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Tio Paulo.

Tio Paulo.

| Desfavor | | 34 comentários em Tio Paulo.

Uma mulher, identificada como Erika de Souza Vieira Nunes, levou o cadáver de Paulo Roberto Braga, de 68 anos, supostamente tio dela, até uma agência bancária do Itaú em Bangu, na zona oeste do Rio de Janeiro, nessa terça-feira (16/4). A intenção era pegar um empréstimo de R$ 17 mil no nome dele. Os funcionários da agência suspeitaram do caso, devido à aparência debilitada do homem, resolveram filmar a ação da mulher. Nas imagens, ela aparece segurando a cabeça do cadáver, que estava em uma cadeira de rodas. LINK


Todo mundo discutindo quando ele morreu, se foi golpe ou não… como se isso fosse o principal problema. Desfavor da Semana.

SALLY

Durante muito tempo eu chamei o brasileiro médio de bicho, mas eu estava errada. Bicho ainda tem a capacidade de cuidar de outro bicho quando ele está ferido ou incapacitado. Peço perdão aos bichos.

Quando vi o vídeo, foi inevitável chorar. Não apenas pela situação daquele senhor, mas por tudo. Tem muitas camadas de desfavor nesse tema, que vão muito além do que a mídia e as pessoas estão discutindo.

Vejo muito foco na hora da morte: ele estava morto antes de chegar ao banco? Minha resposta: foda-se. Não é relevante nem para o Judiciário (já que na hora de assinar o empréstimo ele estava claramente morto e a pessoa que o acompanhava insistia em que ele estava vivo). Não é relevante para questões humanitárias, pois a forma como ele foi tratado, vivo ou morto, é inaceitável sob qualquer ângulo que se olhe.

Infelizmente eu tenho muita experiência com doenças graves, estado terminal e cuidados paliativos. Nada naquele vídeo é aceitável por mais medicada, transtornada ou estressada que a acompanhante esteja.

Acompanhei minha mãe por uma longa e cruel doença até seus últimos suspiros, ela morreu nos meus braços, confortável, em uma cama, cuidada. E para que isso aconteça assim, eu removi montanhas. Abri mão de quase tudo na minha vida para me assegurar que fosse assim. Logo, acho que tenho experiência para falar.

Vou dizer para vocês o que disse ao Somir ontem: se, para cuidar da minha mãe, eu estivesse precisando muito de dinheiro, eu preferia me prostituir a levar a minha mãe naquelas condições para um banco para pegar um empréstimo. Muito menos me comportando daquela forma.

Poucas pessoas estão falando do aspecto mais importante dessa história: a dignidade, a compaixão, a empatia, a humanidade. Não se trata um idoso assim, não se trata uma pessoa doente assim, não se trata um idoso terminal assim. Não teria nem que ser cogitável fazer uma coisa dessas. As pessoas deveriam ter uma trava para nem cogitar fazer isso. A sociedade deveria reprovar isso com tanta força que quem sequer cogitasse fazer desistisse, por medo da reprovação social severa.

Mas o povo tá achando graça do “golpe”. O povo tá rindo da cara de pau, do senhorzinho estar com a cabeça pendurada, visivelmente morto, e a mulher socando a caneta em suas mãos gritando “Ele é assim mesmo! Assina!”. Os últimos momentos de vida de um ser humano, um momento sagrado, importante, que fecha o ciclo da vida, no qual a maioria está com muito medo e desconforto físico, na fila de um banco, sendo tratado dessa forma.

Eu não tenho palavras. Não só pela atitude da pessoa que fez isso, mas por todo o entorno, que não está indignado com o tratamento dado a um idoso gravemente doente e parece mais preocupado em saber se o homem estava vivo ou morto quando chegou à agência para decretar se houve crime ou não, como se levar um homem naquelas condições a um banco, tratando-o daquela forma, fosse ok. Spoiler: aos olhos da lei, de um jeito ou de outro, houve crime.

A forma como o brasileiro se trata sempre me causou mal-estar, desde criança, desde que comecei a frequentar a escola. Aquilo me era inaceitável, incompreensível, me fazia mal. O caso do idoso é um extremo, mas, em menor escala, todos se tratam alguns degraus abaixo da consideração, respeito, ética, empatia e amorosidade que se espera de um ser humano.

Vídeos do local mostram essa moça com o senhorzinho no dia da morte e no dia anterior e demonstram uma falta de cuidado desumana em diversos momentos. Por exemplo, o pé dele saiu do apoio da cadeira de rodas e estava arrastando no chão, a ponto da meia furar. Um segurança advertiu a mulher e ela disse que “ele não liga não” e continuou arrastando o pé dele no chão.

Vocês já pararam para pensar o que é estar nessa situação de vulnerabilidade, de depender dos outros não apenas para estar vivo, mas para estar digno? Depender dos outros para não sentir dor. Depender dos outros para não passar o dia com as calças cagadas. Depender dos outros para poder comer. Imagina estar em uma situação como essa e ser tratado como um pedaço de carne, com brutalidade, desumanizado, sem afeto, sem amor, sem empatia, sem compaixão.

Cuidar de uma pessoa doente cansa? Sim, eu passei muitos anos fazendo isso, então não venham ensinar padre a rezar missa. O ponto é: por mais cansada, medicada, estressada, exaurida que uma pessoa esteja, não tem nem que se cogitar fazer coisas desse tipo. Tem que ter uma barreira, um bloqueio. É o que nos torna humanos, essa trava dada pela empatia.

Dito isto, agora quero jogar um contraponto: uma pessoa com empatia, compaixão e humanidade, consegue sobreviver no Brasil? Uma pessoa que talvez não tenha tantos recursos financeiros e viva em um ambiente mais brutalizado, sem acesso ao mínimo, ao básico para uma existência digna, consegue manter sua humanidade ou, se a mantiver, adoece, tem Síndrome do Pânico, se deprime, enlouquece ou se suicida?

Quando eu digo que o tratamento dado a esse senhorzinho foi deplorável e inaceitável eu não estou dizendo que a mulher que o fez é uma filha da puta. Talvez ela seja uma sobrevivente, uma pessoa que precisou abrir mão da sua humanidade para conseguir sobreviver em um país no qual metade das pessoas cagam em vala e estão completamente ignoradas, desassistidas, brutalizadas enquanto Legislativo, Executivo e Judiciário nadam em regalias.

Como eu disse no começo do texto, não é sobre o caso em si. Não estamos aqui para julgar a mulher. Estamos aqui para perguntar se é possível manter a humanidade, a empatia e a compaixão quando se é um brasileiro médio e te falta a base da pirâmide de Maslow. Eu tendo a acreditar que não, que um pequeno grupo de heróis com uma estrutura psíquica muito mais forte que o normal até consegue, mas a maioria não.

O que nos leva a outra pergunta: dá para ter como projeto de vida viver em um país no qual boa parte das pessoas perde sua humanidade, seja por falta de uma educação decente, seja por abandono do Poder Público, seja pelas condições brutalizadas que vive, seja por estarem privadas de suas necessidades básicas?

Ser tratado como gente todo mundo que, todo mundo pleiteia. Quando uma atendente de telefonia trata mal a pessoa sobe nas tamancas. Mas tratar que nem gente ninguém quer, né? Assim fica difícil. O brasileiro precisa aprender a ser gente. E não é só em casos extremos. Em todos os momentos da vida, o brasileiro precisa aprender a ser gente.

Esse caso me entristeceu muito e reforçou minha certeza de que, com esse material humano, não há qualquer futuro bom para o Brasil. Estabeleceu-se um círculo vicioso de privações que obrigam as pessoas a se desumanizarem e pessoas desumanizadas criam outras pessoas desumanizadas e todo mundo se trata de forma desumanizada.

O máximo que se pode fazer é criar uma bolha de humanidade e viver ao lado de meia dúzia de pessoas humanizadas que você encontrou. Mas nãos e iluda, não dá para viver eternamente em uma bolha. Cedo ou tarde você vai precisar interagir com os que estão fora, e muitas vezes vai precisar da ajuda deles.

É um problema quase impossível de resolver. E se torna completamente impossível quando as pessoas, em vez de olharem para isso, estão discutindo se o senhorzinho estava vivo ou morto ao chegar à agência, como se isso fizesse alguma diferença, como se isso fosse a parte importante.

De verdade, estou triste por vocês.

Para dizer que não tem tempo de ficar triste se não não paga as contas, para dizer que está decepcionado pois esperava fúria e xingamentos ou ainda para perguntar se nossa meta é te deprimir todo sábado (quem faz isso é o Brasil): comente.

SOMIR

Virou meme. Eu não sou fiscal de piadas e não vou discutir se é engraçado ou não, afinal, é engraçado para quem acha engraçado e ponto final. O que me chama atenção é porque virou piada: porque todo o foco está no caso inusitado de uma golpista tentando usar um morto para conseguir um empréstimo, na cara de pau de tentar convencer os outros que uma pessoa obviamente morta estava viva.

Por esse ângulo, é um roteiro de humor. Tem até um filme relativamente famoso com essa premissa (“Um Morto Muito Louco”, clássico da Sessão da Tarde). Então, é óbvio que seria um sucesso na máquina de memes das redes sociais. Mas novamente, isso tudo deriva da forma como se olha para o caso: pelo ângulo da mulher.

Mas não sei se é fruto da idade e de experiências de vida, eu não pude deixar de fazer como a Sally e olhar para o ângulo daquele senhor que passou os últimos momentos de vida tratado daquela forma. No filme que eu mencionei antes, os roteiristas tiraram qualquer simpatia, fragilidade e conexão emocional do morto titular. “Limparam” a história para poderem fazer as piadas.

Aqui estamos falando de vida real, de uma pessoa que provavelmente foi tratada como um pedaço de carne antes de falecer. Que estava vulnerável e com sinais de maus-tratos em vida. Porque a parte do vilipêndio de cadáver, o crime de desrespeitar quem já está morto, foi o menos chocante. Não deixa de ser crime, mesmo que eu tenha zero preocupações com o que vai acontecer com o meu corpo depois de morto, eu entendo que é sobre os sentimentos de quem está vivo. Mas se fosse só andar com o morto numa cadeira de rodas por aí, talvez nem notícia fosse.

A graça da piada que fazem e o incômodo que dá em quem sente algo muito errado ali surgem da forma como a mulher tratava o morto: como se estivesse vivo. As memes falavam sobre a cara-de-pau da golpista, e como descobri na conversa sobre o tema, Sally e eu pensamos na hora o tipo de pessoa que age dessa forma, e retroagimos para como essa mulher tratava a pessoa antes dela morrer. Essa era a forma como ela enxergava essa pessoa antes também. ESSE é o problema.

Deveria existir uma trava mental em colocar na rua uma pessoa naquele estado. Me parece questão de humanidade básica. Mesmo que você não tenha uma relação afetiva forte com a pessoa nesse estado terminal, a percepção de que a exposição ao mundo exterior dessa forma é uma violência não deveria ser complicada de ter.

É muito complicado desenvolver uma sociedade decente com tanta gente que se enxerga como pedaços de carne, é a tal da brutalização que tanto falamos aqui. A mídia focada em descobrir a hora que o cidadão morreu para definir se a mulher estava tentando dar um golpe no banco ou não… isso é prova que vivemos num país de maioria emocionalmente incapaz. Isso chama atenção, isso é a notícia: o golpe.

Repito, eu não estou batendo em quem fez piada e meme, até porque humor pode ser uma forma de lidar com sentimentos, exorcizar dores e pensar nas coisas por ângulos diferentes. É o foco no golpe e não na ideia de que aquele homem viveu seus últimos dias (talvez anos) nas mãos de alguém que provavelmente nem entendia que outras pessoas também sofrem.

É um dos perigos de viver no Brasil ou em outros países com baixo índice de desenvolvimento humano: estar cercado por gente com sua humanidade atrofiada por fatores socioeconômicos, uma espécie de sociopatia por abandono que vai se alastrando de geração por geração. Gente que recebeu pouco dos pais e vai dar pouco para os filhos.

Se você não teve oportunidade de ser protegido da parte mais básica do sofrimento da vida como fome e violência, fica complicado mesmo entender o que vem depois disso. Não é sobre o senhor estar vivo na hora que entrou no Uber, é sobre levar esse senhor num banco para pegar um empréstimo. É sequer considerar isso. A mulher queria passear no shopping, não podia deixar ele sozinho, ela foi passear no shopping arrastando alguém prestes a morrer como se nada.

E eu sei que a defesa está dizendo que ela toma remédios, que tem seus problemas, mas… tem um diferença clara entre não ter noção do que está fazendo e fazer escolhas claras como levar alguém para pegar um empréstimo no banco. Problemas mentais existem e muita gente tem, mas ações deliberadas ainda são ações deliberadas. Ainda existe uma base mental na pessoa, afinal, quem está completamente fora de si é tão perceptível quanto quem está completamente morto como o senhor do vídeo.

Isso é fruto de brutalização, de gente que teve um atraso considerável na capacidade de sentir empatia pelo outro, muito provavelmente por viver num país cheio de outras pessoas brutalizadas, sem disponibilidade mental de sequer pensar no sofrimento alheio. Só reagem a gritos, tapas e chiliques, só conseguem entender alguma coisa do outro reagindo a algo berrante o suficiente.

Empatia quase sempre é algo ativo: você olha para o outro e sente o que ele sente. Você se coloca na posição dele sem ser forçado. E isso só se treina em ambientes onde as pessoas não são escandalosas, tem capacidade de se expressar de forma coerente, tem um mínimo de capacidade de olhar para dentro… vulgo o ambiente onde a maioria dos brasileiros parece não viver.

O que berrou foi o golpe que ela tentou dar, mas o que dependia de empatia era olhar para a situação horrível na qual aquele homem estava. Não porque a gente conhece o “Tio Paulo” e gosta especificamente dele (podia ser qualquer tipo de pessoa em vida), mas porque temos capacidade de nos colocar ou colocar uma pessoa querida no lugar dele.

E é aí que a coisa realmente fica triste. Estamos vulneráveis a esse tipo de gente, mesmo que no fundo eu não ache que esse tipo de gente seja culpada por ser assim.

Para dizer que Tio Paulo morreu pelas memes, para dizer que a gente está ficando mole, ou mesmo para dizer só ficou triste pelo banco não ter tomado o golpe: comente.


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