Último dia.
Vamos começar a semana com um tema leve? A morte chega para todos, e com a medicina moderna, muitas vezes num ambiente mais controlado. Sally e Somir concordam que não é para ser esse drama todo, mas não entram em acordo sobre como viver o último dia nesse mundo. Os impopulares opinam enquanto é tempo.
Tema de hoje: o dia da sua morte é um dia que vale a pena ser vivido?
SOMIR
Sim. Mas não porque eu acho que tem algo de tão especial assim nesse momento, eu acredito que vale a pena viver até o último dia porque é só mais um dia. Quanto mais pressão você se coloca por um dia ou outro, menos você aproveita a vida que tem.
Estamos considerando uma situação mais controlada aqui: você não pode mais ser curado, mas os médicos podem te dar um conforto para o seu último dia nesse mundo. Pode ser conforto consciente, isso é, você fica acordado sem dor, ou pode ser conforto inconsciente, com você dormindo os seus últimos momentos. Dor não é uma opção.
E nesse caso, eu não vejo problemas em estar consciente. É só mais um dia. Nada dessa obrigação social de fazer suas despedidas, ou mesmo de dizer palavras sábias para a eternidade, é seu último dia para fazer o que quiser, mesmo que seja nada. Se quiser terminar a vida vendo TV, veja TV. Se quiser ver vídeo besta na rede social, faça isso. Se quiser unir a família toda e ter uma conversa chorosa sobre os sentimentos, faça também.
Eu tenho um problema sério com gente que fica enchendo o saco dos outros para “viver plenamente”. Vai você viver do jeito que você quiser, deixa os outros gastarem seu limitado tempo em vida fazendo o que acharem melhor. É impossível desperdiçar a vida. Você faz o que pode com os recursos que tem. Ir pra balada ou jogar videogame?
Tanto faz, se você não estiver fazendo obrigado. Estudar ou dormir, trabalhar ou ficar olhando passarinho… as pessoas passam tanto tempo cagando regra sobre o que é viver direito ou não, mas nunca olham para dentro para saber o que querem fazer mesmo. E eu lá sou forçado a achar que é a opinião do outro que conta para eu definir o que eu quero fazer?
Foda-se se você está usando seu tempo como outras pessoas acham que ele tem que ser usado, a vida é sua. Talvez eu queira passar meu último dia fazendo um piquenique num parque verde com as minhas pessoas queridas, talvez eu queira ficar vendo YouTube. Talvez eu queira ter conversas profundas sobre o sentido da vida, talvez eu queira lembrar daquelas vezes que fiz besteira com meus cúmplices. E talvez eu queira só curtir as drogas que os médicos me derem.
Querer não se planeja. Você não sabe o que você vai querer no futuro. É por isso que eu não acho que deva planejar minha vontade nesse último dia de vida. A opção que me permite agência sobre minha vida é estar acordado no meu último dia. Mesmo que seja para aos 45 do segundo tempo decidir que estou é com vontade de dormir mesmo. Eu acho improvável que faça essa escolha sem dor, mas percebem como você precisa estar consciente para fazer a escolha?
Se você não colocar pressão nesse último dia como algo especial, onde você precisa fazer algo “digno” do seu último dia, você já tem a receita do que configura um dia bacana. Não tem prazo para cumprir, não tem responsabilidade, não tem nem gente te enchendo o saco, todo mundo sabe que você está indo embora. Vale a pena viver o seu último dia como vale a pena viver qualquer outro.
Porque o valor é intrínseco: viver vale a pena. Não é para sempre, você passou bilhões de anos sem viver, teve esse brilhareco de consciência e vai voltar ao estado original. E se você acredita em coisas mágicas, ainda tem toda a parte de paraísos, reencarnação e outras aleatoriedades místicas para experimentar depois.
Não é nada tão sério assim, macaco pelado. No fundo, sabemos que as pessoas vão até onde conseguem, e na hora do aperto, na hora de se despedir, costumamos ter essa clareza: se a pessoa tinha valor na sua vida, você esquece os momentos ruins e se lembra das partes boas. O seu último dia pode ser só mais uma memória boa, seja com você deixando palavras de conforto e sabedoria, seja estando feliz fazendo qualquer bobagem que queria fazer.
E muitas vezes as suas pessoas queridas só querem uma “saideira” mesmo, também é gostoso fazer coisas que deixam as pessoas que você gosta felizes. O seu último dia é um dia sem obrigação no dia seguinte, é só fazer coisas que você acha bacana, seja para você, seja para quem te importa. Pronto, valeu a pena. Valeu a pena para você, valeu a pena para quem gosta de você de verdade.
