Outro lado.

Patrícia respira fundo. Uma simpática atendente vestida dos pés à cabeça com um uniforme azul parecido com a de uma comissária de bordo aponta a mão espalmada para o portal. A pessoa atrás dela na fila toca levemente seu ombro, ela vira o corpo e é recebida com um sinal de pressa. Ela vacila por um instante, pensando se seria melhor desistir. Ao perceber que era alvo de vários olhares, toma coragem e segue em frente.

O portal fica no centro de um grande galpão, lotado de pessoas, placas publicitárias e telões mostrando o destino: uma estação de trens do outro lado do mundo. As máquinas que emolduram o portal parecem vindas de um filme de ficção científica, luzes, cabos, telas com números e códigos incompreensíveis. Mas o que mais chama atenção é o local de passagem, o portal é preto, mas preto de uma forma que só se percebe ao vivo. Não reflete luz alguma.

Ela atravessa, como milhares de outras pessoas já fizeram desde o lançamento comercial do sistema de teletransporte entre os EUA e o Japão, o primeiro de muitos segundo a mais nova gigante de tecnologia, a Transverse. Apesar do medo, a passagem é sem nenhum incômodo, ela mal sente a diferença entre um ambiente e outro, sua visão nem chega a ficar escura.

Do outro lado, uma atendente asiática a recebe com um largo sorriso, mesmo uniforme da americana. Ela olha para trás, o portal continua totalmente negro. Ao redor, uma moderna estação de trem lotada com locais e estrangeiros. Patrícia é incentivada gentilmente com um movimento de cabeça da atendente, e logo segue para a fila da imigração. Mera formalidade, afinal, os documentos eram checados e liberados com antecedência pela internet. A fila avança rapidamente com a organização esperada dos japoneses.

Mas não na vez dela. Depois de entregar o cartão que recebera do outro lado, uma senhora de meia idade faz um movimento quase que instintivo ao passá-lo pelo sensor. O bipe de confirmação que escutara seguidamente na fila não toca. A mulher no balcão da imigração pausa por alguns instantes. Ela tenta novamente. Novamente. Novamente…

Nada. Patrícia pergunta num inglês meio quebrado se algo estava errado, a mulher pede um instante com dedo em riste. Volta-se para trás até um homem que se aproxima. Os dois conversam em japonês, Patrícia espera ansiosa. O homem pede para que ela o acompanhe. Ela pergunta novamente se algo estava errado, ele só reforça o gesto apontando na direção de um quiosque no meio do fluxo de passageiros.

Lá dentro, ela é convidada a sentar numa fileira de bancos enquanto espera. O homem que a guiou até ali diz que logo volta. Os minutos se passam, e o que se segue é um monte de pessoas entrando e saindo de uma salinha. Patrícia pede informações para os que passam, mas os poucos que respondem em inglês apenas se desculpam pela demora.

Meia hora, uma hora, duas horas. Patrícia se levanta e vai bater na porta da salinha. Um homem a recepciona, pedindo para que ela se afaste com as duas mãos em frente ao corpo. Lá dentro, meia dúzias de pessoas discutem ao redor de uma mesa, pilhas de papéis e notebooks espalhados. Ela não se rende ao movimento do homem e avança sala adentro, para o espanto dos presentes. Em um tom agressivo, ela pergunta o que está acontecendo e porque não pode ir embora.

Chocados, os presentes se entreolham até que um rapaz, aparentemente o mais jovem da sala, se levanta, faz uma saudação e começa a falar.

“Perdão pelo incômodo, senhora. Tivemos um problema com seu cadastro e os oficiais da fronteira não liberaram sua entrada.”

“Mas eu estava liberada lá em São Francisco! Apareceu o sinal verde… ping… que liberou a entrada em Tóquio.” – ela imita o gesto de passar o cartão enquanto fala.

“Estamos envergonhados pela falha, senhora. O sistema se enganou e liberou outra pessoa. Não você. Você não aparece na nossa lista.”

Ela coloca as mãos na cintura, suspirando frustrada. No mesmo momento, a porta se abre e um homem entra falando em japonês. Quando ele percebe que Patrícia está na sala, faz expressão de espanto. Os outros presentes parecem chocados com o que acabou de ser dito.

