Enrolês.

É mais forte do que eu: tenho interesse honesto nas tecnologias de criptoativos (bitcoin, NFT e similares) e em questões de Inteligência Artificial. Por isso, sou muito exposto aos projetos mirabolantes que vários golpistas soltam todos os dias. Para saber se estou fazendo um uso minimamente razoável do meu tempo, aprendi a desenrolar o enrolês, uma língua universal de gente que usa sua inteligência para confundir e enganar os outros.

O enrolês é uma forma de se comunicar que visa confundir a mente alheia sem ativar nenhum alerta de incoerência. É meio o que a gente tentava fazer em provas quando não sabia a resposta, mas ao contrário de querer enrolar um professor que em tese sabia a resposta correta, a ideia do enrolês é pegar quem nem sabe sobre o que se fala de verdade.

“Estamos lançando um criptoativo que se conecta à web 3.0 para gerar valor através de alavancamento de fundos energéticos com carbono neutro, produzindo um sistema sustentável que utiliza inteligência artificial para reescalar as necessidades tecnológicas de negócios do mundo todo.”

A frase acima é o típico enrolês de golpistas de criptomoedas, uma sequência de palavras que você conhece misturada com termos novos que parecem positivos, mas que no fundo não querem dizer nada. É lero-lero, mas parece grandioso e por algum motivo, razoável. Se você já tem uma saudável ojeriza a qualquer coisa “cripto”, provável que consiga sentir a armadilha rapidamente, mas os bilhões de dólares que são desperdiçados em projetos do tipo ano após ano provam que é uma tática eficaz.

Porque existem níveis de mentira. Uma pessoa mediana não costuma ser muito eficiente em criar boas histórias ao redor de uma mentira, bandidos e políticos são pegos o tempo todo em mentiras ridículas. O que eu chamo de enrolês é uma versão de mais alto nível, algo que no mínimo te deixa confuso se não faz sentido mesmo ou se foi você que não entendeu.

Por trabalhar com publicidade, desde cedo eu estudo formas de deixar textos mais persuasivos, e mecanismos para enfiar ideias mais profundamente na cabeça das pessoas. Às vezes a pessoa nem precisa concordar com o que você diz, basta que aquilo fique marcado na memória dela para ser usado no futuro. Você pode até achar alguma propaganda ridícula, mas se você estiver no mercado e vir na prateleira um produto sobre o qual já ouviu antes, é provável que você o escolha ao invés de algo completamente desconhecido.

O enrolês não é a mesma coisa que o discurso publicitário, mas tem muitas coisas em comum: algo que eu percebi rapidamente na comparação entre propagandas que funcionam e que não funcionam é que quanto mais rápida uma ideia entra na cabeça da pessoa, maior a chance dela lembrar e agir depois. Publicidade usa e abusa de clichês, modas e manias porque são atalhos para o fundo da memória.

O enrolês de qualidade nunca fica preso só aos termos técnicos e ideias complexas, alguma coisa simples sempre está no meio, porque é a partir dessa ideia mais simples que o entulho aleatório entra na sua cabeça. Voltando àquela exemplo: falar de carbono neutro e inteligência artificial ajuda a empurrar o resto das informações sem sentido, são coisas que as pessoas já ouviram falar e tem alguma opinião sobre.

A grande diferença entre discurso de publicitário e enrolês é que a propaganda tem uma informação que quer que você absorva, o enrolês não precisa disso: basta que você fique confuso para criar algum sentido na sua cabeça e seguir a conversa com ele em mente. Se você viu algum paralelo com a forma como política é feita atualmente, acertou. É isso que Bolsonaros e Lulas fazem com a mente das pessoas: deixam com que elas inventem algum valor para os políticos na cabeça delas, porque é mais eficiente que tentar convencer um por um.

O enrolês vive na mente do enrolado. Não sei quantos de vocês tem esse problema, mas é algo com o qual eu lido: às vezes é difícil de saber se você está lendo ou ouvindo alguém muito inteligente e estudado sobre um assunto ou se está apenas lidando com alguém fingindo isso com enrolês. Eu já disse aqui que a internet pra mim é um lugar mágico porque eu posso ter acesso aos nerds mais nerds de todos os campos de conhecimento. Por isso, muitas vezes sou exposto a gente falando algo muito próximo de grego sobre ciências exatas e humanas.

Então, eu desenvolvi um instinto muito bom para separar quem realmente está falando sobre algo complexo e quem está enrolando: por mais complicado que seja o tema sobre o qual fala uma pessoa muito inteligente ou muito estudada sobre um tema de verdade, as coisas fazem sentido. Mesmo aquele tipo de gênio incapaz de conversar naturalmente e simplificar seu campo de conhecimento conecta os pontos eventualmente.

