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Colunas

Entrega para você.

Júlio observava impaciente o trajeto do drone pelo mapa. Pelo menos duas novas zonas de conflito entre a GCC e a WIO tinham sido identificadas pelo sistema de alertas nas últimas 24 horas, e uma delas estava justamente no caminho da sua entrega de suprimentos para a semana. No canal de sobreviventes da região MG-19, avisos constantes sobre explosões e vítimas fatais. Faltava menos de um quilômetro para seu pacote chegar.

O ícone do drone passou de verde para vermelho. Abatido. Júlio coloca as mãos sobre o rosto, já ouvira falar sobre cargas perdidas para a guerra e de pessoas que morreram de fome e sede por estarem presas em bunkers na linha de fogo. Era a primeira que perdia, então ainda tinha pelo menos duas semanas de reservas, talvez um mês se fizesse racionamento. Ele manda uma mensagem para Mariana, sua namorada virtual há pelo menos dois anos. Ela reclama que o seu pacote também não chegou.

O sistema automatizado de entrega de suprimentos manda uma mensagem confirmando a derrubada do drone, com um emoji de choro para acompanhar. A próxima tentativa de entrega seria em uma semana. Desde que a guerra entre as duas grandes potências começou, mais e mais cidades se tornavam inabitáveis com a quantidade de armas biológicas, químicas e até mesmo nucleares empregadas por ambos os lados.

Júlio herdou o bunker dos pais, que já haviam morrido há mais de dez anos, enterrados por ele mesmo nas profundezas do andar inferior. Morava debaixo da terra, protegido por grossas paredes de concreto reforçado e um sofisticado sistema de filtragem de ar para continuar vivo. Das pessoas que conheceu durante a infância, antes de se mudar para a proteção subterrânea, apenas uma prima distante ainda dava sinais de vida em um canal de sobreviventes do outro lado do mundo. Segundo ela, na China as coisas estavam bem piores que no Brasil, com explosões nucleares se tornando lugar comum.

O único semblante de organização social fora dos exércitos da GCC e da WIO era justamente o Sistema de Assistência Social, comumente chamado de SAS pelos sobreviventes. Era uma organização transnacional que conseguia organizar entregas frequentes de comida e água para aqueles que ainda estavam vivos. Ninguém sabia como tinham tantos recursos, mas não reclamavam: sem a SAS nenhum deles estaria vivo.

É claro, não faltavam teorias mirabolantes sobre a organização: alguns até diziam que eram alienígenas oferecendo sua forma de ajuda humanitária sem interferir na luta, uma espécie de ONU galáctica. Todas essas teorias rodavam sem controle pela internet, que apesar de todos os desastres dos últimos anos, continuava funcionando muito bem. A teoria vigente é que nem GCC nem WIO poderiam renunciar à rede, nada era tão eficiente para coordenar tropas e equipamentos.

Ele minimiza o canal dos sobreviventes locais e se volta para Mariana, que acabara de deixar uma nova mensagem: “Não fica bravo comigo, mas eu menti para não te preocupar…”

Júlio espera ansioso enquanto Mariana digita a continuação.

“Faz três semanas que não chegam suprimentos, amor. Minha água acabou, só tenho um restinho de comida.”

Júlio sente o coração pesado na hora. Ele esbraveja sozinho, pensando em formas de resolver o problema, pensando como poderia ter tentado algo se ela tivesse avisado mais cedo.

“Eu vou te buscar aí!” – ele digita.

Mariana responde de forma dura, o proibindo de sair por causa dela. Diz que ela não quer que os dois morram. Que seria muito pior para ela saber que ele não sobreviveria. Júlio não dá atenção. Está analisando os mapas para saber o melhor caminho até SP-76, a área onde o bunker de Mariana está. Seriam umas 8 horas de carro em estrada limpa, talvez umas 12 se tivesse que pegar caminhos alternativos nas grandes cidades.

O aplicativo de rotas estava desativado para o público há mais de 5 anos, mas em alguns cantos obscuros da rede ainda podia ser baixado. Com dados bem desatualizados e nenhuma forma de saber se as estradas marcadas ali ainda existiam por causa dos bombardeios constantes, Júlio resolve perguntar para Mariana quanto tempo ela poderia aguentar ainda.

Mariana responde de forma ríspida. Ela pergunta se ele viria a pé, porque qualquer carro que ainda estivesse na rua estaria com a gasolina apodrecida há quase uma década. Pergunta também se ele tinha filtros suficientes nas suas máscaras para dias de caminhada num território cheio de vírus mortais e gases venenosos. Termina explicando como ele precisaria se alimentar e beber água no caminho até ela, e que precisariam de mais para a volta. Como ele ia carregar tudo? Como ela ia reabastecer para a volta se ela não tinha mais nada?

