Os Finos.

A pesada porta de metal range, teimosa contra o esforço do Servidor. Uma, duas, três ombradas são necessárias para finalmente abrir uma fresta. Pelo canto da visão, o homem vê a luz do dia refletindo nas paredes internas, talvez pela primeira vez em décadas. O cheiro é terrível, um misto de mofo e suor que transforma sua expressão de esforço em genuíno horror. Com mais alguns empurrões, a porta cede e o ambiente se ilumina. Sentado numa cadeira manchada e carcomida, conectado a uma série de fios e tubos, um Fino.

A figura esquelética não é mais reconhecível como homem ou mulher, os longos cabelos são ralos, acinzentados. A face emaciada parcialmente escondida por óculos de realidade virtual. Pele pálida e osso aparente. O Fino veste um macacão folgado, desbotado e cheio de fluidos corporais ressecados. A única indicação de vida vem da luz verde do sistema de manutenção corporal, lutando bravamente contra o tempo para oferecer nutrientes, vitaminas e esteroides para um ser humano que não deveria estar vivo há muito tempo.

O Servidor se aproxima, atento aos insetos que correm pelo chão. Com um gesto, faz com que as luzes se acendam. O visor do Fino clareia, e seus olhos se fecham imediatamente, incomodados pela luz natural. O Servidor abana a mão diante da figura sentada, buscando uma reação. Uma voz sôfrega responde, mas sem formar nenhuma sentença coerente.

O invasor ri. O homem, bem alto, de pele morena e músculos aparentes, é o exato oposto do habitante daquele apartamento do setor dos Finos. Cabelos muito curtos e várias cicatrizes formam seu rosto. Com um sorriso debochado, ele anda pelo local, analisando os objetos cobertos de pó e teias de aranha que complementam o ambiente. Fotos, decorações e várias outras memórias de tempos antigos, quando os Finos ainda dominavam o mundo.

“Eu sou o Carlos, mas todo mundo me chama de Carlão. Você tem um nome normal ou é que nem os outros Finos?”

“Jiiju…” – responde a pessoa sentada.

“Fala direito, homem! Ou mulher… vocês são todos meio…” – Carlão segura uma estátua de uma figura com seis braços.

“Jei-Ju.”

“Você é que nem os outros. Esse aqui é o seu deus?” – o homem chega diante de Jei-Ju e mostra a estátua.

“Eu…”

Carlão joga a estátua no chão, que se espatifa em inúmeros pedaços.

“Deus só tem um, e é Jesus.”

Jei-ju faz uma menção de se mover da cadeira, mas logo sente a pesada mão de Carlão no seu peito.

“Fica aí, Juju. Está com pressa?”

O pálido ser movimenta a mão lentamente em direção ao braço da sua cadeira, e começa a apertar um botão escondido. Carlão percebe o movimento e sorri.

“Sabe o que eu era até ontem, Juju? Polícia. Eu prendi muita gente que invadiu casa de Fino. Era pena de morte, sabia? Roubar de Fino era pena de morte, Juju. Eu fiz um monte de gente morrer por sua causa.”

“É… verdade… então?” – Jei-Ju fala com dificuldade.

“Verdade verdadeira. Ontem a gente trocou de presidente. Um dos nossos, o cara era militar, bravo demais. Matou mais de cem na guerra. E a primeira coisa que ele fez? Fez você ser só mais um, Fino. Acabou.”

“Você… quer… dinheiro?”

“Dinheiro seu, Juju? Hahahaha. Seu dinheiro não vale nada. Só compra coisa de mentira no seu mundinho. Ninguém aqui fora é obrigado a aceitar. O que vale bastante é essa sua cadeira aí. Um hospital inteiro para manter você vivo, vale uma nota. Vou ter que limpar essas manchas, mas eu estou acostumado a trabalhar.”

Carlão começa a dar a volta na cadeira, Jei-ju faz um esforço descomunal e se joga dela, cabos ainda presos ao corpo. Alguns se partem, outros não. Para o azar de ambos, um dos que se parte é do sistema de excreção. O vazamento é imediato, o líquido escuro escorre por todos os lados.

