Analfabetismo virtual.

O Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária (Conar) abriu um processo ético para investigar a propaganda da Volkswagem que usa a imagem de Elis Regina, reconstituída por inteligência artificial e cantando ao lado da filha, Maria Rita. “Adicionalmente, questiona-se a possibilidade de tal uso causar confusão entre ficção e realidade para alguns, principalmente crianças e adolescentes”, afirmou o Conar. LINK


Quando a gente acha que esse povo está atrasado, ele vai lá e nos prova mais e mais corretos! Desfavor da semana.

SALLY

Uma marca de carros usou, com o consentimento da família, a imagem de Elis Regina reconstruída por Inteligência Artificial, cantando ao lado da sua filha. Emocionante? Provavelmente, uns 20 anos atrás seria. Hoje é motivo de polêmica, reclamação e lacração.

Vamos excluir os pau no cu que panfletaram sobre capitalismo, empresa e ideologia, pois neste caso, eles são o menor dos problemas. Gente que se sente no direito de ir dizer à família o que deveriam ou não fazer com a imagem dela é, no máximo, ser humano arrogante, carente e/ou sem noção.

Vamos passar para um ponto mais grave e que não vimos ser muito discutido: o impacto de novas tecnologias no brasileiro.

O CONAR-Conselho Nacional de Autorregulamentação Publicitária, órgão responsável por fiscalizar e regulamentar a publicidade, recebeu muitas reclamações sobre esse comercial. Emitiram uma nota pontuando quais seriam os principais problemas da peça publicitária e um deles é o seguinte: “a possibilidade de causar confusão entre ficção e realidade para alguns, principalmente para crianças e adolescentes”. Ou seja, aparentemente, teve gente acreditando que a Elis Regina ressuscitou.

Somos expostos a ficção diariamente, por vídeos, filmes, seriados e muitas outras fontes. Inclusive crianças e adolescentes. O motor do seu carro não tem Pôneis Malditos dentro, não saem flores de dentro do seu amaciante quando você abre a tampa, mulheres não se jogam aos seus pés quando você (muito equivocadamente) joga desodorante no seu corpo.

O que nos leva à pergunta: tudo que não reflete a realidade deve ser proibido ou os pais das crianças e adolescentes tem o dever de informá-las e educá-las sobre o que é real ou não? Sabemos a resposta, então, podemos aprofundar um pouco mais a questão. Infelizmente, o parágrafo anterior também é o menor dos problemas. O ponto é que esses pais que deveriam informar seus filhos também estão sem entender direito o que está acontecendo.

Com o progresso da ciência e tecnologia, a sociedade evolui de forma muito mais rápida do que ocorria um século atrás. Estes saltos exponenciais são ótimos para a raça humana no geral, mas são péssimos para aqueles que se encontravam em alguma desvantagem, principalmente intelectual, pois estas pessoas ficam para trás.

O Brasil ainda enfrenta dois tipos de analfabetismo: o convencional (pessoa que não sabe ler e escrever) e o analfabetismo funcional (aquele em que a pessoa sabe ler mas só consegue compreender as palavras, não o significado total do que lê). A maior dos brasileiros é de analfabetos funcionais e muitos sequer percebem esta condição. Não faz muito publicamos uma notícia no Top Des que colocava o Brasil como um dos cinco países com pior desempenho de leitura do mundo. Sim, do mundo. O Brasil ficou atrás do Azerbaijão e Uzbequistão.

Com o surgimento da internet, surgiu ainda um novo tipo de analfabetismo: o digital. Assim como o de leitura, ele pode ser total (quando a pessoa não sabe usar a internet ou um computador) ou funcional (quando a pessoa sabe usar, mas não entende como aquela realidade funciona).

Esse caso da notícia de hoje é um típico caso de analfabetismo digital funcional (o termo não existe, ok? Inventei agora, não saia repetindo por aí). Provavelmente essas pessoas confusas pelo comercial sabem usar um computador e até postam foto se querendo em rede social, mas não conseguem compreender exatamente como esse mundo digital funciona.

Seria necessário educar o brasileiro para eliminar o analfabetismo digital funcional, assim, ninguém cai em fake news, deep fake e golpes aleatórios. Porém, para superar esse tipo de analfabetismo (analfabetismo digital funcional), os outros três também tem que ser sanados: o analfabetismo clássico, o analfabetismo funcional e o analfabetismo digital. Percebem o tamanho do buraco?

