Arte inesperada.

Faz algum tempo que eu acompanho uma banda de heavy metal meio… diferente. A melhor oportunidade de ter a experiência completa é assistir um dos vídeos dos shows dessa banda sem nenhuma explicação prévia:

A banda se chama Baby Metal, e sim, é composta de metaleiros fantasiados e três jovens garotas japonesas à frente. No começo eram crianças mesmo, a mais velha tinha 12. Depois de muitos anos de estrada e algumas alterações na formação, elas já estão na faixa dos 20 e poucos.

Gosto é gosto, e nem é o meu ponto argumentar com você se o som dessa banda é bom ou não. Eu sempre achei muito divertido naquele jeitão rock mais “farofeiro”, e já escutei bastante. Gosto de verdade, não tem nada de ironia aqui. O que me fez escrever o texto é a ideia de que existe uma graça toda especial em expressões artísticas que bagunçam sua ideia sobre o que está certo ou errado. E talvez, esse seja o âmago da arte.

Em tese, metal pesado e garotinhas japoneses cantando sobre seus sentimentos não deveriam combinar, mas se você souber fazer isso direito, funciona. Existe uma estética e uma sonoridade do Baby Metal que não se encontra em outros lugares.

E aqui, um óbvio porém: o grau de profissionalismo do projeto é enorme. Não é uma banda de garagem, é algo planejado desde o começo e tocado por gente competente tanto na parte técnica quanto na mercadológica. A banda tem uma legião de fãs no mundo todo e gera muito dinheiro, os shows no Japão são superproduções do nível de grandes popstars ocidentais. É artificial num nível parecido com uma Boy Band.

Mas a carreira delas durou mais, a banda parou por alguns anos e voltou para uma plateia ainda sedenta por novos trabalhos, algo que vai além de nostalgia pela banda da adolescência. E se você perguntar para os fãs de metal que realmente conhecem o que a banda faz, vai ver que tem um respeito muito maior que se esperaria de um projeto do tipo.

No mínimo vão dizer que os instrumentistas são muito bons (e são). Que as músicas se mantém razoavelmente fiéis ao estilo de metal melódico (e sim, num nível surpreendente). O elefante na sala são as garotas e as pegadas mais eletrônicas/pops de algumas das músicas. Oras, não é uma banda normal, é algo montado por produtores com um público-alvo de japoneses obcecados por garotinhas bonitas em mente.

Deve ter sido um espanto perceber que ao redor do mundo, gente que não tinha esse background cultural das “idols” (moças jovens e bonitas cujo trabalho é ser jovem e bonita) acabou gostando das músicas também. Eu tinha zero interesse nessa parte da cultura japonesa, mas escutar as guitarras pesadas realmente me chamou a atenção.

A primeira vez que eu tive contato com Baby Metal foi vendo um clipe, e aquilo me pareceu bizarro até perceber que estava chacoalhando a cabeça com a pancadaria entre as partes mais pop. Tem algo no meu cérebro que adora esse tipo de surpresa, encontrar uma combinação maluca que não se importa com o que eu acho certo ou errado em material artístico.

Tem algo fundamentalmente rock n’ roll em fazer algo porque quer fazer e arriscar ser criticado pela sua ideia. Eu já escrevi um texto inteiro sobre o que se passa por rock popular hoje em dia, e cheguei à conclusão que pareciam todas músicas feitas para estar num comercial de carro ou algo do tipo. Previsível, seguro, vendável. Baby Metal, com meninas vestidas para ficarem bonitinhas, é muito mais macho no que entrega que boa parte dos tatuados genéricos do que se chama rock atualmente.

Baby Metal me fez lembrar daquela vez que o Radiohead, uma banda que tinha se tornado queridinha de público e crítica no rock alternativo decidiu do nada fazer dois álbuns de música eletrônica seguidos. Eu não esperava isso deles, eu nem queria isso… mas eles foram lá e fizeram. Eu achei estranho no começo, mas depois de vários e vários anos, esses dois discos diferentes e não desejados são dois dos meus preferidos da banda.

