Bem na hora.
| Somir | Des Contos | 1 comentário em Bem na hora.
Nelson estava atrasado para o trabalho. Nada de novo, havia algo na relação entre ele o relógio que nunca o favorecia. Sempre com certeza que daria tempo, sempre falhando terrivelmente. Funcionário de um laboratório químico, saíra de casa vestido com seu jaleco na expectativa de ganhar de volta alguns minutos e escapar da atenção do chefe. Navegando entre a multidão na rua, tentando comer um sanduíche que não teria tempo de comprar ao mesmo tempo que tentava tirar o celular do bolso para conferir as horas, não percebeu que havia uma pessoa parada no seu caminho. E pelo jeito, uma pessoa grande, já que o impacto fez voar de suas mãos tanto o alimento quando o telefone, fazendo-o cair sentado no chão.
Sua primeira preocupação era o celular, receoso que alguém pudesse pisar no moderno aparelho pelo qual ainda estava pagando, Nelson coloca-se a procurar pelo chão, alheio aos seus arredores. Ao notar o que procurava na borda da calçada, finalmente percebe que os pés que temia quebrarem seu caríssimo brinquedo não se mexem. Seja lá o que tenha acontecido, foi sério o suficiente para fazer as pessoas pararem em pleno centro da cidade.
Nelson olha para cima, esperando encontrar os olhares da plateia estática que se formara. Nada. Ninguém está olhando na sua direção. É quando vem a realização: silêncio. Silêncio absoluto. As pessoas estão olhando em frente, pernas posicionadas como se estivessem seguindo seus caminhos, mas nenhum movimento. Na rua, carros imóveis. Nelson ergue-se, confuso. É como se o tempo tivesse parado. A primeira coisa que vem em sua mente é uma elaborada pegadinha televisiva, põe-se então a procurar por uma câmera, mas nem sinal dela.
Ainda com a sensação de estar sendo observado, aproxima-se de um jovem executivo parado no meio de um passo, expressão congelada. Nelson coloca-se à frente do homem, balançando a mão em busca de atenção. Se era um ator, era um excelente, pois nem mesmo piscava. Um empurrão de leve no ombro dele denota a mesma rigidez com a qual se chocara pouco tempo atrás. Nervoso, Nelson começa a fazer cada vez mais força na expectativa de mover aquela estátua viva que desafiava sua credulidade, o tecido da roupa se move, a pele parece afunda, mas nenhum movimento.
Segunda hipótese: um sonho. Depois de tentar chamar a atenção de mais e mais pessoas pela rua, começa a ter certeza disso. Depois de tanto atrasos, eles viraram tema até quando estava dormindo. Numa última tentativa de trazer a realidade de volta, aproxima-se de uma bela garota com um generoso decote e toca a parte visível de seus seios. Sem nenhum protesto visível ou audível, coloca a mão por dentro do decote. A expressão de Nelson é de desafio, olhando profundamente nos olhos da mulher. Nada. O sonho estava confirmado. E com isso, qualquer medo de consequências.
Nelson já estava num dos últimos botões do vestido da moça quando escuta:
VOZ: O que você está fazendo?
Nelson sente o coração quase saltar pela boca. Ao se voltar para a direção do som, vê um homem de meia idade vestindo um jaleco branco e segurando uma grande sacola. Ele aponta para a mulher.
HOMEM: Ela está com algum problema?
NELSON: Eu… eu achei que era…
HOMEM: Cadê seu equipamento?
NELSON: Eu… não é o que parece…
HOMEM: Você é novo, né? Cara de perdido, sem equipamento… Dolashi.
O homem coloca a sacola no chão e estica a mão para cumprimentar Nelson. Nelson vacila por alguns segundos, mas retribui o gesto.
NELSON: Nelson.
DOLASHI: Olha, dá problema se um supervisor te pegar sem seu equipamento. Vamos fazer o seguinte, se alguém perguntar, eu digo que estou te ensinando o trabalho, certo?
NELSON: …
DOLASHI: Todo mundo começa de algum lugar. Você não acredita o quanto eu já me perdi quando cheguei aqui. Mas, me diga… o que que você estava procurando nela?
NELSON: Uma… anomalia…
DOLASHI: Física? Vamos ver então. Pega o sensor DTR.
Dolashi se aproxima da mulher, desabotoa os últimos botões de seu vestido, expondo o corpo seminu dela. Nelson abre a sacola, e fica confuso com a profusão de equipamentos indecifráveis que encontra lá dentro.
DOLASHI: O DTR é o pontudo com o cristal roxo.
NELSON: Esse aqui?
DOLASHI: Isso. Dá aqui.
O homem então começa a apontar o equipamento para diversas áreas do corpo descoberto da mulher estática.
DOLASHI: Não… nada. Essa aqui está bem, ainda vive mais uns sessenta anos. Toma aqui o sensor que eu vou abotoar de volta, não ia ser legal para ela voltar com os seios de fora numa rua movimentada dessas, não? Imagina se um tarado vem e se aproveita?
NELSON: Hehe… é… um perigo.
DOLASHI: Qual a sua equipe?
NELSON: A… é… eu me perdi deles…
DOLASHI: Aposto que você é novato do Lasabi. Ele nunca dá atenção para quem está começando. Já que você está perdido, me ajuda a conter um vortex categoria 1 aqui perto.
NELSON: Claro.