As pessoas costumam ter medo da morte, mas na hora que a morte não é mais negociável, eu vi mais gente relaxando do que se prendendo. Noite de sábado é mais relaxada porque domingo não tem trabalho. Eu acredito que faz mais sentido viver essa noite de sábado do que ficar com medo de ser noite de domingo.
Porque no final das contas, não precisa pensar em mais nada. Se eu puder cagar um regrinha que seja aqui, é que essa clareza do final da vida é um belo indicador do que realmente você quer fazer. Num mundo ideal, essa coisa de fazer dias felizes seria nossa prioridade. Claro que temos um monte de dificuldades, claro que transformar felicidade em obrigação estraga felicidade, mas quando temos a oportunidade, dia com liberdade de buscar felicidade é o melhor dia.
Para dizer que o papo está brabo hoje, para dizer que nunca vai morrer, ou mesmo para dizer que sempre escolhe as drogas: comente.
SALLY
O dia da sua morte é um dia que vale a pena ser vivido?
Depende. Em alguns casos sim, em outros não.
E já vamos tirar o elefante branco da sala: não estamos falando em sentir dor física, pois hoje em dia, se você estiver nas mãos de bons médicos, a regra é não sentir dor, já que existem infinitos recursos de cuidados paliativos para evitar dor e desconfortos físicos. Excluam a dor da equação ao responder a pergunta.
Eu entendo que, como regra, vivenciar o dia da sua morte seja uma parte importante do processo. É o encerramento, é o dia em que você deixa o mundo, é o final de um ciclo. Seria muito bom se todos vivêssemos em uma sociedade mentalmente sã, consciente e bem resolvida que encara a morte dessa forma, como um desfecho natural, como uma celebração da sua participação neste planeta, como o final de uma missão.
É essa a realidade? Como regra, não.
Para a maior parte das pessoas a morte é vista com medo. Pode ser o medo do que vem depois (inferno e similares). Pode ser o medo de não saber o que vem depois. Pode ser o medo em abandonar aqueles que ainda precisam de você ou os seus apegos neste mundo. Há uma infinidade de medos que tornam o processo muito assustador para muita gente. E se existe medo, eu não vejo razão para obrigar a pessoa a vivenciar esse dia.
Muitas pessoas sabem, percebem, sentem quando estão morrendo. Eu mesma posso atestar isso, depois de ter quase morrido. Você sente que o corpo está desligando. Você sente uma descarga química estranha. Você sente sua consciência oscilando em percepções estranhas. Pode durar horas, pode durar dias, pode durar semanas. Se a pessoa sente medo desse estado, eu acho profundamente cruel obrigá-la a vivenciá-lo, obrigá-la a que seus últimos momentos nesse mundo sejam de terror, de medo e de angústia.
E, vejam bem, não estou falando em matar a pessoa para acelerar o processo. Estou falando em medicar a pessoa para que ela não sinta medo ou não esteja consciente se estiver tomada por esse medo. “Mas Sally, como saber se a pessoa está com medo?”. Se você conhecer bem a pessoa, acredite, você vai saber, mesmo que ela não possa falar. Pessoas apavoradas acabam usando suas últimas energias para pedir ajuda.
Na minha cabeça, parte do cuidar de quem a gente gosta é mitigar o sofrimento e dar acolhimento. Se tem uma pessoa que eu gosto em estado terminal e com medo, eu não vou cagar regra sobre a importância de ela vivenciar o dia da sua morte, eu vou tomar providências para tentar acabar com esse sofrimento, para que a despedida dela deste planeta seja o mais suave e o menos sofrida possível.
E muita gente não entende isso. Muita gente vai te criticar, te jogar pedras, te acusar. Mas foda-se, pois não é sobre o que é melhor para você, é sobre o que é melhor para aquela pessoa que você gosta, que está ali, vulnerável e não pode tomar providências sozinha.
O dia da sua morte é um dia que vale a pena ser vivido se for sem medo, sem sofrimento e sem angústia. Se for com, melhor que te apaguem e você não passe por esse sofrimento inútil.
Lógico que se existir outras formas para fazer o sofrimento cessar, o medo reduzir, a angústia desaparecer, acho muito válido. Mas nem sempre dá certo, principalmente no maior país católico do mundo, onde boa parte da população ainda guarda um resquício de medo de um julgamento pós-morte com uma eventual condenação que não é nada agradável.
E nem acho exigível, em muitos casos, que a pessoa morra plena, resignada e com sentimentos positivos. Uma mãe que deixa filhos pequenos vai morrer com pesar, com medo, com luta, por exemplo. Adoro belos discursos, mas nem sempre eles se encaixam na realidade.
