Nota zero um.

O Ministério Público de São Paulo (MPSP) pediu explicações do governo Tarcísio de Freitas (Republicanos) sobre o uso da ferramenta de inteligência artificial ChatGPT na produção de aulas digitais que serão distribuídas às escolas estaduais de São Paulo. LINK


Usar IA para produzir aulas diz muito sobre os professores brasileiros e seus chefes. Desfavor da Semana.

SALLY

Quando eu li a notícia, tive uma primeira reação de ficar puta pelo estelionato intelectual. Mas depois refleti e pensei: considerando o que são os professores do ensino público hoje em dia, o que seria melhor para os alunos, aprender com professor ou com chatGPT? E sim, eu acho que o melhor, dado o caso, é o chatGPT.

E isso é um desfavor ainda maior do que aquilo a que a notícia se propõe a denunciar. Estão preparando aulas de forma automatizada, com uma ferramenta que não é confiável, por pura preguiça/incompetência e… ainda assim, me parece a melhor opção!

Quão emburacado está o ensino brasileiro, a ponto de a gente cogitar que uma ferramenta de inteligência artificial seja melhor? Só de não militar (para qualquer lado que seja) eu já caio para o lado da I.A. Só de não dizer que Dilma sofreu um golpe ou que vacina causa câncer, eu já acho menos nocivo, ainda que escape um ou outro conteúdo errado (como se professor da rede pública não errasse para um caralho).

É a completa falência da educação… apenas constatada. Já faliu. A partir do momento em que você tem mais confiança no chatGPT do que em um professor da rede pública, o ensino já faliu. Não precisa mais de humanos. Bota uma gravação de áudio para dar aula e alguns profissionais de assistência social e psicologia para dar acolhimento às turmas.

Por um segundo me bateu um rápido e passageiro mal-estar, como se o que eu estivesse pensando fosse um pecado, uma heresia, uma injustiça. Aquela figura do professor herói, abnegado, vocacional que tanto nos vendem, mas que é uma minoria esmagadora. A maioria não ensina porra nenhuma, seja por não saber porra nenhuma, seja por estar de saco cheio, seja por falta de didática e atualização.

Então, depois que removi esse bloqueio à “sagrada instituição dos professores”, comecei a ver as coisas com mais clareza. Por mais precário de infraestrutura que seja o ensino público, quem quer e sabe, ensina apenas subindo em um caixote de feira e falando de forma simples e interessante sobre o tema. Aluno brasileiro chega analfabeto ao final do ensino médio. O desempenho dos alunos brasileiros em PISA é digno de país com IDH negativo. Então, parece que nossos heróis não estão passando conteúdo para os alunos, não é mesmo?

Claro que infraestrutura conta, mas não dá para colocar o analfabetismo funcional galopante do Brasil todo na conta da infraestrutura. Os professores estão cagando no pau também. E já vem fazendo isso há tempos, protegidos pelo manto de “heróis da sociedade”. Adivinha só? Não são. Os professores falharam e não parecem dispostos a admitir isso, só a colocar a culpa em fatores externos.

E onde o ser humano falha além de reparação, entra a tecnologia. Sabemos que o Poder Público não vai recapacitar todos esses profissionais, afinal, a “Pátria Educadora” está cortando verbas do ensino e da pesquisa (nunca foi sobre a ciência) com uma facilidade constrangedora.

Então, sendo realistas: professor merda que não é capaz de ensinar o que é necessário aos alunos x tecnologia que ainda é ruim mas vai melhorar? Eu fico com a tecnologia, pois mesmo que ela seja ruim, o ensino com professor é péssimo e é muito mais provável que a tecnologia melhor do que que o professor melhore.

Também é muito mais provável que o aluno questione a tecnologia, se aprender a lida com ela. Muitas vezes ao questionar um professor (principalmente se ele for militante), aluno é silenciado, calado, punido, envergonhado publicamente. A tecnologia não oprime. Ao se familiarizar com a tecnologia, o aluno pode usá-la inclusive para questioná-la.

Tecnologia não faz greve. Tecnologia não faz concurso sabendo que o salário é uma merda e as condições de trabalho são insalubres e depois fica se vitimizando por isso. Tecnologia não tira férias. Tecnologia não ganha salário nem benefícios. Tecnologia não falta, não adoece, não acorda de mau humor. Não estou negando a necessidade de um componente humano no ensino, estou negando que ele necessariamente tenha que ser um professor.

