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Cogitando.

Cogitando.

| Desfavor | | 64 comentários em Cogitando.

Todo relacionamento vem com suas tentações. Sally e Somir concordam que se entregar a elas e trair é algo errado, mas não na extensão do que configura o erro. Os impopulares são fiéis aos seus princípios.

Tema de hoje: Cogitar trair já é uma traição?

SOMIR

Não. A não ser que você tenha caído naquele conto do “Segredo”, sabe diferenciar pensamento de realidade. Pensar em algo não é fazer algo. Longe de mim dizer que cogitar trair é uma coisa bonita, mas tem muito chão entre a ideia e a realização.

Acredito que a primeira coisa a se fazer aqui é definir ‘cogitar’. Cogitar é pensar no assunto, planejar, analisar probabilidades… Sally vai tentar fazer vocês pensarem que cogitar é sinônimo de ligar para a(o) amante e marcar um encontro no motel. Não é isso. Cogitar é algo solitário e essencialmente mental. Estamos falando de imaginação e não de realidade.

Cogitar significa que nenhuma das partes foi cientificada: a(o) oficial e a(o) potencial caso nem imaginam o que está acontecendo. Claro que cogitar é um grau além do fantasiar, e isso eu não vou negar aqui. É mais do que uma ‘brincadeira’ da mente, é alguém considerando suas possibilidades. Por isso já abri o texto dizendo que bonito eu não acho.

Mas a mente alheia raramente nos é integralmente bonita. A maior dificuldade de todos os relacionamentos é lidar com outro ser humano com ideias e vontades próprias. A outra pessoa sempre vai pensar em coisas que não gostaríamos que ela pensasse, mas isso é parte do jogo. Ridículo querer patrulhar até mesmo a mente da(o) parceira(o).

Se eu gostaria que uma namorada minha cogitasse me trair? Claro que não! Agora, tem uma sutileza aqui que Sally vai fazer questão de desviar quando estiver argumentando: enquanto for cogitação e a outra pessoa não confessar, você nunca vai saber. Para que isso venha à tona sem ser num sincericídio, a sua cara metade vai ter que sair do plano do cogitar para o agir. E esse agir tem muitas faces.

Sim, traição não existe só quando há contato físico, concordo. Uma mísera mensagem dizendo para um terceiro que há vontade de trair já conta como traição. Traição é a quebra da exclusividade e também a exposição de alguém que confia em você. Cogitar apenas não expõe o ‘traído na imaginação’, precisa trair de verdade para tal.

Entendemos o que é cogitar? Entendemos que cogitar não é agir? Ótimo. Agora vamos lidar com as pessoas malucas que consideram pensar em algo sinônimo de fazer algo: quanto mais complexa a mente de um ser, maior a possibilidade dele ter ideias distantes da realidade. Um animal selvagem tende a pensar no que está fazendo, um animal evoluído ou um ser humano simplório pensa no que VAI fazer. Já um ser humano com habilidade de pensamento abstrato mais apurado (como a esmagadora maioria de nós aqui) tende a pensar até mesmo no que NÃO vai fazer.

A mente permite incontáveis possibilidades. Podemos criar realidades alternativas com nossas sinapses! Se você está vendo um filme de super-heróis, você tem a capacidade de se inserir nesse universo e continuar não acreditando que os poderes deles existam no mundo real. Faz parte do pacote básico do que é ser uma pessoa dotada de imaginação.

É absurdo que se regule o pensamento. É tirar de nós o que de mais precioso temos. Tenho certeza que nisso Sally concorda comigo, mas aparentemente para ela o problema é transformar a fantasia em plano. Como se planejar algo fosse sinônimo de fazer algo. Eu concordei que cogitar estava um passo a frente de fantasiar, não estou mudando de ideia. Só que cogitar ainda está protegido pela liberdade de pensamento tão necessária para nossas vidas.