O buraco é fundo, mas tem que ser resolvido. Há interesse nisso? Não. O governo prefere usar seu dinheiro para criar uma agência de checagem que raciocine pelo povo e diga a ele o que é verdade e o que é mentira. Dar o peixe sem ensinar a pescar, especialidade da casa.

O progresso tecnológico vai continuar, cada vez mais rápido e mais impactante. Quanto mais “analfabetismos” o brasileiro acumular, mais para trás ficará e mais difícil será reverter. Se nada for feito, se continuarem empilhando analfabetismos, é possível que se chegue a um ponto no qual não conseguirão nem sequer se comunicar com o resto do mundo.

Então, antes de falar em questões acessórias, é fundamental que se solucione o analfabetismo, o analfabetismo funcional, o analfabetismo digital e o analfabetismo digital funcional. Sem isso, a sociedade não vai para frente, não importa quantas cotas, quantas bolsas, quantos programas sociais sejam criados. Sem isso o brasileiro dos próximos dez anos sequer vai conseguir entrar no mercado de trabalho, pois uma Inteligência Artificial será melhor do que ele.

É hora de parar de discutir problemas pontuais como pronome neutro ou o uso de celebridade em comercial, e passar a olhar e atuar urgentemente em problemas essenciais, estruturais e de base que impedem o brasileiro de acompanhar a manada mundial na evolução social e laboral. É hora de ao menos começar a falar sobre isso, para conscientizar as pessoas de que esse gap, esse déficit, esse atraso existe e está cada vez mais excluindo pessoas, marginalizando e até mesmo humilhando.

Enquanto o Presidente de vocês discute a importância de uma casa ter uma “varanda do pum” (uma varanda para que a pessoa possa sair para peidar), o brasileiro se mostra incapaz de compreender uma publicidade, que nem é tão complexa assim. Pegue qualquer propaganda de perfume importado e você verá que essa da Volkswagen parece brincadeira de criança.

“Mas Sally eu não posso fazer nada”. Não, não, você está enganado. E este é um equívoco muito comum: confundir não poder solucionar o problema com não poder fazer nada. Você pode fazer algo, apesar de não ser o suficiente para solucionar o problema.

Você pode primeiro refletir sobre o conteúdo do texto de hoje e formar uma opinião. Depois, você pode conversar com pessoas que tenham a capacidade de compreender o tema e mostrar o problema e o seu ponto de vista a elas. Por fim, você pode escutar o que elas tem a acrescentar sobre o assunto.

Quanto mais gente fizer isso, mais luz se joga no assunto e mais provável se torna que ele seja solucionado. O fato de você não conseguir resolver sozinho, não quer dizer que não possa contribuir com um grãozinho de areia para a solução. Faça sua parte.

Para dizer que o brasileiro é a Burrice Natural, para dizer que quer ver um “Ei, Você” sobre a reação do brasileiro a essa propaganda (não, não quer, eu te garanto) ou ainda para dizer que está deprimido demais para voltar a tocar nesse assunto: sally@desfavor.com

SOMIR

É importante ressaltar que não estamos brigando com quem acha que é uma discussão ética válida: entendemos que pelo ângulo de trazer de volta à vida uma pessoa morta para fazer uma propaganda, existe uma nuance sim. Eu, por exemplo, acredito que essa imagem é herdada pela família. Se a filha da Elis Regina quis ganhar dinheiro com a reconstrução virtual da mãe, direito dela.

Mas se você for do time que acha que direitos de imagem não se herdam, tudo bem, é uma posição possível também. Posso até escrever um texto inteiro defendendo minha lógica depois, mas agora… como a Sally bem disse, estamos preocupados com o quanto o brasileiro médio entendeu o que estava acontecendo. E quais são as repercussões disso no futuro.

Eu nunca tinha pensado nesse acúmulo de analfabetismo funcional e digital como a Sally propôs na nossa discussão sobre o tema da semana. É assustador por vários ângulos, mas o que mais me chama a atenção é a possibilidade da realidade virtual se sobrepor à… real. Faz algum tempo que eu acredito que a verdadeira Skynet vai ser convidada ao poder ao invés de tomá-lo à força, mas foi essa conversa com ela que me fez enxergar melhor o caminho até esse ponto.