“O que aconteceu?” – Patrícia pergunta.

O jovem que conversava com ela antes da interrupção fica pensativo. Ela arregala os olhos para ele, demonstrando ansiedade pela tradução.

“Ele disse que não foi você que atravessou na hora…”

“Eu esperava mais organização dos japoneses!” – Patrícia diz com convicção antes de realmente entender o que tinha ouvido.

“Espera, como assim não fui eu que atravessei?”

O homem que entrou na sala se senta e começa a mexer num dos notebooks, o projetor na parede está espelhando sua tela. Ele abre um arquivo de vídeo com as cenas das câmeras de segurança dos dois lados do portal, data e horário marcados no topo da imagem. Ao mesmo tempo, um homem com uma grande barba ruiva usando um terno cinza atravessa em São Francisco, e Patrícia aparece em Tóquio.

Ele começa a falar, e abre outra tela com o cadastro de um homem com a mesma barba ruiva. Patrícia não entende japonês, mas percebe pelo contexto e pelos dedos apontados por ele que o cartão que ele segurava era do homem do vídeo, e não dela. Um dos presentes, um homem bem mais velho, de cabelo grisalho e grossos óculos, aponta para Patrícia e dá alguma ordem. O jovem que fazia as traduções a pega pelo braço e insiste que ela saia de lá. Patrícia não obedece.

O idoso se levanta e reforça o convite a se retirar com as mãos. Como ela não arreda o pé, ele começa a falar por um rádio. Menos de um minuto até dois seguranças entrarem na sala e a tirarem dali à força. Depois de se debater por algum tempo, os seguranças decidem algemá-la aos bancos da parede, chumbados no chão. Ela grita algumas vezes, mas ninguém vem ao seu resgate.

O fluxo de pessoas na sala continua, até que uma policial feminina finalmente se aproxima e começa a falar:

“Eu vou a oficial Aiko, e eu estou aqui para te levar até um lugar mais confortável. Pedimos perdão pela forma como a senhora foi tratada. Se a senhora cooperar, podemos tirar as algemas.”

Patrícia, derrotada pelo cansaço, fome e ansiedade, apenas acena que sim com a cabeça. A policial é gentil no trato, liberando os braços de Patrícia e a acompanhando até a saída. Antes de abrir a porta, ela pede para que Patrícia cubra o rosto com seu casaco, para evitar exposição. Patrícia começa a ouvir um burburinho se formado do lado de fora, e até para não antagonizar mais, concorda em se esconder.

A porta se abre e o som das vozes explode, em diversas línguas. Ela percebe as luzes poderosas de câmeras esquentando o casaco por sobre sua cabeça. Ela enxerga apenas seus pés e os da policial que a guia. O som de máquinas fotográficas e os flashes não param. Ela segue por um corredor aberto na multidão, vendo apenas os sapatos dos policiais que pareciam manter o caminho livre. São alguns minutos de caminhada no meio da confusão até que ela passa por uma porta, que ao se fechar deixa o local silencioso novamente.

“Pode tirar o casaco.” – a voz de Aiko vem junto com um toque leve nas costas.

Patrícia está num corredor, policiais na sua frente. Eles começam a andar, e ela percebe que está indo até um estacionamento. Ao passar por ele, um carro da polícia japonesa espera com a porta aberta. Ela entra, Aiko ao seu lado.

“Eu vou ser presa?”

“Vai ficar tudo bem.” – a policial responde com um sorriso um tanto quanto constrangido.

Patrícia olha para trás, e pelo vidro traseiro percebe que câmeras e fotógrafos começam a se acumular na saída do estacionamento. Aiko pede para que Patrícia coloque o cinto de segurança, e o carro começa a andar. Ele dá uma volta pelo grande estacionamento, repleto de policiais em cada esquina. Menos de um minuto andando por lá e o carro para.

“Aguarde, por favor.” – Aiko abre sua porta, dá a volta no carro e abre a porta de Patrícia. Agora ela percebe que um furgão branco está parado logo ao lado. Aiko ajuda Patrícia a sair do carro, ao mesmo tempo a porta lateral do furgão se abre, mostrando dois homens de terno preto com fones de ouvido e microfones. Aiko diz para Patrícia entrar no furgão. Patrícia se recusa, obviamente assustada com a situação.

