Ele disse, ela disse: Caro caráter.
| Desfavor | Ele disse, Ela disse | 17 comentários em Ele disse, ela disse: Caro caráter.

Existem regras diferentes de conduta na vida profissional e na vida pessoal, e em boa parte dos casos, as pessoas conseguem fazer essa diferenciação. Agora, quando se fala traços de personalidade como senso de ética, Sally e Somir discordam sobre o quanto é possível manter as coisas separadas. Os impopulares trabalham junto e fazem seu relatório também.
Tema de hoje: Falta de caráter na vida profissional implica em falta de caráter na vida pessoal?
SOMIR
Não. Pessoas são capazes de exibir personalidades bem distintas entre os grupos com os quais convive. Não é todo mundo que tem em si essa capacidade de “multiplicação”, e menos gente ainda é capaz de notar que faz isso. Até porque se não fosse essa a verdade, não teríamos tantos casos de surpresas (negativas ou positivas) ao conhecer mais a vida de alguém.
Você pode até não perceber, mas um ou mais elementos dos que forma sua personalidade se destacam mais de acordo com quem você lida. Se não fosse assim, todo mundo só teria amigos, parceiros e conhecidos extremamente parecidos entre si. É muito mais comum separarmos os grupos com os quais convivemos de acordo com os interesses em comum do que com personalidades em comum.
E isso não é sinônimo de fingir ser outra pessoa, é a reação natural que seres complexos como nós temos ao lidar com a infinidade de possibilidades de interação social que existem por aí. Família, amigos, interesses amorosos, colegas de trabalho… são todos grupos que quando não obrigam, incentivam a exibição de traços diferentes de sua personalidade. É você ainda, mas em contextos diferentes. Ninguém é exatamente a mesma pessoa em todas as situações.
O complicado nessa argumentação é desligar o juízo de valor sobre pessoas que agem sem ética na vida profissional o tempo suficiente para entender como estamos falando de algo muito além de simpatia por eles. Pessoalmente, acredito que o senso de ética deve permear todos os aspectos da vida. Acho essa coisa de puxar tapete e sempre tentar levar vantagem algo deplorável, independentemente do local onde acontece.
MAS… isso não pode nos cegar para a possibilidade sólida de que a pessoa esteja exibindo personalidades distintas para grupos distintos. Um chefe escroto que rouba crédito do trabalho de seus subordinados pode ter atitudes totalmente opostas quando lida com os filhos, por exemplo. E se você pedir a opinião de um grupo ou de outro, as respostas serão totalmente opostas também.
Não se discute aqui se gostamos de gente sem caráter na vida profissional, ou mesmo se somos ou queremos ser dessa forma. Discute-se a possibilidade mais do que comprovada de uma vida dupla, que tantos levam por aí. Existem inúmeros mecanismos de auto-perdão no ser humano, e são eles que possibilitam que uma pessoa consiga se manter suficientemente hábil para não contaminar ambientes diferentes com as atitudes que toma no trabalho.
Tem quem enxergue na profissão apenas um meio de ganhar a vida para a família, gente que detesta seu trabalho e tenta mandar “outra pessoa” para o ambiente profissional. Dói menos se ela se convencer que não está gastando suas horas “vida de verdade” num cubículo ou num balcão. E a capacidade do ser humano de interpretar papéis é muito maior do que se imagina: Não precisa ser ator para se convencer que é outra pessoa e agir de acordo. Essa personagem não vai voltar para a vida pessoal no final do expediente, afinal, ela é só um mecanismo de proteção.
Muitos dos filhos da puta do ambiente de trabalho não são imunes à culpa pelo o que fazem e precisam de outro mecanismo de proteção: A compensação. Na cabeça deles há uma balança que pode ser equilibrada com boas ações na vida pessoal. Derruba desonestamente um adversário numa corrida pela promoção no escritório, e no final de semana faz uma doação vultuosa para a caridade. Essa pessoa prende seu lado ruim no profissional e faz de tudo para compensá-lo na vida pessoal. Gente que só a conhece no contexto pessoal provavelmente vai dizer que essa pessoa é tudo menos mau caráter.