E de quando eu comecei a gostar dos Los Hermanos: depois do disco com aquele grude de Ana Júlia, eles fizeram um disco completamente fora do padrão e não entregaram nada parecido com o pop rock que era moda na época. Depois eu deixei de gostar deles por excesso de “carioca maconha music vibe”, mas naquele momento do “Bloco do Eu Sozinho” era de longe minha banda nacional preferida.

Mais um exemplo: uma artista chamada Poppy ficou famosa no YouTube fazendo vídeos meio bizarros fingindo ser uma artista pop sem alma, meio robô, meio alienígena. Era curioso. Eu vi um clipe dela com uma música pop genérica, achei que não tinha muita graça e segui em frente com a vida. Eis que alguns meses depois ela volta dizendo que tinha brigado com a pessoa que criou o canal e a personagem, e logo lança clipes de rock pesado misturado com um monte de estilos completamente desconexos.

Poppy fez uma sequência cada vez mais insana de músicas, e eu honestamente fiquei fã ao ponto de colocar na minha playlist do Spotify. Mas até onde eu entendi, era a pessoa que em tese abusava dela no tempo do canal do YouTube que tinha bolado as músicas malucas, e quando ela ficou sem essa pessoa, a fonte secou. Lentamente ela voltou para o pop. Desejo sorte para ela, mas pra escutar música genérica de gente falando pra dentro com uma batida no fundo tem todo o resto do universo musical popular.

E já que estamos no assunto de gente falando para dentro com uma batida no fundo: Billie Eilish me pegou de surpresa com o seu primeiro single famoso, que era uma música bem diferente, cheia de variações e quebras. Eu achei muito bacana e até me arrisquei a ouvir mais. Infelizmente no resto da obra dela é música pop moderna genérica, dormi na segunda música que ouvi. Mas naquele momento que ela me pegou sem defesa contra uma música fora do padrão, foi muito interessante.

É sobre a capacidade de surpreender, de colocar o cérebro naquela sensação de ter que se adaptar a algo que você não previa. Gosto musical varia muito, qualquer exemplo que eu der aqui pode ser algo que você simplesmente não ache graça ouvir, mas eu sinto que tem algo muito mais universal nessa ideia de quebrar suas expectativas com músicas, filmes, séries e todo tipo de produção artística.

Eu coloquei alguns exemplos de gente que me negou a expectativa óbvia e entregou algo bem feito que eu não poderia ter previsto. Talvez isso funcione para você em outros estilos musicais, ou em outras áreas da cultura humana, mas esse fator do desconhecido é muito importante para tornar o material que consumimos mais… calórico, por assim dizer.

O Spotify já aprendeu que eu deixo tocando sem parar qualquer coisa com um inglês depressivo e uma guitarra, é a música que não me provoca, que não me distrai, que só gera conforto. Mas recentemente eu percebi que tinha parado de descobrir novas bandas, estava só seguindo o algoritmo e ouvindo as mesmas coisas sem parar. Tive que separar um tempinho consciente para ser surpreendido por novas coisas, e o algoritmo do Spotify já não servia muito mais para isso.

O computador pode ser muito esperto em relacionar músicas que você gosta com músicas que outras pessoas parecidas gostam. Esperto demais. Uma parte importante desse tipo de consumo cultural tem a ver com ser arrastado aos berros pra fora dos seus hábitos, e até mesmo do que você acha que acha um bom material, e algoritmos simplesmente não foram feitos para isso.

A diversão de tomar um Baby Metal na cabeça sem aviso nenhum acontece com menos e menos frequência. Num mundo menos inteligente nas sugestões que te dá sobre o que você pode gostar, a chance desses divertidos acidentes de percurso são muito maiores.