Como curadores e transmissores de conteúdo, os professores falharam. Em um país decente com professores decentes eu estaria aos berros dizendo que é um absurdo usar chatGPT… mas no Brasil? Acho realmente melhor para os alunos. Que bosta, Brasil, que bosta.

O que eu já vi de atrocidade de professor que depois posa de vítima me tornou descrente. Professor batendo em aluno, humilhando, descontando problemas pessoais. Professor que não se atualiza e quando o aluno questiona o cala na base da intimidação. Professor que vai só para receber o salário e nem sequer se digna a fingir que dá aula, em total e completa desistência. E são maioria. Quem ainda tenta de verdade, com empenho e seriedade, é uma minoria. Diante desse quadro, eu acho urgente uma mudança, mesmo que seja usando tecnologia.

Dá para citar mil prejuízos que o uso de I.A. para ensino pode gerar, mas também dá para citar mil e um prejuízos que a atual dinâmica dos atuais professores pode gerar. O resultado com os professores atuais já conhecemos: vergonha em PISA, analfabetismo funcional massivo e muito material para o “Ei, Você”. Confesso que estou curiosa para ver o resultado com chatGPT.

“Mas Sally, o chatGPT não está sendo usado para substituir os professores”. Não ao todo, mas elaborar aulas e conteúdo com base nele é um ótimo começo para que se perceba que a tecnologia superior estes humanos. Ao se abrir essa porta, é uma questão de tempo.

Para terminar, deixo uma reflexão: faz parte do trabalho de um professor estudar, pesquisar e produzir conteúdo didático. Se tem uma máquina fazendo, estão trabalhando menos e recebendo a mesma quantidade do seu dinheiro para isso. Parece justo?

Não recomendo mexer nesse vespeiro no mundo lá fora, pois a falácia do professor herói da sociedade ainda é forte. Mas em um ambiente controlado, já dá para começar a pensar nisso.

Para encher meu ouvido com falácia de professor herói, para dizer que está com medo de pensar nisso em elemento com a camiseta do Che Guevara bater na tua porta e te chamar de fascista ou ainda para concordar em silêncio: comente.

SOMIR

Sim, é uma ideia problemática por vários ângulos, inclusive os citados pela Sally. Mas quem lê meus textos nos últimos tempos pode perceber nas entrelinhas uma preocupação generalizada com o futuro da humanidade e esse tipo de tecnologia de inteligência artificial: o feedback loop.

A expressão do inglês pode ser traduzida como ciclo de retroalimentação, onde a informação gira em círculos e vai se reforçando com o passar do tempo. Se a inteligência artificial aprende com o que as pessoas produzem e as pessoas começam a aprender com o que a inteligência artificial produziu a partir disso… percebem como existe um risco de ficar repetindo a mesma coisa sem parar?

Um errinho lá no começo do processo pode ser reforçado milhares de vezes até se tornar uma informação bizarramente errada repetida como verdade. Muita gente tem a ilusão que a IA começa com informação perfeita, que ela aprende as coisas certas, mas não só o conceito de “coisa certa” é muito nebuloso, como a tecnologia nem se prestava a isso, IAs aprendem por volume e chegam aos mesmos consensos que o total das informações que usaram para treinar.

De tempos em tempos surgem notícias e denúncias de inteligências artificiais e algoritmos chegando a conclusões racistas. Isso não quer dizer que quem programou o sistema quis fazer ele racista, quer dizer que as informações que esses sistemas usaram para treinamento refletem a informação disponível: a de que o ser humano médio é racista. Se treinar IA com o que pensam os alemães, vai sair racista. Se treinar IA com o que pensam os chineses, vai sair racista. Se treinar IA com o que pensam brasileiros, nigerianos, indianos, quenianos… vai sair racista.

A IA herda todos os nossos vícios, talvez não os específicos de uma pessoa ou outra, mas os que aparecem em grandes grupos. O ser humano médio é preconceituoso, mesquinho, medroso, supersticioso… não há nenhum motivo para acreditar que conteúdos desenvolvidos por inteligências artificiais não vão ter essas características. Não é uma mente alheia à nossa, é uma mistura de todas as que produziram o material que ela usa para treinar.