Muita gente é capaz de planejar nos mínimos detalhes algo que nem quer fazer. Basta um pouco de tempo livre e propensão para se perder nas próprias ideias. Eu mesmo adoro me perder nessa etapa mais complexa da fantasia: criar regras e obstáculos para ‘aumentar a carga’ desse exercício cerebral. É muito fácil confundir esse tipo de fantasia com o cogitar.

Enquanto ainda está dentro da cabeça, a linha divisória está borrada. A forma mais segura de não passar atestado de maluco com ciúme de ideias é permitir que a mente seja livre, gostando ou não do que está dentro dela. Como eu já disse: nem sempre você vai gostar do que sua(seu) parceira(o) está pensando, e isso é normal.

Meu argumento é baseado em consistência. Às vezes precisamos aceitar o que não gostamos junto com o que queremos. Se você acredita na liberdade de pensamento e fantasia, precisa estender a cortesia ao cogitar. Você nunca vai saber se a outra pessoa cogitou por exercício imaginativo ou por vontade de colocar em prática. Aliás, na maioria das vezes, nem mesmo quem cogitou. A mente é complexa assim.

Eu não admito em hipótese alguma ter minha mente censurada. Não conseguiria viver feliz num mundo com patrulha de pensamento. E por isso, tenho que ser coerente e aceitar que os outros tem os mesmos direitos. Pensamento é livre! Nisso não se deve ceder, principalmente por insegurança pontual.

E sim, é insegurança. É medo de não ser insubstituível ou de não ser a ÚNICA pessoa na mente de quem se gosta. Eu tenho horror disso e teria medo de alguém que só pensasse em mim. Gente assim muda de amor para ódio em um piscar de olhos. Pode cogitar à vontade, só não pode trair.

E daí que a outra pessoa cogitou te trair? Te traiu? Eu quero alguém fiel na prática… a teoria é muito complexa.

Para me chamar de corno em potencial, para dizer que não gosta que os outros pensem em geral, ou mesmo para dizer que trai seus princípios assim que algo não te agrada neles: somir@desfavor.com

SALLY

É um daqueles temas onde tenho a certeza de que metade não vai compreender meus argumentos. Eu me importo? Não, eu não me importo. Infeliz daquele que não compreende sutilezas argumentativas e se prende a argumentos padronizados por medo de ampliar seus horizontes e derrubar certezas.

Em um relacionamento declaradamente monogâmico, COGITAR TRAIR é, por si só, uma traição? Sim. Mil vezes sim.

A mente é livre. Fantasiar é permitido. Pensar em outras pessoas é normal. Mas quando se cogita efetivamente sair da imaginação para cair no plano da ação, acredito que se cruze uma linha ética.

Traição não é apenas beijar outra boca ou fazer sexo com outro parceiro. Traição pode não ser física. Traição pode nunca ter qualquer contato físico. Se partirmos da premissa que sem contato físico não há traição, um parceiro que se apaixona e chega até a amar outra pessoa com a qual se corresponde via internet não está traindo o cônjuge, por exemplo.

Existe um mundo de diferença entre fantasiar e cogitar concretizar essas fantasias. Pensar em algo não é cogitar fazer esse algo. Uma coisa é ter vontade momentânea de matar alguém em um surto de raiva, outra bem diferente é cogitar matar uma pessoa. Quando se sai do plano do pensamento e se foca na concretização, se sobe um degrau importante.

Chamem de romântica, chamem de inocente, mas insisto em acreditar que quando se ama uma pessoa, por mais que eventualmente se sinta desejo por outras, não se chega a cogitar efetivamente trair. Provavelmente eu e todos que pensam assim somos minoria, mas… quem quer ser maioria em um país cheio de Brasileiro Médio?

É muito simplório pensar que se a pessoa cogitou te trair mas no final das contas desistiu então não houve traição. É reduzir a traição a algo meramente físico. Da mesma forma que nem todo pensamento significa traição, nem toda traição tem que ter necessariamente contato físico.

