A última viagem – Parte 1

A primeira sensação é de frio. Muito frio. Aos poucos, sente os pulmões se encherem de ar, e um zunido abafado vai ficando cada vez mais nítido nos ouvidos. O corpo ainda não responde à vontade, por alguns segundos sente o desespero da paralisia, mas logo se lembra que é tudo parte do processo. Um espasmo no lábio superior é o primeiro sinal da retomada das funções motoras, e já sabe que na sequência vem uma dolorosa pontada no alto do nuca, para a qual já retesa-se na expectativa. Ela vem. Os olhos já podem se abrir, o corpo esquenta rapidamente. Está na hora de sair.

Com a abertura da cabine que o protegera dos perigos de uma viagem interestelar mantendo-o em estado de suspensão, o líquido aquecido ao redor do corpo enche de vapor a gélida sala pressurizada. Os músculos parecem ter vontade própria, dificultando muito o primeiro passo para fora. Logo a sua frente, uma cadeira e uma toalha. Já sentado e retirando o excesso da umidade no corpo, recupera o foco na visão o suficiente para conferir quanto tempo havia passado num monitor instalado do outro lado da sala: 1283 anos.

Ele usa a toalha para secar melhor os olhos, e se levanta para olhar mais de perto. Número confirmado. O rosto se contorce entre dúvidas e dores musculares enquanto tenta digitar seu código de acesso no painel. Sabia que havia algo muito errado naquele número. Uma viagem até a colônia em Kepler-1638b deveria demorar pelo menos dez vezes mais do que isso. Alguma coisa havia o acordado muito antes da hora. Mas não havia nenhuma mensagem no seu sistema pessoal descrevendo os motivos.

Resolve então descobrir a posição atual de sua nave. Não poderia estar tantos anos-luz longe da Terra assim. O sistema rastreia a objeto mais próximo para K2-3d, completamente fora da rota original. As primeiras leituras indicam um planeta rochoso e gelado, composto basicamente de ferro. Mais alguns segundos e o sinal de uma pequena estação espacial orbitando o planeta chama atenção. A primeira tentativa de comunicação já é atendida por uma voz humana.

ESTAÇÃO: Bem vindo, Zarel.
ZAREL: Você é?
ESTAÇÃO: Pode me chamar de HJ20A-0019S89122
ZAREL: HJ está bom?
HJ: Claro. Zarel, você está sendo esperado aqui. Posso começar o processo de atração?
ZAREL: Ok… então eu fui parado por você?
HJ: Já falaremos sobre isso. Até daqui a pouco, Zarel!
ZAREL: Até…

O sistema da nave faz o pedido de liberação para controle externo pela estação espacial, Zarel aceita. O processo de aproximação demora mais duas horas, com a correção das órbitas e das velocidades. Zarel aproveita para tomar um banho, trocar de roupa e para fazer sua primeira refeição em mais de um milênio. O engate da nave com a estação acontece com um impacto incomum nos processos automatizados, mas parece estável o suficiente para a transferência. Por uma janela na escotilha principal, percebe que o encaixe estava estranho, como se as peças não se conectassem perfeitamente. Mas mesmo assim, o processo de abertura da estação e da transferência acontece sem sustos. Zarel se vê numa pequena sala com cadeiras e camas, além de uma mesa central onde pode ver o vapor e sentir o cheiro de um bule cheio de chá.

Logo em seguida, a porta do lado oposto da sala se abre. E por ela passa uma figura estranha: algo como um ciborgue dos filmes de ficção científica, com partes mecânicas aparentes formando uma forma muito próxima da humana. Zarel estava preparado para encontrar tecnologias avançadas quando saísse do estado de suspensão através de um longo treinamento psicológico realizado na agência espacial, mas ver ao vivo era uma experiência poderosa que lhe arrancava as palavras.

ROBÔ: Zarel, é um prazer!
ZAREL: Você… você é o HJ?
HJ: Exato. Você aceita um chá? Infelizmente não pude descongelar outros alimentos a tempo.
ZAREL: Não, não. Eu acabei de comer, e meu estômago ainda está meio estranho.
HJ: Era de se esperar com a sua fisiologia. Deseja alguma forma de tratamento médico?
ZAREL: Não, vai passar. Eu… eu só preciso entender o que está acontecendo. Eu deveria estar indo para Kepler 1638, não K2-3.
HJ: Entendo sua preocupação. Zarel, nós precisamos conversar. Você gostaria de se sentar?
ZAREL: Ok… você… é… não, deixa.
HJ: Eu sou o que vocês chamavam de robô, sim. Minha consciência é artificial, mas existe mesmo assim. Minha aparência te incomoda, Zarel?
ZAREL: Não, não… é que demora um pouco para me adaptar, só isso.
HJ: Excelente. Zarel, eu acredito que você queira uma explicação sobre o que está acontecendo.
ZAREL: Sim!
HJ: Em primeiro lugar, a missão para Kepler 1638b já foi realizada com uma nave mais veloz e provou-se infrutífera. Você partiu da Terra numa ponto dois, poucos séculos depois já tínhamos inúmeras ponto oito operacionais. Muito embora as ponto seis sejam mais comuns hoje em dia, os efeitos relativísticos eram fortes demais nas ponto oito… mas, eu estou saindo do foco.
ZAREL: Você diz 80% da velocidade da luz?
HJ: Sim. Desde que você saiu tivemos grandes avanços. Mas, era previsto que isso podia acontecer, não? Você era nossa cláusula de segurança. Não precisamos mais dela.
ZAREL: Então… o programa de expansão já funcionou?
HJ: Sim, foram descobertos excelentes prospectos e muitas colônias estão em funcionamento agora mesmo.
ZAREL: Eu fui parado aqui porque minha missão foi cancelada?
HJ: Sim. E também porque você entraria numa área proibida. Nós fomos expulsos daquela galáxia toda. Longa história.
ZAREL: Oi?
HJ: O importante é que você está aqui. Não sobraram muitos orgânicos! Você vai ser perfeito para o que precisamos. Nós vamos precisar que você vá para uma nova estação num sistema muito próximo, mas não se preocupe, temos uma ponto seis pronta para a viagem. Quarenta anos e pronto.
ZAREL: Mas…

Um alarme começa a tocar na estação.

HJ: E eles estão se aproximando. Eu vou desligar seus sentidos por medida de precaução. Boa viagem!

Continua…

Para dizer que não acredita que eu vou começar com isso de novo, para dizer que é só birra pelo Pilha ou mesmo para dizer que preferia um furo pra ver punição: somir@desfavor.com

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Comments (5)

  • Somir,
    Ignore o mimimi “não gosto de ficção científica, blábláblá”.
    Está ótimo.
    Aguardando a parte 2 e como o usarão para a cópula.

  • Devo admitir que não li este texto, mas vou le-lo. Não curto ficção, mas parece interessante viajar no espaço. Mas antes que você me pergunte que diabos eu estou fazendo aqui neste post, já que não li o texto…

    Somir, te mandei um e-mail. Se puder, verifica pra mim?

    Obrigado!

  • Começo de história promissor, Somir. Ficção científica não é muito a minha praia, mas fiquei suficientemente curioso pra querer ler o que vier a seguir…

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