E, porra, vamos entender que vivemos numa sociedade capitalista e consumista. Cidadão é bombardeado o tempo todo com o sonho da conquista profissional e lida com inúmeros escrotos que só “chegaram lá” pisando na cabeça de todo mundo. É feio? É. É errado? É. Mas nessa lavagem cerebral da vida cotidiana muita gente acaba acreditando que na vida profissional até mesmo o caráter é relativo. Ela se convence que tem que jogar sujo ali não só para levar vantagem, mas para continuar viva!
Esse estranhamento entre ser humano e “ser trabalho” fica impresso na mente das pessoas como sobrevivência básica. No ambiente pessoal o tom acaba sendo outro: Fica parecendo a bonança entre as tempestades. Conheço muita gente que é “faca nos dentes” no trabalho e “amigão” fora dele. E nem adianta argumentar muito, a pessoa se convence de tal forma que vai para uma guerra a cada vez que vai trabalhar que qualquer menção contrária é dispensada como propaganda inimiga.
O mundo seria menos escroto se as pessoas conseguissem manter uma linha de ética condizente entre esses ambientes, mas como podemos ver claramente, não é assim que funciona. Não estou ignorando que existe muita gente que é IGUALMENTE babaca no profissional e no pessoal. Elas existem, elas são numerosas, mas não são uma regra sem exceções.
Seria mais fácil se fosse simples assim reconhecer uma pessoa com tendência ao mau-caratismo, mas como as nossas surpresas negativas na vida insistem em nos provar… Não é.
Para dizer que isso é desculpa de mercenário escroto, para fingir que não tem dessas variações de personalidade, ou mesmo para puxar meu tapete: somir@desfavor.com
SALLY
Falta de caráter na vida profissional implica em falta de caráter na vida pessoal? Certamente você deve estar concordando com o Somir que não, que uma coisa independe da outra. Mas se tiver a mente aberta e aceitar ler o meu texto com boa vontade, talvez você mude de ideia.
Falta de caráter não é responder à altura a um chefe abusivo ou brigar com aquela pessoa que vive tentando puxar seu tapete. Isso é se defender. Falta de caráter é sacanear uma pessoa que está quieta usando mentiras e artifícios baixos para prejudicá-la em troca de algum benefício pessoal. Falta de caráter é sacanear gratuitamente uma pessoa que de forma alguma o fez por merecer, provocando uma consequência injusta para ela e, em contrapartida, algum benefício pessoal a quem o faz, ainda que este seja apenas a diversão de verificar o poder/habilidade que a pessoa tem nas mãos de foder com a vida alheia.
Falta de caráter é desrespeito pelo ser humano, falta de ética, de lealdade. Acredito que pessoas que conseguem relativizar esses valores e conseguem desculpas para si mesmas de modo a sacanear colegas de trabalho e depois colocar a cabeça no travesseiro e dormir em paz o façam também com sua família, amigos e conhecidos. O caráter é um só, não existe alguém que entra no “modo sem ética” da porta para dentro do trabalho e volta ao “modo com ética” da porta do trabalho para fora.
Não quero dizer que um profissional que passa uma rasteira no colega necessariamente vá trair sua esposa. Não é matemático, mas em algum momento isso se manifesta. Se você observar bem de perto, vai ver que quem consegue conviver com a falta de ética em alguma área da sua vida, cedo ou tarde se corrompe de modo a contaminar todas as demais, porque aprende a ser sem consciência e a autoperdoar as sacanagens que eventualmente faz com os outros. Para poder faltar com o caráter é preciso, antes de mais nada, conseguir fazê-lo.
Uma pessoa que não tem ética no seu trabalho não é confiável. Uma pessoa que passa uma rasteira em colegas não me inspira confiança. Essa coisa seletiva de “comigo vai ser diferente, porque ele me ama” não é verdade. Vai ter quem diga que para sobreviver no mundo profissional de hoje é “necessário” abrir mão de um pouco da ética ou que venha com qualquer discurso para se eximir de culpa, mas eu repito: quem consegue relativizar ética em qualquer setor da sua vida, se torna um mau caráter por inteiro. Não existe semi-mau caráter ou meio mau caráter. Ou é, ou não é. Quem sacaneia colega, cedo ou tarde pode sacanear você, porque a mesma desculpa utilizada para relativizar e autorizar a falta de ética com o colega vai encontrar uma brecha para se amoldar na situação pessoal também.