Quando eu leio que o governo de SP está considerando usar ChatGPT para escrever aulas, eu concordo com a Sally que tende a ser melhor que o trabalho de algum funcionário público mal remunerado. Não é como se tivéssemos filas das mentes mais brilhantes da humanidade querendo esse serviço. Em tese, produzir o grosso do conteúdo com IA e colocar pessoas para fazer a revisão não é esse escândalo todo. Talvez fique um pouco melhor mesmo.

Mas tem o fator humano depois disso. E aí que o feedback loop começa a aparecer. Mesmo crianças tem alguma noção de que o conteúdo que consomem na escola foi feito por uma pessoa, que o professor ou professora tem algum investimento pessoal naquela informação. Eu sei que isso não quer dizer que o aluno vá prestar atenção ou sequer respeitar, mas a ideia de uma relação entre humanos ainda está lá. Você sabe, de uma forma ou de outra, que está quebrando um acordo ao não se esforçar para aprender aquilo.

Entra o ChatGPT como autor do conteúdo lecionado nas escolas: o acordo de esforço humano foi quebrado de cima para baixo. Crianças e adolescentes podem não ter a articulação para explicar isso se perguntados, mas vão sentir o que está acontecendo. Se o ChatGPT fez a pergunta em nome da escola, qual o problema de o ChatGPT responder à pergunta em nome do aluno?

E piora: considerando a capacidade média do professor tupiniquim, corremos o risco da forma verborrágica como a IA se expressa confundir até mesmo quem está ensinando. O ChatGPT é excelente em transformar suas ideias de macaco pelado bronco em textos com uma aparência de inteligência muito maior, mesmo que frequentemente esteja escrevendo um lero-lero dos mais macarrônicos.

O trabalho da IA é literalmente fingir inteligência. E isso pode gerar um impacto poderoso na forma como as pessoas consomem informação: um ciclo vicioso de máquinas conversando entre si, com humanos no meio do caminho fingindo que entenderam o que está acontecendo. Inserir o computador nessa relação de ensino entre humanos tem um risco que não parece estar sendo considerado.

A gente aprende em escolas para ser mais tolerável no mundo dos adultos. No meio da máquina de criar funcionários mais mansos, existe também uma lição valiosa sobre como você é um estorvo e precisa entender os acordos de convivência entre outros humanos para funcionar lá fora. Um desses acordos é que se espera um mínimo de conhecimento de um adulto para realizar funções que não são puramente braçais.

Mas não é sobre inteligência, é sobre ninguém ter saco de ficar ensinando adulto a fazer as coisas mais básicas. É sobre o acordo de esforço: o amor disponível no resto do mundo não é incondicional, você precisa pagar por ele de alguma forma. Quando a gente quebra esse acordo logo na escola colocando uma máquina para desenvolver aulas, e fatalmente mais máquinas para fazer trabalhos e fingir entendimento por parte dos alunos, você não está ensinando esse básico.

Tem algo de muito importante na ideia de saber que foi um humano que fez aquela aula e tem um humano que entende sobre ela te cobrando o aprendizado. Não quer dizer que o sistema tem que ser assim para sempre, evidente que vai chegar um ponto onde a máquina vai ser mais inteligente que todos os humanos somados e vai ser essa entidade a mais indicada para ensinar nossos jovens, mas para termos isso, não podemos continuar nesse mesmo esquema de escola “simulação de trabalho na fábrica” que herdamos de séculos passados. Esse modelo depende dessas relações humanas sendo o suporte do aprendizado.

Antes da IA entrar na sala de aula, temos que resolver o que fazer com a sala de aula. Do jeito que a notícia chegou, parece preguiça e vontade de economizar (claro, os salários dos políticos e juízes tem que continuar subindo, economiza em educação que não dá nada…); um atalho dos mais sem-vergonha que vai abrindo as porteiras de um futuro de aulas falsas dadas para alunos falsos, que vão terminar com humanos falsos tomando conta do mundo.

A Skynet não vai tomar o mundo, ela vai simplesmente pegar o que abandonamos.

Para dizer que isso é papo de comunista, para dizer que os alunos vão continuar não aprendendo nada de forma mais barata, ou mesmo para dizer que vai comentar usando o ChatGPT: comente.

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Comments (16)

  • Se treinar IA com o que pensam os alemães, vai sair racista. Se treinar IA com o que pensam os chineses, vai sair racista. Se treinar IA com o que pensam brasileiros, nigerianos, indianos, quenianos… vai sair racista.
    Tem também o processo de huerização da IA, que tende a fazer com que o próprio trabalho seja deturpado.

