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Povo sofrido.

Povo sofrido.

| Desfavor | | 8 comentários em Povo sofrido.

Começam as comemorações do Dia dos Fracos aqui na República Impopular do Desfavor, e para tanto, vamos fazer uma semana de vitimização histórica, nem sempre tão piedosos com as vítimas. Para começar, vamos colocar em perspectiva o sofrimento de grupos humanos. Sally e Somir discutem a narrativa dos judeus como povo mais sofrido, com exemplos.

Tema de hoje: qual o povo que mais sofreu até hoje?

SOMIR

Vai surpreender muita gente a minha escolha, então eu prefiro fazer uma breve introdução sobre a lógica que estou usando aqui: sofrimento não é só uma medida de quanto alguém é violentado ou explorado, mas também de quão transparente é esse sofrimento aos olhos alheios. Sofrer diante de um público que compreende seu sofrimento e vai se lembrar dele tem um fator único de conexão entre pessoas. Não compensa sofrer, evidente, mas dói menos quando se tem pelo menos uma testemunha de como você está sendo injustiçado, não? Alguém sabe. Parece uma esperança, ou no mínimo, dignifica um pouco o que você está passando.

Por isso, ao invés de escolher povos que receberam pelo menos a percepção do seu sofrimento do resto do mundo, vou falar de um que vai te deixar surpreso: os irlandeses. Sim, os europeus branquinhos. Absurdo? Bom, vamos pensar melhor nisso. Os irlandeses passaram por todo tipo de desastre que configuraria minoria sofrida hoje em dia, mas… aposto que ninguém sequer pensa neles quando falamos desses assuntos. Ninguém vai pagar reparações para os irlandeses, ninguém vai se desculpar publicamente pelas merdas feitas contra eles, e ainda por cima, ai de qualquer irlandês que tentar se comparar com negros, judeus e grupos mais “famosos” pelas agruras sofridas. O irlandês tem toda a história maldita e ainda por cima é tratado da mesma forma que os ditos grupos privilegiados.

Vamos lá: a Sally já escreveu um texto sobre os “Gingers”, os ruivos que sofreram muito preconceito histórico pela sua aparência. Adivinha onde está a maior concentração mundial dessa “raça”? Irlanda. E isso desde o tempo onde o cabelo vermelho era desculpa para chamar essas pessoas de sub-humanas sem nenhuma repercussão negativa. Os irlandeses também tinham uma cultura própria muito bem desenvolvida que batia de frente com a de basicamente todos seus invasores, e foram vários invasores. Logo ao lado deles, nórdicos, ingleses, franceses e todo tipo de povo que se amarrava em pegar barcos e ir conquistar territórios alheios.

Os africanos sofreram com a invasão europeia? Com certeza, mas os irlandeses eram feitos de gato e sapato pelos mesmos povos em média uns mil anos antes. E enquanto os africanos eram escravizados, os irlandeses ainda estavam no mesmo barco. E vamos falar de escravidão: fato pouco conhecido é que os irlandeses foram escravizados sem parar na história. Europeus se amarravam em trazer uns ruivos para trabalhar para eles, fazendo visitas constantes para pegar mais e mais.

E adivinhem só quem também se amarrava em escravizar irlandeses? Os árabes. Outro fato pouco lembrado é que perto do que os árabes faziam com seus escravos, os europeus eram santos. Os sultanatos compravam escravos sem parar, e para eles a estratégia era bem diferente: ao invés de criar seus escravos para gerar filhos que também seriam escravos, faziam eles trabalhar até a morte e simplesmente compravam mais. Era economicamente mais eficiente. E durante muito tempo, os árabes compravam mais escravos da Europa do que da África, até porque o “continente negro” ainda não estava muito bem explorado.

E falou em escravo na Europa, falou de irlandês. Milhares e milhares de irlandeses foram enviados para os campos da morte no Oriente Médio, tão traídos pela própria “raça” quando os negros africanos. Quando o comércio escravagista ficou mais lucrativo na África que começamos a notar o que estava acontecendo, mas o mundo sempre foi um lugar horrível no que diz respeito à escravidão. Temos muito mais noção dos crimes cometidos contra os africanos, justamente porque eles eram o “melhor produto” na época que a humanidade começou a se importar mais com isso. Se for para falar de sofrimento com essa situação, eu argumento para o lado que sofreu com isso por mais tempo. Quase um milênio, basicamente.