Ou você transige com a ética ou não transige. Setorização de ética é uma coisa que a vida me ensinou a não acreditar. Quem é capaz de ser filho da puta com um colega (atentem que existe um mundo de diferença entre se defender e ser filho da puta) vai ser capaz de ser filho da puta na vida pessoal quando existirem interesses conflitantes. A pessoa que quando deseja muito uma coisa (promoção, aumento, cargo, etc.) a ponto de passar por cima e faltar com a ética a colegas, apelará para a falta de ética nos relacionamentos privados também quando quiser muito algo que lhe está sendo negado. É uma forma de funcionar que se estabelece no ser humano, não tem modo on/off. Quem é capaz de pisar em outra pessoa de forma injusta para obter um benefício pessoal não presta de forma global.
É o mesmo homem que vai dizer que não é traição porque o sexo foi com uma puta, ou a mulher que vai jurar que engravidou sem querer quando na verdade o fez para prender o sujeito. Ambos acham que estão fazendo algo perdoável. É gente capaz de fazer essas coisas e continuar convivendo com suas vítimas porque consegue criar mecanismos de auto-perdão para se convencer que fez o que fez porque era necessário, porque todo mundo faz ou por algum motivo nobre, como por exemplo por amor. Quem vive da falta de ética para conseguir o que quer em um setor da sua vida repete esta falta de ética quando seus desejos são frustrados em outras áreas, pois é assim que a pessoa sabe conseguir o que quer. Desculpa o termo, que nem existe, mas filhadaputagem é um vício: depois que a pessoa começa, apela para esse recurso sempre que não consegue o que quer pelos meios convencionais. É um Plano B permanente.
Não existe essa de ter valores com as pessoas do convívio pessoal mas não ter valores com as pessoas do trabalho. Ou se tem consciência e se respeita o ser humano ou não se tem. Quem consegue pisotear um ser humano injustamente para obter um benefício pessoal e não perde uma noite de sono com isso é capaz de fazê-lo com qualquer ser humano, independente da relação que tenha com ele. Não é a natureza da relação que determina a ética e sim os valores internos de uma pessoa. Um ser humano ético não consegue pisar em outra pessoa inocente para se dar bem. A resposta está dentro, e não fora, por mais que muita gente adore acreditar no “comigo vai ser diferente”. Não, não vai. Sabe por que? Porque todo relacionamento, no sentido amplo da palavra, sofre períodos de desgaste. E nesses períodos a pessoa sem caráter encontra a brecha que precisa colocar em prática sua filhadaputagem.
Traiu porque estava brigado coma pessoa. Mentiu para evitar que encha o saco. Tem sempre um motivo. Em algum momento do relacionamento, por mais “mar de rosas” que ele seja, os envolvidos terão opiniões ou posturas conflitantes. E quando isso acontece, quem é sem caráter tende a jogar sujo. Na hora da raiva, na hora do embate, na hora da contrariedade e frustração não tem dessa de “por seu meu _______ (complete com graus de parentesco ou amizade) não vou sacanear esta pessoa”. Sacaneia. Sacaneia sim e ainda encontra uma justificativa para tentar fazer que foi socialmente aceitável faltar com a ética, geralmente tentando convencer que não tinha escolha ou que foi melhor assim. Sabe porque o faz? Porque CONSEGUE fazer e dormir em paz depois, está dentro da pessoa. Quem faz e depois não dorme, prefere nem fazer para não estragar sua própria vida com remorso e vergonha.
Caráter não é seletivo, ele é interno e rege qualquer relação humana. Não existe o sem caráter no trabalho e o super com caráter com a família. Por mais que a gente goste de acreditar que isso seja possível, em períodos de crise se descobre que não é. Lamento.