Mais do que isso, o papo de quem não está te enrolando avança. Um físico explicando como funcionam os glúons pode jogar um monte de termos bizarros na sua direção, mas uma informação leva a outra, tem sequência. A explicação sobre uma parte acaba e começa a explicação sobre outra que depende da que veio antes. Se o que você está lendo ou ouvindo começar a girar em falso e repetir a mesma ideia com palavras diferentes, é enrolês.

Existem dois tipos de não entender algo: não entender por estar difícil e não entender por não fazer sentido. A maioria de nós tem uma insegurança primal sobre burrice, por isso não é incomum você ir acompanhando um raciocínio esperando entender depois de um tempo. Não queremos ser a pessoa que faz a pergunta burra, não queremos ser os únicos que não entenderam. E é nessa insegurança que o enrolês funciona melhor.

O medo de não ter entendido por estar difícil inibe sua capacidade de perceber que não entendeu por não fazer sentido mesmo. Pessoas falam e escrevem coisas sem sentido, é fácil, natural e não dói nada. Você pode falar nada com nada por horas se quiser. Tudo o que eu escrevo aqui pode ser óbvio, mas só é óbvio se você estiver prestando atenção, porque no susto é muito mais provável que a insegurança da burrice ative ao invés do ceticismo saudável.

E não ache que o exemplo específico de alguém falando sobre criptomoedas te protege do enrolês: você tem um gatilho mental para tratar o outro como mentiroso nessa palavra, não quer dizer que você saiba como evitar o enrolês se o assunto for diferente. É a mesma coisa que ouvir “multinível” ou “lucro garantido”, são apenas gatilhos para desligar sua credibilidade, não é uma análise do discurso enrolador alheio.

Um médico falando sobre homeopatia pode te pegar sem nenhuma defesa, e se você não conseguir perceber como o papo dele não vai para lugar nenhum e como as coisas não são explicadas em sequência, vai acabar se medicando com gotas de água ou pílulas de farinha. Uma vez eu peguei um médico ortomolecular no pulo quando ele começou a me falar sobre a quantidade de testosterona no meu corpo depois de colocar uma “sensor” de metal na ponta do meu dedo. Ele usava termos técnicos, mas as informações não tinham sequência lógica. Como publicitário, eu também percebi que obviamente ele diria que eu tinha bastante testosterona, afinal, homens gostam de ouvir essas coisas.

Muita gente ganha a vida com enrolês, e enrolês depende imensamente de você preencher os buracos sozinho na lógica alheia. Para algumas coisas você tem defesa pelos gatilhos de palavras que costumam vir anexadas em golpes, mas melhor do que decorar é aprender. Quando você aprende que enrolês é uma forma de não falar nada com muitas palavras, não importa se o enrolão usou um dos seus gatilhos de papo estranho.

Na dúvida, pense se a informação que você recebeu funciona sozinha ou se você teve que inventar alguma coisa para ela funcionar. Se você precisou criar um sentido que não estava nas palavras que leu ou ouviu, é enrolês. Somos treinados a acha que somos muito inteligentes ao fazer senso de alguma coisa, mas isso não é necessariamente verdade: você faz qualquer coisa fazer sentido se quiser.

É essencial aceitar nossa própria ignorância e perguntar o que não entendemos ao invés de criar uma resposta interna. A pessoa que está compartilhando conhecimento difícil vai te responder alguma coisa que avança a conversa, a pessoa que está falando enrolês vai ficar ofendida, evasiva ou até mesmo te chamar de burra sem entregar nada para complementar a discussão. Mesmo quando eu sou mais chato nas minhas respostas aqui, eu sempre tento deixar alguma coisa que tenha relação com o tema junto, porque não quero ser enrolão.

Você vai ver muito enrolês em golpes e discursos politizados, esquerda ou direita, porque enrolês funciona. E tem muita gente que se comunica em enrolês porque realmente não sabe do que está falando, está em modo de resposta de prova de escola para o resto da vida, confiante que está mandando muito bem porque outras pessoas com medo de serem chamadas de burras (ou “istas”) completam as falhas na sua lógica.

E mais um ponto: sabe quem é mestre em enrolês? Inteligência artificial. Quase todos os textos de golpistas de cripto tentando vender seus projetos claramente sem sentido são escritos por IAs, dá para reconhecer a verborragia aplicada a um pedido sem sentido do golpista. No fundo, toda IA é uma máquina de enrolês, porque no final das contas são incapazes mesmo de entender o sentido do que estão falando, estão apenas conectando palavras que parecem ter relação umas com as outras.