Mas acham que é só isso? A Irlanda era “pagã” originalmente, cultura celta, e foi espancada carinhosamente pelos países próximos para se tornar católica. Quando os irlandeses aceitaram o catolicismo, o resto da Europa decide virar protestante, causando mais um espancamento do povo local por causa da fé que foi imposta a eles pela mesma turma que subitamente mudou de ideia. Essa bagunça religiosa dura basicamente até hoje, criando uma divisão terrível e sangrenta entre a população. Você acha que briga entre católico e crente é ruim aqui no Brasil? Na Irlanda, por muito tempo, as pessoas se matavam por isso. Movimentos separatistas como o IRA, muito influenciados por essa questão, aterrorizaram o país, muito antes do resto do mundo estar preocupado com terrorismo. Sem contar todos os abusos vindos de fora, os irlandeses ainda conviveram com uma guerra civil constante, com momentos de “guerra fria” e pancadaria deslavada alternando-se constantemente. Sem paz.

E acha pouco? Ao contrário da África, a Irlanda não é um lugar hospitaleiro, com natureza abundante. É um lugar frio, cinza e depressivo. Então, as coisas podem dar errado de formas ainda mais assustadoras: desde que a batata chegou na Europa, os irlandeses foram um dos povos mais entusiásticos no cultivo da planta. A dieta deles consistia basicamente disso, até porque era complicado plantar outras coisas por lá com a mesma eficiência. E aí vieram dois invernos dos mais severos… o suficiente para jogar o país numa fome continuada que matou um oitavo da população do país. É um dos momentos mais horríveis da história humana, com um povo morrendo lentamente de fome, sem ação do governo e no meio de pragas como a peste negra comendo soltas.

Porque tem essa: todas as desgraças da Europa, e são muitas, são as da Irlanda. E o país, por incrível que pareça, conseguiu se reerguer, vez após vez. Hoje em dia tem um dos melhores padrões de vida do mundo, por isso que pouco se fala de tudo o que eles passaram. Eu até entendo que hoje em dia tem povos que sofrem mais, mas se formos considerar a história corrida e o que se aprendeu com ela, os irlandeses pagaram todo o preço de um povo explorado e sofrido, ninguém veio ajudar, eles conseguiram se levantar… e hoje em dia, se um irlandês olhar feio para uma minoria, é um monstro. Tudo isso por nada. Bacana, né?

Para dizer que eu sou racista, para dizer que eu sou inversamente racista, ou mesmo para dizer que eu sou reversamente inversamente racista: somir@desfavor.com

SALLY

Qual o povo que mais se fodeu na historia?

Muitos povos sofreram ao longo da história, as acho que os mais impactados foram os negros. Não apenas pela escravidão ou preconceito, algo que acontecey com muitos povos, raças e etnias. Existem problemas muito mais do que esses clichês.

Por uma série de fatores históricos, sociais, culturais e naturais, o continente que é negro por excelência calhou de ser também o mais atrasado: África foi por muito tempo e ainda é um lugar considerado precário, salvo exceções pontuais.

Tem os piores índices médios de desenvolvimento, altíssimos índices de doenças, mortalidade infantil e tantas outras coisas ruins. Além do peso de viver em um lugar assim, que é assim pelo somatório de fatores do começo do parágrafo, ainda paira sobre os negros uma suposta responsabilidade por isso, que eles não tem, pois muita gente ignorante acredita que a África é, no saldo geral, tão atrasada, por “fracasso dos negros”. Isso é mais nocivo do que os problemas que o continente enfrenta. Não tem como sentar a e dar uma aula de história e geografia a todo idiota que pensa assim.

Quando os negros saíram da África foi em condições desumanas, não apenas no translado, mas para sofrer discriminação e não ter um espaço digno. Sabemos que quem sai do seu país mal preparado, mal qualificado, acaba não conseguindo se estabelecer bem no novo país. A única forma pela qual os negros foram reconhecidos, durante muito tempo, foi pela aptidão física, pela força. E assim foram acomodados em diversas sociedades: trabalhos braçais, atletas, etc, renegando o trabalho intelectual. Isso é algo mais sutil que o racismo padrão de chamar por nome pejorativo, portanto, mais difícil de combater.