É bem difícil que pessoas com medo de um inferno, com um apego absurdo por este planeta e todas suas alegorias, com uma mentalidade de “lutar pela vida” mesmo quando a batalha não pode ser vencida morram de forma serena. A pessoa vai deixar este mundo sofrendo, assustada, apavorada. Se for nas minhas mãos, não vou permitir que isso aconteça.
Manter uma pessoa nesse estado tem repercussões físicas, inclusive. Uma pessoa com medo luta desesperadamente para não morrer, prolongando seu sofrimento de forma desnecessária no caso de doenças terminais. É como uma pessoa que está perdida no meio do oceano, sabe que não há possibilidade de resgate, mas nada até não aguentar mais para se salvar.
Uma pessoa que passa muito tempo nessa situação de medo, de angústia, de terror, não terá uma morte serena. Vai ser um processo horrível. Vai deixar este mundo banhada em sofrimento. Não acho aceitável e, se estiver ao meu alcance, vou poupá-la desse fim triste. Será quimicamente desligada com fármacos criados para induzir uma sensação crescente de bem-estar e essa será sua saideira. Que o corpo morra no seu tempo, a mente eu desligo antes, por compaixão. E espero que quando a minha hora chegar, alguém tenha a bondade de fazer o mesmo por mim.
“Mas Sally, você é arrogante, está brincando de Deus”. Bom, então todo mundo brinca de Deus, pois todo mundo toma ou dá remédios para controlar sofrimento extremo nos outros. Se uma mãe vê seu filho ser morto na sua frente, não vai ter uma alma que considere arrogância dar um remédio para apagá-la e que ela consiga descansar um pouco diante de tanto terror. É basicamente isso, apagar a pessoa diante de um momento de terror.
É empatia, é afeto, é cuidado. Desculpa, mas eu não consigo assistir uma pessoa aterrorizada e sofrendo quando isso pode ser atenuado, em nome de uma regra de “ter que vivenciar seu último dia”. Se depender de mim, apagarei a todos vocês com substâncias deliciosas de bem-estar caso estejam sofrendo.
Para dizer que é a declaração de amor mais bizarra que já recebeu, para dizer que também me apagaria ou ainda para dizer que adora começa a semana com um texto deprimente: comente.
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Etiquetas: morte, relacionamentos, saúde mental
Sally
Eu tive dificuldade de entender se o que te apavorou foi a sensação de finitude, de não ter controle sobre sua vida, de morrer ou o mal-estar experimentado.
Temos que fazer as pazes com nossa finitude, todos vamos morrer e tá tudo bem, é parte da vida. Porém, essa “passagem” da vida para a morte não precisa ser sofrida, com dor, com medo. Se for sofrida, vale usar recursos para atenuar ou anular o sofrimento.
Sally
Tudo depende do quanto a pessoa fez as pazes com sua finitude. Se a questão for bem trabalhada na cabeça, se a pessoa soltar essa ilusão de controle e entender que não depende dela a hora da sua morte, é apenas um processo natural sem medo.
HSA
Nessa estou com a Sally. Ha alguns anos talvez concordaria com o Somir.
Pode-se até dizer que, entre outros motivos, religião surgiu dessa angústia de lidar com a finitude humana, de não saber.
Dito isso, era DMT para todos vocês tmb s2
Suellen
Desculpa, mas eu não consigo assistir uma pessoa aterrorizada e sofrendo quando isso pode ser atenuado, em nome de uma regra de “ter que vivenciar seu último dia”
Aqui foi um pouco diferente: 45 anos atrás, descobrimos que minha avó estava com câncer terminal, porém ela não sentia uma dor condizente com o estágio da doença (ao menos, não externava sentir qualquer dor maior e/ou não queria dar trabalho). Nisso, o oncologista receitou cuidados paliativos e, diante da eficácia do tratamento, a família decidiu não comunicá-la da totalidade da situação (falamos que era um problema crônico sério, e nada mais).
Passou mais seis meses conosco, e dedicamos nossas férias para acompanhá-la em seus últimos momentos visitando amigos e parentes distantes (o sonho dela era voltar ao Japão, mas deixamos de lado por conta da saúde delicada) e faleceu serenamente no sono. Por mais que duvidemos do quanto adiantaria deixá-la consciente do seu fim, em troca de momentos felizes, até hoje a decisão de deixá-la na ignorância nos assombra (se é que não sabia o tempo todo).
Sally
Se gera apenas medo, sem qualquer outro benefício, eu não vejo razão para não poupar a pessoa. Não se deixem assombrar, na ocasião, vocês fizeram o que acharam melhor. E, provavelmente, se não tivessem feito assim, o sofrimento seria bem maior e hoje você estaria vindo aqui dizer que o fato de ter contato, desencadeado medo e ansiedade, estaria te assombrando até hoje.
UABO
Nossa, Suellen. Que história… Mas acho que vocês agiram bem.