Se o ser humano médio continuar tão suscetível ao enrolês, é provável que mais e mais conteúdo seja produzido dessa forma artificial, e que mais e mais pessoas fiquem presas num mundo que simplesmente não faz sentido, com frases repetidas de dez formas diferentes, produzidas com lógica circular e pior, muito convincentes, afinal, a pessoa primeiro vai pensar que é burra e se esforçar para forçar aquilo a fazer sentido do que simplesmente aceitar que não tem nada ali que ela consiga entender e perguntar até ter uma resposta.

Por isso, eu acredito que é importante aprender a diferenciar enrolês de tema complicado, porque é bem provável que o mundo seja inundado por essa forma nefasta de anticomunicação nos próximos anos, muito além do mundo dos golpistas de criptomoedas.

Se não entendeu, pergunte. Burrice é achar que entende tudo.

Para dizer que não entendeu, para dizer que concorda com tudo, ou mesmo para dizer que eu escrevo igual a IA: comente.

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Comments (21)

  • No fundo, acho que o enrolês ainda é um sinal, ainda que fraco, de evolução mental da humanidade como um todo. Por mais que tenha problemas, ainda demanda algum esforço de quem usa, e pressupõe algum pensamento crítico (ainda que facilmente enganado) de quem ouve. Muito pior é a mentalidade conservadora/tradicionalista/religiosa, que acaba nem precisando do enrolês porque pode recorrer a argumentos do tipo “porque está escrito”, “porque é o costume”, “porque nossos ancestrais assim decidiram”, “porque Deus quer”, “porque _____ mandou” e o velho conhecido “porque sim”, entre outros.

    • Concordo plenamente (e concordaria faz tempo)!

      Ainda estou e estive em lugarzinhos “de fachadamente” tradicionalistas nas formas “porque está escrito” e “porque d**s quer”…onde literalmente “pensam ainda + minúsculo” para expandirem o não-ruim (porque ter de bom e até do melhor partindo deles/as)…

  • Caramba, Somir, medir testosterona com um sensor de metal no dedo? Pelo amor, alguém minimamente estudado sabe que pra ver quantidade de hormônios é outras substâncias é via exame de sangue. Tem que ter muita coragem o cara pra ir em frente com tanta burrice.

    Sobre o enroles propriamente dito, me fez lembrar as disciplinas de produção escrita nas letras, em que a gente aprender a redigir diferentes tipos de textos, em diferentes níveis e padrões de linguagem. Enroles é uma ótima técnica, desde que a pessoa seja minimamente inteligente e capaz de querer enganar aos outros. E é aquela coisa, de boas intenções intenções o inferno está cheio, então…

  • Esses blogs e tablóides sobre criptoativos me irritam por causa dessa linguagem enroladora. Um monte de termo em inglês, que não explicam nada, como funciona ou origem, apenas que se você investir, vai dar muito bom e tentam engatilhar seu FOMO.

    E é claro, quando o Bitcoin tá em alta, “porque vale a pena investir em 2024”, mas quando tem uma queda “banqueiro trilhardário dá razões para não investir em criptoativos, veja”

    • Quanto mais você conhece as pessoas desse meio, mais percebe que é o mesmo golpista genérico do marketing multinível, mas falando sobre criptomoedas e agora inteligência artificial. Nem sabem o que o Herbalife deles faz, mas vendem do mesmo jeito.

    • Ana, há uma crônica do Luís Fernando Veríssimo sobre jargões e falsos entendidos em que ele cogita por quanto tempo poderia escrever uma coluna de economia – assunto sobre o qual ninguém parece ter lá muita certeza – usando pseudônimo e um palavreado inventado, antes ser descoberto. Nessa mesma crônica ele também diz que “análise econômica é uma arte tão imprecisa” que, quem quisesse denunciá-lo, talvez ficasse antes em dúvida se estaria mesmo diante de uma mera farsa ou de um ainda incompreendido “enfoque diferenciado” e fora da caixa.

  • Um jeito de testar o conhecimento é perguntar o que significa, ou o que está querendo dizer, com uma das palavras complicadas do discurso. A velha e boa semântica.

  • Texto para nos alterar, nos fazer pensar e nos ajudar a perceber armadilhas. Sabendo que o “enrolês” existe e como é empregado, ficamos mais atentos e menos suscetíveis a engodos e tapeações. Isso é importante para se conseguir detectar gente que camufla com um palavreado difícil e pomposo o fato de não entender realmente sobre o que está falando. Conhecer o “enrolês” também serve para perceber quando se trata de um espertalhão tentando nos enganar aproveitando-se do desconhecimento da maioria acerca de coisas novas ou complicadas.

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