Fake News correm soltas pela internet, mas elas são apenas uma nova roupagem para uma tendência antiga do ser humano: acreditar em coisas parecidas com as quais já acredita. É uma bola de neve, especialmente em tempos de redes sociais, onde as pessoas vivem em bolhas de confirmação de crenças prévias. O algoritmo te mostra mais do mesmo e a pessoa tende a ficar com sua visão de mundo petrificada.

Notícias que combinam com essa visão de mundo são verdade, notícias que discordam das suas crenças são mentira. Nada de método científico nem mesmo bom-senso básico. Pecinha encaixa, macaco pega, pecinha não encaixa, macaco joga fora. Se essa tendência natural (eu e você temos também) estiver aliada ao analfabetismo total ou funcional, pior ainda. Ao não entender o sentido de frases e parágrafos, a tendência é se fixar em palavras mais sensacionalistas e “delegar ao fígado” a compreensão do mundo. Sentimento acima de tudo, e quanto pior ele, melhor para a fixação da ideia.

É nesse ambiente que o terraplanismo (como conceito geral de negação científica) floresce, não porque o ser humano ficou menos inteligente nas últimas décadas (muito pelo contrário), mas porque esse tipo de pensamento é muito mais contagioso com acesso constante à internet. Sempre fomos suscetíveis a isso, só estamos vendo acontecer em grande escala atualmente.

Incapacidade de depreender significados e tendência a acreditar em qualquer asneira dita com confiança… percebem onde a IA entra para subir o nível de confusão? No caso de Elis Regina, ainda foi uma versão meio tosca, quem tem alguma noção de edição de imagens enxerga todos os artefatos visuais na hora, mas já mostra como estamos próximos de conteúdo audiovisual que o cidadão médio não vai ter ferramentas para decifrar.

Porque não precisa ser como eu que sabe como eles fizeram a propaganda, quais as tecnologias e onde achá-las, só precisa ter um mínimo de noção que uma pessoa com um computador bom já pode fazer algo assim. Nem precisa ser uma máquina monstruosa, só um computador bom já pode entregar esses resultados. Ainda é demorado e exige algum conhecimento técnico para fazer, mas como estamos vendo com o ChatGPT, eventualmente alguém faz ficar fácil para o povão usar. O dinheiro está justamente nessa etapa de popularização das tecnologias.

Hoje, vinte anos depois de basicamente todas as empresas entrarem na internet, as pessoas ainda não sabem que que com menos de 50 reais você pode montar (sozinho) um site superficialmente parecido com o de uma empresa grande e séria, funcional o suficiente para cobrar por produtos inexistentes do seu cartão de crédito.

Depois de tantos anos de redes sociais, as pessoas ainda não entendem que qualquer um pode comprar 50 mil seguidores falsos para sua conta e fingir que é alguém muito importante. Ainda acham que uma pessoa imitando porcamente o estilo visual de um canal ou portal de notícias tem a mesma credibilidade de quem tem uma equipe de jornalistas e responsabilidade legal por aquilo que publicam. Ainda acham que não precisam checar fontes se o artigo ou vídeo parecerem profissionais.

Isso é uma forma de analfabetismo digital muito perigosa, porque é justamente nessa falha de compreensão do ser humano médio que a inteligência artificial tem o maior potencial de exploração. Se qualquer tosquice engana esse povo, a IA consegue produzir quantidades avassaladoras desse tipo de conteúdo, afogando qualquer tipo de concorrência humana.

E se você é o tipo de pessoa que pode ser enganado pela propaganda da Elis Regina cantando junto com a filha, o futuro tende a ser bem confuso para você. Para vencer o pior do analfabetismo digital, precisa vencer o total e o funcional primeiro. Porque você só entende o que está acontecendo com a tecnologia se conseguir consumir conteúdo que a explica. E se você não consegue ler textos e tirar uma conclusão deles, tudo o que o computador está fazendo fica indiferenciável de mágica. E se tudo é mágica, a Terra plana e os microchips de vacinas fazem todo o sentido, oras.

Eu até tenho uma curiosidade mórbida de ver até onde o brasileiro médio pode ser enganado dessa maneira. Quem vai ser o primeiro político a perder o cargo por algo que nunca disse? Quem vai ser o influencer preso por um crime que não cometeu? Quantas pessoas vão morrer por causa de boatos com provas “perfeitas” em vídeo?