Assim, cria-se a seguinte situação cruel: viver em um continente onde há identidade cultural, porém há muita fome, doenças, mortalidade infantil, tecnologia deficiente quando comparado a potências mundiais, saneamento precário, guerra civil, falta de infraestrutura e muitos outros problemas graves ou morar em outro lugar que não sua pátria, talvez ter tudo isso, mas não se adequar aos padrões de beleza, culturais e sociais do lugar. Não é que o Brasil seja isso ou aquilo, o mundo pode ser um lugar ingrato para as pessoas negras. É uma falha enorme, que não está sendo discutida a nível mundial.

Sejamos honestos, por mais que seja tentador pensar que o mundo evoluiu e não existe mais racismo, sabemos que não é verdade. E aqui não me refiro ao racismo clichê, mas a um tipo oculto, silencioso. O racismo silencioso, sutil, é o pior de todos pois é o mais difícil de ver e combater. E sobre ele, quase ninguém fala.

Dependendo do país, uma mulher negra não consegue nem comprar uma base para maquiar o rosto, pois o “cor de pele” é algo entre o branco-gelo e o rosado. É algo grave? Talvez não, mas é muito escroto que seja assim. Racismo não é apenas mandar subir pelo elevador de serviço, está nas pequenas coisas, às vezes até involuntárias. Essa presunção do negro como trabalhador braçal, esse padrão de beleza estúpido de cabelo liso, corpo esquálido e bochechas rosadas, tudo isso ainda existe e é propagado, não apenas por pessoas, mas pela mídia, pela moda, pela publicidade. E afeta a vida de negros todos os dias. Um inimigo difuso, sem nome, sem rosto. Muito mais difícil de combater.

Até as religiões de origem negra são demonizadas. Catolicismo pregou gente na cruz, jogou na fogueira, torturou, matou em larga escala, mas Candomblé… sacrificou um pintinho! MONSTRUOSO! Só pode ser do demônio para matar um bode, não é mesmo? Matar crianças, matar mulheres grávidas, jogar seres humanos vivos na fogueira é um acidente de percurso perdoável. Matar uma galinha é coisa do demônio (como se granjas não sacrificassem animais de forma muito mais desumana). Há um olhar com uma lente de má vontade que desvaloriza a cultura negra. E isso é pouco conversado. Apenas questões pontuais são faladas.

Assim, ao ocuparem uma posição de “minoria” no mundo desenvolvido (apesar de ser maioria em muitos países subdesenvolvidos), negros são renegados de formas que muitas vezes nos são imperceptíveis, de formas que eu provavelmente até desconheça, só quem sente sabe. Um exemplo bobo: doenças que predominam em negros recebem menos verbas para pesquisa e menos interesse de uma comunidade científica majoritariamente branca. Alguém já parou para pensar nisso? É um racismo silencioso, por omissão, que apesar de não restringir diretamente um direito dos negros, os coloca em segundo plano em muitos casos. E, novamente, quase ninguém está falando sobre.

Isso gerou séculos de preconceito que culminaram em medidas paternalistas que mais parecem criadas para crianças, em uma tentativa burra de inclusão. Assim, negros sofrem mais uma onda de humilhação e discriminação. Cotas precisando medir o tamanho do lábio da pessoa para ver se ela é negra ou não? Recriminação social quando são alvo de humor? Benefícios em função da cor da pele? Acho que merecem mais. Muito mais.

Assim o que se consegue é reforçar um preconceito. Entre todas as raças que foram muito escrotizadas, os negros me parecem ser os únicos que ainda não estão no caminho certo para igualdade e dignidade. Isto porque esses novos “direitos” não foram conquistados, foram dados por pessoas que não tem a menor noção do que é um histórico de sofrimento como o dos negros. Pode até ser que a intenção fosse boa, mas na minha opinião, os resultados serão mais retrocesso. A questão tem que ser abordada de forma muito mais ampla e profunda.

Mas para isso, é preciso que se entenda esse racismo sutil, esse racismo nos atos, na omissão. As pessoas parecem muito focadas apenas nas falas. E eu não vejo perspectiva disso mudar. Tomara que mude, mas hoje, o foco está mais nos racistas do que nos negros em si. Que venham dias melhores.

Para entender tudo errado e achar que eu sou racista, para dizer que quem mais se fode é brasileiro ou ainda para dizer que o ser humano como um todo está bem fodido: sally@desfavor.com

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