Uma coisa é se pegar pensando como seria sua vida se você estivesse com Fulano ou como seria se ficasse com Beltrano. Outra bem diferente é cruzar uma linha ética e começar a cogitar efetivamente concretizar a coisa e trair o parceiro. Pensar “Acho que vou ficar com Fulano e trair a pessoa que está comigo” é totalmente diferente de pensar, no plano da fantasia, que sabe-se que não será realizada, como seria ficar com outra pessoa.

Quer uma prova simples de que cogitação é traição? Experimenta dizer ao seu parceiro que cogitou ficar com outra pessoa. Você não vai fazer isso, sabe por quê? Porque vai dar uma merda sem precedentes. Ninguém quer atrair um tsunami de bosta para seu relacionamento falando um troço desses.

Sim, o pensamento é livre. Mas pensamento não se confunde com cogitação. Quando se cogita se dá o primeiro passo para concretizar o pensamento. O fato de cogitar já é desleal o suficiente para quem se propôs a um relacionamento monogâmico. Já existe, com a cogitação, a quebra de um pilar fundamental da relação. Pois é, certas coisas nem se cogitam. É como dizem: “nem em pensamento”.

Supondo que você conhece um homem que cogitou fazer sexo com crianças de três anos de idade, mas nunca chegou a concretizar essa cogitação… isso aliviaria a barra dele? Desculpa mas para mim, quem cogita fazer sexo com uma criança já não serve para estar ao meu lado, mesmo que nunca tenha concretizado. Tem coisas que não são admissíveis nem na cogitação.

É hora de acabar com esse mito de que tudo que está na nossa cabeça é inofensivo. Alguns pensamentos, por mais que morram como pensamentos, são extremamente graves e depõe contra a pessoa sim. Eu não quero ao meu lado uma pessoa que cogita me trair. Pode fantasiar, pode se perguntar como seria, pode pensar, mas parou por aí. Cogitação não dá. Começar a pensar e equacionar uma forma de ficar com outra pessoa enquanto está comigo? Não, obrigada.

O que você diria de um homem que cogitou fazer sexo com outro homem? Provavelmente o chamaria de gay, mesmo que ele nunca tenha consumado o ato, afinal, só de cogitar uma coisa dessas temos um claro sinal de homossexualidade.

Pois é, curioso que na hora de manter a coerência e deslocar esse pensamento para uma situação próxima, o discurso muda. Homem que cogita fazer sexo com outro homem, que tem vontade de fazê-lo, já é gay, independente se chega ou não a concretizar. Homem que cogita trair a parceira, já a traiu, independente se chega ou não a fazê-lo.

Nesse ponto você pode perguntar como saber se uma pessoa está ou não cogitando te trair. Não tem como. O pensamento é de foro íntimo. Estamos trabalhando com abstração, com uma questão em tese. Não me venham com “não tem como saber o que a pessoa está pensando”. A pergunta é se cogitar trair é traição.

Fico curiosa me perguntando se todos os pseudo-liberais que defenderão o direito a cogitar traição topariam continuar com seus parceiros caso descobrissem de forma inequívoca que estes estavam cogitando ou já cogitaram traí-los. Sim, porque quando se faz esta pergunta que estamos fazendo, a pessoa sempre pensa em si mesma, se seria traição ELA cogitar. Vamos pensar fora da caixa e usar um pouco de empatia? Se fizessem isso com VOCÊ, você não acharia uma traição?

Supondo que você encontrasse um e-mail ou ouvisse uma conversa onde seu parceiro(a) diz que está pensando em te trair, você viria com essa baboseira de liberdade de pensamento? Não. Sabe por quê? Porque ter vontade de trair e começar a tirar essa vontade do campo da imaginação para equacionar esse ato é trair.

Poucas pessoas são fiéis fisicamente e quase nenhuma é fiel e leal na postura. Traição não é só contato físico, uma postura incorreta pode ser tão devastadora quanto uma noite de sexo com outra pessoa.

Para estar genuinamente triste por eu ter te convencido, para atribuir qualquer argumento meu a histeria ou ainda para perguntar ao Somir se ele teria continuado comigo se soubesse que eu estava cogitando traí-lo: sally@desfavor.com


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