Somir tocou num ponto interessante: a subversão de valores – por vezes imperceptível – impregnados no nosso ego! Afinal, as delimitações que moldam nosso caráter muito são calcadas nas experiências relativas à nossa prospecção de formação de juizos e valores. E essa prospecção só se adquire com o tempo e com a convivência com o outro. É aí que entra o fator social: dado que vivemos em um sistema capitalista e consumista, não teria como ser diferente nossos juizes de valores serem “formados” ou antes, subvertidos nos moldes desse sistema. Tudo isso, de forma por vezes alienada, sem nós percebermos! A questão a nível mais aprofundado é essa: as pessoas por vezes não tem uma noção outra, um olhar outro sobre a própria realidade e acaba com que perdendo-se em caminhos que o levam a ter tal “vida dupla” por necessidade intrínseca de sobrevivência, ou antes: preservação do ego em todo esse sistema!
Mas, por outro lado, também tendo a concordar com a Sally quando ela diz que se uma pessoa é mau caráter e sacaneia ela sacaneará sempre, independente do “lado” da vida dela, seja profissional ou pessoal.
Olha aí um dos 25% que eu concordo com a Sally… porra Somir, caráter nada tem a ver com personalidade, que nada tem a ver com encadeamento lógico! São três coisas distintas e diversas…
Fez lembrar do filme Minhas ideias Assassinas, com Michael Caine.
A meu ver, achar ser compreensível, tolerável, até normal, que a pessoa possa ser sacana em um ambiente para ser uma pessoa decente em outro, é um tipo de comportamento que remonta ao de certas religiões, sociedades, corporações, grupinhos fechados, máfias, panelinhas, em que um membro não sacaneia outro, ou então faz de tudo por esse outro, mas sacaneia os outros. Deplorável.
Talvez padeçamos de um ‘lupus’ moral, social, econômico, mas isso é uma outra estória…
Impressionante como canalhice vem sendo cada vez mais tolerada e até mesmo glorificada. Muito preocupante.
Então o cara é bandido de dia todo dia e basta acabar o expediente pra virar gente, é? HAHAHA Absolutamente NINGUÉM ! Todo assediador/lambecú também é mau amigo/pai/irmão/filho/neto/biso/vizinho/conjuge. Experiencia árdua de quem tem militado longamente na área.
Concordo plenamente com você. Quem tem a capacidade de ser cruel no trabalho é cruel em outras ocasiões também, porque tem uma grave falha na consciência.
E vc sabe? As piores pessoas que conheço, aquelas cujo histórico comportamental melhor se enquadra no perfil psicopático, são pais, mães, e, majoritariamente, profissionais da saúde e/ou superiores hierárquicos.
Os que eu conheço são pais e mães mas e altos cargos executivos: CEOS de empresas, sócios de escritórios de advocacia, etc
Tem muitos na saúde mesmo sendo subalternos. Até parece que escolhem essa área para poderem assistir ao sofrimento do outro de camarote.
É provável que sim.
Aff… que esse site esteve fora do ar hoje o dia todo!
Somir, corta essa de personalidade pra isso ou pra aquilo. Quem faz sacanagem profissionalmente como pessoalmente tem um cu de caráter.
Fico bolado com esse autoperdão do povo…
E vê se arruma esse site.
Todos nós fazemos coisas boas e ruins, ninguém é santo. Mas falta de caráter, trucidar uma pessoa inocente para se dar bem, vai desculpar mas não é todo mundo que faz não. Apensas os sem caráter.
Defeitos comuns e normais são bem diferentes de aleijões de caráter.
Concordo completamente com o Somir. Nós somos seres muito contraditórios, cheios de nuances e bastante surpreendentes. Pessoas boas fazem coisas terríveis. Pessoas más surpreendem com boas ações de vez em quando. Seria mais simples se desse pra ser maniqueísta e separar o mundo em: “Este tem caráter. Aquele não tem”. Infelizmente o ser humano não dá garantias.
Sim, e justamente por isso não se pode dizer que quem faz canalhice no trabalho pode nunca fazer na vida pessoal
Contraditório tem limite e não é sinOnimo de dissimulado.
isso aí, Maria.