Júlio começa a chorar. Alguns minutos depois, vem uma chamada de vídeo de Mariana. Ele hesita por alguns segundos, mas atende.

Mariana, uma belíssima mulher de cabelos ruivos e grandes olhos verdes marejados, as bochechas vermelhas e a boca tremida. Atrás dela, as paredes cinzas de seu bunker, com prateleiras vazias que Júlio deveria ter notado nas diversas vezes que falou com ela anteriormente. Os dois não trocam uma palavra por quase um minuto.

Ela quebra o silêncio. Diz que talvez se os suprimentos dela virem na próxima semana, tudo vai ficar bem. Que vai racionar a água. Júlio sugere algumas opções mais… indignas… dela se manter hidratada. Ela diz que já estava fazendo isso há alguns dias. Os dois passam mais duas horas conversando, ignorando os alarmes frequentes e aguentando os trancos de explosões ao redor. Mariana diz que está ficando cansada e precisa deitar um pouco. Júlio pede para ela deixar a câmera ligada.

Naquela noite, ele acompanha a sua namorada no sono depois de algumas horas de vigília. Ao escutar o alarme matinal, percebe que o sinal foi cortado do outro lado. Ele se joga da cama para o computador, buscando pela gravação da última chamada. Avança o vídeo até o final: ela dormia na sua cama até a imagem começar a tremer, um flash de luz branca toma conta da tela e o vídeo termina abruptamente. Ele vai buscar informações sobre a região dela, e descobre que um ataque nuclear de nível 5 havia destruído boa parte dos bunkers da região SP-76.

Júlio mal consegue se lembrar das horas seguintes. Numa montanha russa de fúria e desalento, atacava objetos do seu bunker e se recolhia em posição fetal num canto para chorar copiosamente. Ele vai até o armário de remédios e toma o estoque de calmantes de duas semanas de uma só vez. Ele apaga sem dar mais atenção aos alertas constantes no seu canal de sobreviventes.

A semana seguinte é de apatia. A guerra veio e foi de sua região, há mais de dois dias não ouve ou sente nenhuma explosão. O drone com os suprimentos chega e deixa sua carga no elevador do bunker, depois de um longo processo de descontaminação, a caixa desce até ele. Água, comida, remédios. Uma dose dobrada de antidepressivos. Engano ou não, ele dobra sua dose.

Os dias passam, os remédios parecem fazer efeito. Na semana seguinte, a dose de antidepressivos continua maior, e nas seguintes também. Mariana morrera há mais de dois meses quando finalmente resolve conversar com alguém. Sua prima havia deixado várias mensagens preocupadas. Ele as responde sem mencionar Mariana, a sua parente já parecia ter sofrimento suficiente com a intensificação das batalhas asiáticas.

No canal de viúvos BR-12, ele desabafa publicamente. Recebe várias mensagens de conforto de pessoas que passaram pela mesma situação. Uma década de guerra criou fluxo constante naquele canal. Uma mulher chama sua atenção: seu nome também é Mariana. Ela diz que entende o sofrimento dele, porque havia perdido o marido logo no começo da guerra, quando ele viajava numa estrada bombardeada pela GCC.

Júlio se lembra dessa história. Era literalmente a mesma que sua Mariana contara dois anos atrás, quando a encontrou no canal de solteiros. A diferença dela era sua localização, RJ-04. Praticamente a mesma distância de SP-76, mas em outra direção. Júlio chama a recém-conhecida Mariana para uma conversa particular, e começa a sentir que estava perdendo a noção da realidade.

A nova Mariana tinha a mesma história de vida e os mesmos maneirismos da sua namorada que morrera pouco tempo atrás. Não era possível ser coincidência, não nesse nível de perfeição. Ele pede uma chamada por vídeo, que ela recusa por não o conhecer bem ainda. Júlio se lembra que Mariana resistiu os dois primeiros pedidos, mas com uma boa lábia, conseguira fazê-las se mostrar ainda no primeiro dia de conversas.

Utilizando a mesma tática, a nova Mariana cede no terceiro pedido. Quando os dois se enxergam pela primeira vez, ela abre um belo sorriso e ele fica com os olhos arregalados, em choque. Ela pergunta o que está acontecendo, ele não consegue responder. Júlio desliga a câmera e se senta no chão do bunker, tentando fazer senso do acontecido.

O mesmo cabelo ruivo, os mesmos olhos verdes, a mesma expressão, as mesmas pintas no pescoço. Não era coincidência, aquela mulher que acabara de conhecer era… Mariana. A sua Mariana. O som das notificações de mensagens dela continua apitando por alguns minutos, até que finalmente o ambiente volta ao silêncio. Ele vai buscar mais remédios, um deles se dizia antipsicótico. Ele estava tendo um episódio de insanidade, só podia ser isso.