“Que nojo! Eu ia colocar um balde antes de tirar o seu tubo! Vocês não conseguem fazer nada direito? Se você quebrou alguma coisa eu vou te jogar daqui de cima!”

Carlão tapa o nariz e luta contra o reflexo de vômito enquanto tateia pelo corpo de Jei-Ju para desconectar todos os terminais ainda presos ao Fino. Uma série de palavrões acompanha todo o processo. Jei-Ju respira com dificuldade, sua tentativa de rastejar até a porta impossibilitada pela fraqueza.

“Minha mãe dizia que quem não come fica doente. Olha como você ficou. Parece uma lombriga se debatendo. Valeu a pena ser assim, Juju?”

“Eu não fiz… eu não fiz nada pra…”

“Você não fez nada, né? Eu cresci ouvindo que tinha que trabalhar para você. Que tinha que ser forte para fazer tudo o que os Finos precisavam e conseguir ganhar a vida. Mas não. Eu não precisava. O presidente que estava certo. A gente não depende de vocês, vocês dependem da gente.”

Jei-Ju começa a fazer uma expressão de dor.

“Sem as suas drogas você sofre, né? Minha mãe trabalhou a vida toda fazendo essas coisas para vocês. Morreu pobre. Queria ser Fina, a coitada. Queria que eu fosse também. Fino não sofre, Fino não apanha, Fino não passa fome… mas o que ela nunca entendeu é que Fino também não tem força.”

“Eu nasci assim…” – Jei-Ju tenta parecer mais simpático(a).

“Eu sei, eles me contaram na escola. Eu fui o primeiro que foi na escola, da minha família inteira. E fui escondido, porque o seu governo não permitia.”

Carlão se volta para os equipamentos ao redor da cadeira, começando o processo de desmonte. Enquanto isso, continua falando:

“Todo mundo queria ser magro, bonito, mas não queria esforço. Aí, vocês começaram a tomar remédio atrás de remédio. Todo mundo sedentário, todo mundo entupido de drogas para fazer o corpo funcionar. Fazer força virou coisa de pobre, depois de miserável, depois de todo tipo de lixo que vocês não queriam na sociedade. O lixo virou Servidor, e nenhum de vocês conseguia mais fazer o que nós conseguíamos, ficaram fracos, parecendo esqueletos. Era questão de tempo.”

Jei-ju respira com dificuldade, esticando a mão na direção de uma pequena mesa no canto da sala, onde algumas caixas de remédio residiam.

“Eu não sou assassino, mas eu também não estou aqui para te salvar. Se a natureza quiser que você sobreviva, ela vai te dar a força.”

Carlão usa a mangueira que fornecia água ao equipamento de suporte de vida de Jei-Ju para lavar as próprias botas. Também tira o excesso de material biológico das máquinas que começa a empilhar perto da porta. Ele olha mais uma vez para o moribundo e talvez num gesto de misericórdia, ajuda a tornar Jei-Ju mais apresentável para quem quer tivesse o trabalho de retirar o corpo dali.

Com certeza não seria ele, afinal, o prédio dos Finos ainda tinha milhares de apartamentos com equipamentos caros e ninguém capaz de protegê-los. Ele já ouvia o frenesi de outros Servidores se aproximando para terminar de esvaziar aquele local.

Para dizer que prefere os Grossos, para dizer que sente cheiro de lacração (é o tubo do Juju que vazou), ou mesmo para dizer que não esperava a volta do Carlão: somir@desfavor.com

Se você encontrou algum erro na postagem, selecione o pedaço e digite Ctrl+Enter para nos avisar.

Etiquetas:

Comments (2)

    • Levando em conta essa questão de uma classe sustentando a outra em uma relação permeada de ódio e mútua dependência, a cena descrita aí em cima bem que poderia estar no roteiro de uma refilmagem mais “gritty” do clássico “Metropolis”, de Frizt Lang. E, por causa do lance dos óculos de realidade virtual e de um sistema de suporte prolongando artificialmente a vida de um corpo orgânico que apodrece isolado, também caberia uns toques de “Matrix”.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado.

Relatório de erros de ortografia

O texto a seguir será enviado para nossos editores: