Contra.
A primeira notícia relevante foi a de uma tempestade solar sem precedentes, mas que por sorte estava apontada na direção oposta da Terra. Dois dias depois, um estudo menciona que a análise das imagens determinou a explosão de energia como vinda de fora da superfície solar. Alguns teóricos da conspiração se divertiram com a ideia, mas a grande mídia não deu muita atenção. O que mudou no dia seguinte: algo muito grande acabara de ser detectado mais ou menos na direção oposta da Terra, do outro lado da nossa órbita ao redor do Sol.
A luz da estrela entre nós e o objeto não identificado dificultava a visão, mas com a notícia se espalhando rapidamente, todos os olhos hábeis estavam apontados em sua direção. Logo uma imagem de alta resolução do que era aquilo tomou conta da mídia: uma outra Terra. Praticamente igual à nossa, com apenas algumas diferenças minúsculas no formato dos continentes.
Astrônomos começaram a detectar variações nas órbitas de diversos asteroides, a propagação dos efeitos gravitacionais da Terra 2 foi rápida. O que mais chamava atenção nas primeiras semanas de estudos, feitos com telescópios mais e mais poderosos, era que havia sinais claros de tecnologia na superfície, com luzes que se acendiam nas bordas entre dia e noite do outro lado do sistema solar.
Mas fora um aumento considerável de estática na captação de sinais de rádio, a recém-chegada Terra mantinha-se em silêncio. E apesar de muitas pessoas acreditarem que ela sempre esteve por lá, afinal, discute-se a possibilidade de um planeta igual à Terra do outro lado do Sol desde os tempos de filósofos gregos; os cientistas trabalhavam com a hipótese – por mais estranha que fosse – que a Terra 2 teria sido detectada há séculos, direta ou indiretamente. Fosse o que fosse, era uma aquisição recente do nosso Sistema Solar.
O atraso de comunicação entre a Terra original e a Terra 2 não poderia ser maior que uns 16 minutos, então não havia nenhuma explicação simples porque quem quer que estivesse por lá não estava respondendo. Com mais e mais imagens e análises chegando, ficou claro que até satélites eles tinham em órbita. Não era uma civilização incapaz de responder nossas insistentes perguntas. E o planeta não parecia totalmente morto, apesar de consideravelmente mais cinza que o nosso, ainda demonstrava ter um pouco de vegetação e oxigênio na atmosfera.
Religiões e cultos explodiram em popularidade, no famoso misto entre esperança de salvação e certeza do apocalipse que prevíamos. Mas a Terra original acabou se acostumando com a ideia de um gêmeo silencioso depois de alguns meses. Ainda era o tema mais importante da ciência, mas já vacilava no topo dos temas mais discutidos das redes sociais.
Foi quando algo reaqueceu o interesse: vários estudos saíram mais ou menos ao mesmo tempo com análises feitas por supercomputadores sobre como as órbitas dos dois planetas dançariam ao redor do Sol. A nossa órbita parecia estar decaindo em direção à estrela, a deles estabilizando um pouco além de onde estávamos. Na verdade, os cálculos demonstravam que ter aparecido quando apareceu no local onde apareceu era uma das únicas oportunidades em milhões e milhões de anos para gerar esse movimento.
Se o objetivo era nos jogar em direção ao Sol e ficar numa órbita um pouco mais distante da estrela, foi perfeito. Demorou algum tempo para a humanidade sequer entender o que estava acontecendo. Segundo os cálculos mais precisos, a órbita da Terra original nos faria desviar precisamente de Vênus e Mercúrio, acertando o Sol mais ou menos 15 mil anos no futuro. Mas considerando a trajetória prevista, a vida na nossa versão da Terra já seria praticamente inviável em menos de mil, pelo aumento da temperatura global por estarmos cada vez mais próximos do Sol.
Governos até tentaram controlar essa informação, mas com mais e mais pessoas surgindo para confirmar a veracidade dos cálculos, logo era informação confirmada para a maioria da população. Vivemos o Ano do Inferno, com muitas instituições humanas colapsando diante do pânico generalizado. Mas mil anos é muito tempo para ficar nesse estado de fúria coletiva, novamente, o mundo foi se adequando à realidade, quase todos nós entendendo que esse seria um problema real para nossos descendentes muito distantes.
Algumas fronteiras ficaram diferentes, perdemos milhões de vidas no processo, mas o aniversário de uma década da detecção da Terra 2 – também chamada de Contra – aconteceu numa sociedade basicamente reconstruída. Os cultos do fim do mundo finalmente estavam falando a verdade, mas ainda tínhamos tempo demais para viver em função disso.
10 anos sem nenhuma comunicação deles. E todos os satélites enviados para lá acabam desligando em questão de minutos da aproximação final. Nos parecia óbvio que havia alguém em casa, mas não queria lidar com visitas. O silêncio de rádio se manteve, todo tipo de nave enviada para Contra parecia ser destruída no caminho. Até por isso, mesmo com milhões se prontificando a estar em uma nave com destino à nova Terra, nenhum governo se interessou pelo prospecto.