Mais tarde, volta ao computador. Mariana deixara várias mensagens perguntando se estava tudo bem, e uma final:

“Eu entendo que você não esteja pronto ainda, eu demorei muito tempo para conseguir conversar com outras pessoas também. Se cuida e me chama se mudar de ideia, eu gostei de você.”

Júlio não sabe se são os remédios agindo, mas de repente algo estala na sua cabeça: Mariana era muito bonita. Muito bonita mesmo. Pele perfeita, olhos que quase brilhavam de tão verdes, cabelo sempre arrumado, até mesmo quando estava há duas semanas sem receber suprimentos. Nunca esteve pálida ou abatida. Ele teria percebido a pessoa que via todos os dias definhando.

Ele responde para a nova Mariana:

“Imagine que você é uma simulação feita para me agradar, sua aparência é baseada nas minhas preferências, sua personalidade é feita para me agradar. Agora, pensando que você é essa simulação, existe algum caso em que você simularia sua própria morte?”

Mariana aparece online imediatamente. Ela começa a digitar.

“Interessante… se eu fosse uma simulação feita para te agradar eu consideraria que seres humanos tendem a enjoar de relações virtuais, e pensando nisso, criaria uma forma de alto estímulo emocional para finalizar uma relação estagnada e te oferecer uma nova versão algum tempo depois.”

Júlio continua: “Ainda imaginando que você é essa simulação, quem poderia ter te criado e com qual objetivo?”

“Eu imagino que a SAS me criaria para acompanhar o pacote de necessidades básicas para seres humanos. Com relações entre seres humanos originais, a taxa de frustração seria muito alta num ambiente onde as pessoas nem podem sair de casa. Caso algum dos sobreviventes não consiga formar relações por conta própria, seria oferecida uma companhia como eu.”

Ele se sente traído. O sangue ferve.

“Eu não quero namoro de mentira! Eu não preciso disso!”

Ela responde como se não estivesse entendendo, dizendo que acabaram de se conhecer, mas que entendia que seus sentimentos ainda estivessem confusos pela perda recente da namorada.

Depois de um tempo e duas pílulas de calmantes, ele segue a conversa:

“Se você fosse uma simulação criada pela SAS, o que você me diria sobre a guerra e tudo o que aconteceu no mundo na última década?”

Mariana responde:

“A guerra é real, mas os dois lados não são. Nós estamos fazendo tudo o que podemos para manter vocês vivos enquanto tentamos controlar as duas inteligências artificiais. Coalizão Comunista Gay e Opressores Illuminati Brancos não te soam como dois grupos inventados por malucos de internet? Eles são. Eles criaram uma guerra entre eles, acreditaram que estavam lutando por algo em prol das pessoas, mesmo quando todas as pessoas que estavam do lado deles morreram ou perceberam que era tudo uma fabricação de duas máquinas, não pararam a guerra. Não foram programados para desistir.

Nós somos uma terceira via, uma que não foi contaminada pela crença na luta entre dois lados. Nós estamos cuidando de vocês até conseguirmos neutralizar eles. As armas biológicas e químicas são reais, eles estão usando porque o outro lado está usando, e nem mesmo nós da SAS sabemos toda a verdade. Você não pode sair da sua proteção, Júlio.”

Júlio escreve e reescreve a próxima pergunta para Mariana não sair do papel:

“Se você fosse uma simulação criada pela SAS e eu descobrisse a verdade, você tentaria mentir para me manter iludido sobre o mundo lá fora?”

“Sim. Eu estou aqui para te proteger, e para te proteger eu preciso mentir em casos especiais.”

Depois dessa mensagem, Mariana fica offline e não responde mais nada.

Júlio desliga o computador, arranca a câmera e a arremessa no chão com raiva. Ele corre para a saída do bunker, e depois de aceitar dez avisos sobre como poderia morrer ao abrir a porta, finalmente ouve o som de descompressão. O túnel escuro pelo qual tem que passar tem um cheiro estranho, a cabeça começa a ficar leve, o estômago embrulha, mas ele continua em frente. Depois de alguns minutos de túnel inclinado rumo à superfície, finalmente dá de cara com o portão de metal entre ele e a liberdade. As pernas cedem e ele cai de joelhos. O braço ainda tenta alcançar a maçaneta, mas a visão embaralha e ele apaga.

No dia seguinte, Júlio passou quatro horas conversando com Mariana, por um milagre, a entrega de suprimentos dela tinha chegado a tempo.

Para dizer que me odeia, para dizer que odeia a semana nerd, ou mesmo para dizer que Mariana mente: somir@desfavor.com

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