perdeu nenhuma pessoa querida para as drogas ou para a violência oriunda dela.

Para usar qualquer falácia e ouvir um palavrão, para usar argumentos que te beneficiem pessoalmente ignorando tudo que eu disse sobre o bem estar coletivo ser mais importante até mesmo a nível individual ou ainda para dizer que se não mexerem com a sua cachaça pode vacinar os drogados sim: sally@desfavor.com

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