  • O trabalho da IA é literalmente fingir inteligência? Não necessariamente, ainda que seja o caso dessa “IA” em especifico, que entra bem no gatilho mercadológico do hype tecnológico.
    Temos o uso mais sorrateiro disso no dia-a-dia, seja na moderação de conteúdo de sites como o Facebook e o Twitter por exemplo, seja na busca preditiva do Google por exemplo.
    Basicamente se usa dos algoritmos para fazer o trabalho sujo.

  • Hosmar Weber Júnior

    Kkk descer a lenha nos professores sem considerar a piada que é o piso do magistério é outra piada, sem falar que parece que a Sally não põe os pés em uma sala faz um tempo uma vez que são os alunos que estão agredindo os professores e não o contrário, como foi citado, nem me dei ao trabalho de ver a opinião do Somir depois de ler tanta bost@

    • Que gracinha, tá ofendido.
      O Brasil tem muito diso isso aí: péssimos profissionais se ofendendo quando criticados.

      Nunca na minha vida eu fiz um trabalho merda por ganhar mal. Isso é muito errado. Isso é inaceitável. Não estão satisfeitos com o que ganham? Qualquer um pode procurar um Plano B. Ficar e fazer trabalho merda não dá, eu vou criticar mesmo.

      O desempenho dos alunos brasileiros fala o suficiente sobre os professores, eu não preciso falar mais.

  • Isso só vai mudar no dia em que a área da educação básica for tratada como Medicina, ter filtros mais difíceis, notas de corte mais altas, mais exigência. Qualquer semianalfabeto pode fazer Pedagogia em Uniesquina e educar seus filhos. Educação não é brincadeira.

    • Penso o contrário: não é pela rigidez da prova que se muda nada, é pela qualidade do que é ensinado.
      No dia em que o ensino for reformulado, for valorizado, for interessante, aí sim algo muda.
      Um aluno que decorou a matéria para passar em uma prova difícil ainda é um aluno burro e que vai mal na prova de PISA, pois tudo que decoramos acabamos esquecendo.

    • Não concordo com esse raciocínio pelo simples fato de que existem médicos merdas. Se os filtros para cursar medicina fossem tão criteriosos, não teríamos tantos merdas e mercenários.

      A dificuldade em se cursar medicina não é sobre qualidade das provas para o curso, e sim poder aquisitivo. É mais sobre manutenção de um sistema de castas do que meritocracia.

      Qualquer um que puder pagar mensalidade de +7k pode se tornar médico, mesmo que seja uma mula em termos de inteligência e não tenha o menor tato para com outro ser humano.

      Só que, quando a base de algo apodrece, questão de tempo para que o resto também sucumba, porque a ideia é sempre nivelar por baixo – sai mais barato e economiza tempo, pelo menos no curto prazo a um país cuja economia está em frangalhos e precisa mostrar números maquiados para posar bem aos outros países.

      A mediocridade do brasileiro médio eventualmente chega nos cursos mais “aclamados”. Não é mais sobre uniesquinas e cursos meia-boca, é sobre todo um sistema contaminado pela mentalidade “em vez de exigir ou realizar melhorias de algo, vou simplesmente correr para outro algo que pareça melhor”.

      • 7 mil de mensalidade dá 84 mil reais por ano, o que multiplicado por 6 anos (duração mínima do curso de medicina), dá cerca de MEIO MILHÃO DE REAIS ou cerca de cem mil dólares pelo câmbio corrente.
        Só uma minoria que tem condições de arcar com isso sem que os valores impliquem num rombo significativo no orçamento.

  • É que a maioria dos professores eram maus alunos. Os bons alunos geralmente viram médicos, enfermeiros, engenheiros, empresários etc. Tanto é que o que mais tem é professor sacaneando ou negligenciando alunos bons, permitindo bullying, ignorando pensamentos e questionamentos fora da caixa, protegendo os encrenqueiros. Há exceções, óbvio, mas há muito tempo professor não é uma profissão bem-quista socialmente.

    • Nem é. No geral o professor era na escola um aluno de mediano pra bom. Não era o primor da turma que foi fazer bacharelado pra se aventurar em áreas vistas como mais rentáveis, mas não era o aluno fraco que acabava num chão de fábrica ou hoje em dia ganha a vida com subempregos em áreas que demandam mão de obra braçal.

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