Sem contar que é justamente esse tipo de surpresa que nos mostra algo muito importante sobre os nossos gostos: nem a gente sabe muito bem quais são. Será que é verdade que o algoritmo sabe bem o que a gente gosta se não é incomum aparecer algo como uma música que a gente nunca imaginaria gostar, mas acaba gostando? Se eu que estou dentro do corpo que em tese tem a preferência sou enganado pelo que eu acho que gosto, que chance tem quem está de fora?

É mais simples para o algoritmo se você tiver um gosto previsível que pode ser colocado em grupos de pessoas parecidas, mas se você começa a consumir apenas conteúdos previsíveis baseado em grupos de pessoas parecidas, isso não molda um novo gosto na pessoa? O algoritmo vai se alimentando de algoritmo, cada vez mais certo que a gente gosta de alguma coisa e detesta outras.

Mas alguém que ignora qualquer coisa fofa ou explicitamente comercial achou divertido ver uma banda de metal com menininhas na frente. E depois começou até a perceber como as músicas são bem-feitas. O meu algoritmo do Spotify nunca sugeriria Baby Metal. Quem me mostra músicas diferentes hoje em dia é o YouTube, porque lá eu sempre tomei cuidado de não ouvir música ou ficar vendo clipes. Eventualmente ele começaria a me apontar de novo na direção de ingleses depressivos com guitarras. Sim, é a maioria do que eu ouço, mas não quer dizer que seja o meu gosto em geral.

Mas o algoritmo provavelmente nunca vai conseguir resolver isso. A minha preocupação é que mais e mais pessoas vão consumir quase todo o conteúdo na vida através de um algoritmo, e provavelmente vão achar que seus hábitos e seus gostos são a mesma coisa. Não são. Seus hábitos de consumo de conteúdo são baseados em muitas questões utilitárias da vida, seus gostos são um mundo muito maior de possibilidades.

Onde cabem ingleses deprimidos e meninas cantando sobre guitarras pesadas. Isso eu não sei como a inteligência artificial vai resolver… ou se vai resolver. Talvez mais no futuro as pessoas esqueçam que podem gostar de coisas diferentes do que o algoritmo diz. Talvez já esteja acontecendo agora…

Para dizer que está decepcionado(a) com meus gostos, para dizer que eu não posso mais ser elitista (nunca vão tirar isso de mim), ou mesmo para dizer que ainda está em choque com o clipe: comente.

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Comments (12)

  • Baby Metal é daora.
    Não estranho muito os gostos do Somir porque, bem, quem ouve Nintendocore/chiptune não está muito distante de quem ouve jpop metal.

  • Wellington Alves

    Lembrei de quando eu tinha 15 anos e fui com 2 amigos numa locadora de CDs que havia inaugurado na minha cidade. Sim, pra quem não viveu essa época, no início dos anos 90 CD era novidade e esse mercado chegou a existir. Nós transitávamos entre dance music e metal. Eu só tinha dinheiro pra alugar 1 CD, todos esperavam que eu fosse alugar o Black do Metálica mas eu aluguei o CD do Jordy (o bebê francês). A cara de decepção dos meus amigos se entreolhando com ar de puta que pariu foi impagável!
    https://youtu.be/_jhFFh98xWQ?si=ZHjiGRMu62z18Jnb

  • Guilherme Alvarenga

    Engraçado como a percepção de diferente muda de pessoa para pessoa. Pra mim a música e o vídeo, que eu não conhecia, soaram como mais do mesmo, visto que eu estou acostumado com animes e cultura japonesa. Esse som não é muito diferente de trocentas aberturas de desenhos japoneses.
    Para fugir do algoritmo fuço a fundo das pérolas sessentistas até noventistas que não tive a oportunidade de escutar na época devido a dificuldade de acesso.

    • No meu tempo de ver conteúdo japonês, tinha uns solos de guitarra farofeiríssimos nas séries de heróis, mas não nesse grau de pancadaria. Talvez gostar da trilha do Changeman e do Jaspion tenha me preparado para Baby Metal…

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