Dolashi segue em frente, apontando a sacola para Nelson, que entende a indireta e começa a carregar o peso, seguindo-o.
DOLASHI: De onde você é, Nelson?
NELSON: Daqui das redondezas mesmo…
DOLASHI: Lacteano?
NELSON: Isso… é…
DOLASHI: Eu gosto daqui. O povo é meio confuso, mas o lugar é excelente. Tá bom que dá mais trabalho fazer a manutenção, mas eu não trocaria não.
NELSON: Manutenção?
DOLASHI: Ah, eles dão vários nomes bonitos, mas é manutenção, não tem muito o que inventar. Acha anomalias, corrige, encontra um vortex, contém… minha filha perguntou uma vez o que eu fazia, eu disse que era um zelador. Estou mentindo?
NELSON: Não. É o que a gente faz, né?
DOLASHI: Pois é. É um trabalho digno, não me entenda mal. Tenho muito orgulho de ajudar a manter algo dessa escala funcionando direito. Parece tudo muito tranquilo vendo agora durante a manutenção, mas você já viu tudo isso em movimento? É uma loucura!
NELSON: É sim! Só uma dúvida, quanto tempo vai demorar essa manutenção?
DOLASHI: Essa é uma pequena. Dois ciclos e meio antes da gente ter que sair. Opa! Chegamos. O vortex está aqui. Já conteve um antes?
NELSON: Não…
Os dois estão na frente de uma famosa rede de fast-food. Dolashi adentra o recinto desviando de um homem obeso. Nelson segue. Acima de uma das mesas, onde um casal está parado no tempo mordendo sanduíches, um ponto de luz azulada pulsa suavemente.
DOLASHI: Pega o difusor 2T. Esses azuis às vezes tem surpresas.
NELSON: É…
DOLASHI: Estou falando como amigo, é melhor prestar mais atenção no treinamento. Isso aqui pode ser perigoso se não souber o que está fazendo. O difusor é a caixa amarela com uma antena.
Nelson logo encontra o equipamento e entrega nas mãos de Dolashi.
DOLASHI: Sabia que tudo isso começou com um categoria 9 mal interpretado como 1? Eu até agradeço porque me deu esse trabalho, mas perdemos mais de mil dos nossos nessa… sem contar as três versões que foram destruídas. É até por isso que nos cobram tanto, depois desse desastre todo, o mínimo que esperam da gente é manter essa estável por mais uns dois ou três petaciclos. Eu falo demais, né?
NELSON: Não, tranquilo…
Dolashi aperta alguns botões na caixa amarela, aponta a antena para a luz azul. A energia começa a ser sugada lentamente rumo ao apêndice do aparelho.
DOLASHI: Facinho. Agora é só esperar um pouco e…
Um flash azulado toma conta do ambiente. A caixa amarela dispara um alarme agudo. Dolashi fica pálido.
DOLASHI: Não! Não pode ser… é um nove? Vai sobrecarregar! Pega o XT! Pega o XT!
NELSON: O que está acontecendo?
DOLASHI: O maior de todos! O vermelho! Pega! PEGA!
Nelson começa a mexer desesperadamente na bolsa até encontrar o mais pesado dos equipamentos ali: um cubo vermelho cheio de ranhuras luminosas. Ele tenta entregar para Dolashi, mas é impedido:
DOLASHI: Eu preciso chamar o time de contenção! Ativa o XT e fica aqui enquanto eu faço isso.
NELSON: Como eu ativo?
DOLASHI: Usa o seu chip!
NELSON: Chip? Eu não tenho isso!
DOLASHI: Hã? É impossível! Você não poderia estar se mexendo aqui sem o chip!
NELSON: EU NÃO SOU DO SEU TIME! Eu sou uma pessoa normal!
DOLASHI: Me dá o XT!
Dolashi pega o equipamento, toca a palma da mão num dos seus lados. O cubo se ilumina e começa a capturar a energia que sobrecarregava o outro aparelho.
DOLASHI: Acha mais alguém! Eu não posso sair daqui agora! Acha mais alguém!
NELSON: Onde?
DOLASHI: As naves estão a seis quarteirões daqui, na praça. Corre naquela direção, assim que achar alguém, diz que tem um vortex categoria 9 aqui! Se eles não vierem a tempo eu não sei quais serão as consequências no fluxo temporal! RÁPIDO! Você tem um ciclo!
Nelson nem pensa, sai correndo, voltando na direção da qual viera originalmente. Em disparada por uma grande avenida, percebe um movimento numa das ruas paralelas, fora da direção apontada por Dolashi. Prevendo que seria mais rápido, muda de rota. Nelson berra por socorro enquanto percorre seu novo caminho, ouvindo um som estranho que parece cada vez mais próximo, mas não recebe nenhuma resposta.
Alguns minutos depois, finalmente enxerga a fonte de movimento: um último homem de jaleco branco entrando numa fantástica nave que faz um barulho ensurdecedor. Nelson grita e grita, mas a nave, distante, começa a levantar vôo. Em um rápido e aparentemente impossível movimento, ela desaparece numa trajetória rumo ao céu. Nelson, esbaforido e rouco, observa decepcionado.
Outro flash de luz azulada.
Nelson está com as mãos dentro do decote da bela mulher na rua. Ela grita.
FIM… oi?
Depois que o Neo cagou com a Matrix, os bugs aumentaram.