“Eu quero saber o que está acontecendo… eu vou gritar!”

Um dos homens do furgão começa a falar:

“A senhora consegue se comunicar em inglês?”

“Sim, mas devagar.”

“O carro da polícia vai sair pelo local esperado com a oficial Aiko de rosto coberto fingindo ser você para despistar a imprensa. Ela vai até a central de polícia. Você vai vir conosco, porque nós estamos preocupados com sua segurança.”

“Quem são vocês?”

“CIA.”

Patrícia fica com os olhos arregalados.

“Mas estamos trabalhando em conjunto com várias outras nações, o seu caso vazou para a imprensa e queremos te proteger de agentes mal-intencionados. Cada minuto que passamos aqui você passa mais perigo. Por favor, nos acompanhe. Eu te explico o que está acontecendo no caminho até um lugar mais seguro.”

Ela sabe que está tudo muito estranho, mas sente que não tem escolha.

Dentro do furgão, ela vai sentada de lado, diante de algumas telas de computador com cenas da rua ao redor do carro e alguns documentos abertos em notebooks numa mesa instalada do lado oposto.

“Meu nome é Andersen. Você quer uma água?” – o agente oferece uma garrafa plástica enquanto o carro começa a se mover.

Patrícia aceita.

“Não tem um jeito fácil de falar isso, então eu vou ser direto. Nós acreditamos que você não pertença ao nosso universo.”

Ela se engasga com um gole. Ele se aproxima para ajudar, mas ela sinaliza que está tudo bem.

“Estávamos acompanhando de perto o portal da Transverse justamente para poder confirmar uma teoria, a de que o portal não é entre lugares, mas entre realidades diferentes. Todas as travessias aconteceram conforme o previsto… até a sua.”

“Andersen… eu… eu não estou entendendo… por que eu fui presa?”

“Você não é prisioneira, você está sendo protegida. A polícia japonesa recebeu a ordem de te manter segura até chegarmos. Nós estávamos mais próximos, por isso viemos te buscar. Se a informação que você vem de outra realidade se espalhar, muita gente vai querer colocar as mãos em você.”

“Por quê?” – Patrícia está com os olhos marejados.

“Porque você é uma quebra de simetria entre dois universos que estavam sincronizados. Alguém recebeu um estranho no lugar da Patrícia, você apareceu num lugar onde aquele homem era esperado. Você não só é a prova que vivemos num multiverso como uma das chaves para abrir portais para outros.”

“Mas eu só uma pessoa normal, eu não fiz nada…”

“As coisas são como as coisas são. Alguns de nossos adversários estão trabalhando com portais há tempos, muitos vendidos e mantidos pela Transverse. Alguma coisa em você é diferente ao ponto de quebrar a simetria, e se te pegarem vão fazer de tudo para descobrir onde está essa diferença… não importa o quanto precisarem experimentar com seu corpo.”

“E vocês não vão fazer isso comigo?”

“Não.”

Patrícia não acredita nem por um segundo. Ela começa a olhar ao seu redor, tentando achar uma saída. Talvez quando o carro parar ela consiga abrir a porta traseira e pular. O carro para depois de alguns minutos, mas não há tempo de fugir: Andersen se levanta do banco e pede para que ela o acompanhe.

Ela está em outra garagem, apenas uma escada numa das paredes levando até uma porta de aço. O agente a escolta até lá, onde mais dois agentes esperam. Depois de um corredor marcado por portas sem descrição, ela chega até uma espécie de sala de interrogação, como as vistas em filmes. A mesa de aço tem duas cadeiras igualmente metálicas, uma de cada lado. Andersen a acomoda numa das cadeiras e pede para espere um momento, saindo da sala. Patrícia percebe um grande espelho do lado oposto, sabendo na hora que estava sendo observada.

Alguns minutos depois, a porta se abre e Patrícia leva um susto.

Era como se olhasse no espelho: a mulher que entrara na sala de interrogação era… ela.

CONTINUA

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