Enquanto o povo não tiver mecanismos para combater desinformação, ela vai reinar. E cada vez mais rápido. Talvez o mundo acabe numa guerra entre inimigos imaginários criados por inteligências artificiais, talvez a desigualdade aumente absurdamente na diferença entre quem entende o que está acontecendo no mundo e quem fica preso numa rede de mentiras que ninguém sabe onde começou. Educação não é bônus, vai ser a tábua de salvação do ser humano do futuro.

Se… ela for levada a sério. Mas, como bem sabemos, tem muita vantagem em deixar o povo ignorante.

Para agradecer pela depressão do dia, para dizer que vai ser tudo pornografia e nada vai mudar, ou mesmo para dizer que não entendeu nada, mas como eu escrevi muito deve ser verdade: somir@desfavor.com

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Comments (16)

  • Triste pensar que a tecnologia esta aí para nos ajudar, mas só atrapalha se não for bem usada, e se as pessoas não forem minimamente bem treinadas para usá-las. Um longo caminho pra consertar tudo isso aí, e acho que, sinceramente, a nível de BR não tem jeito não.

  • Jurava que o Desfavor da semana ia ser o ator da turma da Mônica que levou um exposed e foi cancelado por ter o fetiche de fazer sexo com cocô. Podia rolar um Desfavor explica sobre Coprofagia, pegando carona no assunto?

  • Sobre se deixar enganar por coisas geradas com Inteligência Artificial: houve um canal no YouTube que há pouco tempo mostrou a pessoas nas ruas uma série de falas polêmicas do Lula, ditas por uma voz sintetizada do Bolsonaro para depois comentarem. E quando essa “pegadinha” era, enfim, revelada, já no final do vídeo, muitos ficavam com uma tremenda cara de bunda… Como o tal canal era de direita e os entrevistados eram todos militantes de esquerda, é claro que havia um forte componente ideológico-partidário na história e uma intenção clara de expor a “cegueira” dos canhotos, mas ainda assim assustou ver que até mesmo um artifício tosco e perceptivelmente falso conseguiu tapear tanta gente…

    O vídeo de que falei é este aqui: https://www.youtube.com/watch?v=HEiC_VHgz8A

    • Spotniks tem muitos vídeos interessantes, onde eles expõem a cegueira e a estupidez ideológica do brasileiro. Num outro vídeo deles, eles entrevistavam pessoas na rua, lendo frases absurdas ditas por Lula e do Bolsonaro, e perguntavam “qual deles disse isso?”. Ninguém acertou o autor.

      https://youtu.be/qeEC05mbvUE

      Não basta escolher um salvador da pátria, tem que projetar aquilo que você acredita nele e praticamente ver outra pessoa ali!

  • “Talvez o mundo acabe numa guerra entre inimigos imaginários criados por inteligências artificiais”. Uma referência ao seu texto de ontem, Somr?

  • Numa das disciplinas que eu coordeno na pós-graduação, temos aulas com vários professores convidados, e alguns fazem perguntas para avaliação dos alunos, que tem cerca de 2 dias para entregar. Esse ano eu passei as perguntas no ChatGTP de farra e mostrei para os colegas. Várias respostas do ChatGTP ganharam nota 8. Tinha muita bobagem, mas ficou claro que vamos ter que repensar a forma como avaliamos os nossos alunos. Analfabetismo biomédico não dá!!!

    • Uma maneira fácil é pedir pra exemplificar com casos documentados. Chatbot tem mania de inventar causos (não sei se descobriram o motivo) que é fácil de perceber quando se pesquisa um pouco mais.

      • Eu pedi para comentarem um artigo antigo que mandei como PDF, exemplificando com dados. Deu pra filtrar a inteligência artificial e a burrice natural ao mesmo tempo!

    • Depende do que você considera como estudo. Terminar o ensino médio, fazer faculdade, pós e cursinhos para concursos, isso as pessoas fazem de monte.

      Agora de fato assimilar o conteúdo através de reflexão, treino da capacidade argumentativa e de expressão, observação da realidade, disposição de acompanhar objetos de estudo por longos períodos, ouvir perspectivas antagônicas, experimentos por erro e tentativa, aí realmente temos um problema.

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