Enviar pessoas para o espaço é complexo o suficiente para que fosse possível controlar os ânimos de cada vez mais pessoas dispostas a ir lutar uma guerra contra aqueles que estavam nos condenando à morte. O problema é que mesmo que fôssemos capazes de invadir o planeta gêmeo, tecnologia que com certeza estávamos muito longe de ter, era tudo uma questão de massa e gravidade. Não tínhamos como explodir Contra, muito menos fazer isso sem nos condenar a uma chuva interminável de meteoros logo depois.
Duas décadas: alguns governos decidem liberar novamente a exploração privada do espaço, depois de vários políticos favoráveis ao confronto serem eleitos ao redor do mundo. Ainda não fazia sentido de um ponto de vista científico, mas o povo parecia precisar dessa esperança de enfrentamento para manter o pouco de sanidade restante.
Cinquenta anos depois da descoberta, o Projeto Punho de Deus – financiado pelas cada vez mais poderosas religiões e com suporte dos países mais ricos do mundo – se prepara para o lançamento do primeiro de duzentos foguetes carregando boa parte do arsenal nuclear da Terra original. Uma teoria altamente rejeitada pela comunidade científica dizia que mesmo se detonadas à distância de Contra, um volume suficiente de bombas atômicas poderia desestabilizar a órbita do planeta inimigo e nos colocar de volta na rota da segurança.
No dia do lançamento, um traço esbranquiçado apareceu sobre a plataforma, visto apenas por alguns frames nas cenas sobreviventes. O traço foi explicado como uma barra de tungstênio acelerada a aproximadamente 2% da velocidade da luz. Impossível de detectar com antecedência, mas muito eficiente para causar explosões violentíssimas. Doze das cem bombas atômicas no foguete explodiram junto, matando mais de quatro mil pessoas e irradiando uma boa parte do território americano.
Outros ataques começaram a acontecer a cada vez que a Terra original tentava recomeçar o Projeto Punho de Deus ou qualquer outro relacionado com agressão ao planeta Contra. Cem anos se passam, e muito da cultura que conhecíamos no século XXI se deteriora numa sociedade hedonista, esbanjadora e irresponsável. Aquecimento global continuava sendo uma realidade, e cada vez mais tórrida com a lenta aproximação da Terra com o Sol.
Duzentos anos. Boa parte do ecossistema antigo era apenas memória, o planeta se tornara quente o suficiente para derrubar a população mundial para menos de quatro bilhões, a maioria fugida de regiões equatoriais para se aglomerar nas mais toleráveis regiões polares. Contra manteve seu silêncio, mas aumentou consideravelmente a repressão a qualquer tentativa de escapatória para o espaço. Ninguém mais fazia foguetes, os satélites estavam em frangalhos, a órbita próxima preenchida por estilhaços de detonações anteriores. A humanidade estava presa em sua própria casa.
Quatrocentos anos. Apenas algumas manchas verdes podiam ser vistas do espaço num planeta cada vez mais seco. A humanidade se reorganiza no subsolo, protegidos dos mortais raios solares em grandes cidades climatizadas. O espaço é limitado e os recursos racionados, mas percebe-se uma renascença tecnológica nos túneis que serpenteiam sob um planeta irrecuperavelmente desértico.
Um jovem que nunca havia pisado na superfície tem a ideia, diversos outros ajudam a construir: teoricamente, um disparo concentrado de energia em direção ao Sol poderia ser utilizado para manipular o centro de gravidade do Sistema todo e reposicionar a trajetória da Terra. A questão era fazer isso no momento certo, quando Contra não pudesse ver o que a Terra fazia, e esse momento aconteceria em alguns anos quando estivéssemos em pontos perfeitamente opostos da estrela, usando sua energia como máscara para nossas ações.
Prevendo a morte certa, a humanidade se une. Cria-se um sistema de inteligência artificial para tomar conta do processo, munido de todo tipo de arma para evitar qualquer tentativa de sabotagem dos inimigos em Contra. Chegado o dia, depois de mais de dois anos de captação e armazenamento da abundante energia solar, a IA é colocada para funcionar e assim que Contra fica invisível por causa do Sol entre os planetas, o disparo acontece.
Felizmente, a Terra entra numa nova órbita estável. Infelizmente, a radiação liberada pelo Sol depois do disparo é forte demais até mesmo para os abrigos subterrâneos. Em questão de meses, menos de mil seres humanos estão vivos. E doentes demais para continuar a espécie. A Inteligência Artificial continua funcionando, eternamente vigilante com seu objetivo primário: impedir que Contra ataque a Terra.
Para dizer que entendeu tudo, para dizer que estava com saudades desses textos, ou mesmo para dizer que é Contra tudo isso aí: somir@desfavor.com
UABO
Somir é do Contra.
Torpe
Como chama aquele jogo antecessor do Neon? Em que no final escondido um dragão invade o Japão e jogam uma bomba e dá início à porra toda?
Torpe
Maldito corretivo autônomo! Nier Automata!
Anônimo
Até na ficção, a Humanidade é quem causa a sua própria destruição. Por que será que não estou surpreso?