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Histórias venenosas.

Histórias venenosas.

| Desfavor | | 34 comentários em Histórias venenosas.

Que histórias infantis clássicas estão cheias de mensagens tortas, Sally e Somir concordam. Mas na hora de escolher a que causa mais danos, a história muda consideravelmente. Os impopulares contam suas opiniões.

Tema de hoje: qual a história infantil mais nociva para a mente de uma criança?

SOMIR

A Bela e a Fera. E por mais que eu também ache que a escolha da Sally tenha seus (de)méritos, escolhi essa porque parte de uma base errada e se instala no inconsciente coletivo como exemplo da ideia em geral. Explico: poucas histórias podem ser resumidas em uma frase tão bem quanto a Bela e a Fera, e esse resumo seria “seu amor muda outras pessoas”. Cinderela, Bela Adormecida, Branca de Neve e tantas outras dependem mais dos acontecimentos da história em si para se instalarem na mente das pessoas.

Tudo bem que dá para resumir as outras histórias de princesas com “seja gostosa e um homem rico vem te salvar”, mas o resto da narrativa também é importante. A Disney teve que encher a Bela e a Fera de porcarias secundárias para ter mais do que o centro podre da história, já as outras tem elementos fantásticos suficientes na sua forma original para serem mais do que a ideia bizarra enfiada na cabeça das meninas. Talvez você lembre até mais dos anões e da maçã na história da Branca de Neve do que propriamente do príncipe vindo no final, e isso, nessa média, até que é um bom sinal. Temos mais o que trabalhar além do básico “aventura de mulher é arranjar marido” que norteia quase todas essas histórias.

A Bela e a Fera consegue ser tão breve no seu conceito principal que se instala no inconsciente coletivo e aplica a ideia base mesmo que você nunca tenha lido os contos ou assistido os desenhos. Só de contar o resumo de uma linha, o mal já está feito, e quando seu cérebro quiser uma referência sobre pessoas mudando radicalmente por amor, ela sempre vai estar lá. Não tem elementos secundários poderosos como não confiar em estranhos e o poder da amizade como em tantas outras, é focada em uma mulher mudando um homem problemático e sendo feliz para sempre depois. Existe poder em concentrar todas suas fichas num mesmo elemento narrativo.

E vamos apontar o elefante feio na sala: pelo menos a ideia de que se você for uma mulher bonita algum homem vai querer financiar sua vida tem raízes na verdade. Não é sobre chancelar o conceito, é entender que na vida real isso acontece mesmo. Se a mulher for bonita e quiser “se vender” dessa forma, não vão faltar compradores. O príncipe nem precisa ser muito rico, basta ter um carro bacana se a mulher quiser seguir essa linha (medíocre) na vida. Não é um bom exemplo de aspiração feminina (na minha opinião), mas é um exemplo realista. Só argumento que falta mais ênfase ainda em como a aparência conta nesses casos, dá linha cruzada querer misturar esse conceito com “seja você mesma”, o que provavelmente explica tanta mulher perdida nesse mundo. Não tem príncipe encantado desse tipo pra baranga.

De qualquer forma, voltemos ao cerne da história que eu escolhi: uma fera abominável vive isolada num castelo, e com o esforço e a compreensão de uma mulher, a fera torna-se príncipe. Sim, acontece num passo de mágica, mas o trabalho da mulher nessa história é muito mais palpável. A mágica surge como um atalho narrativo para um final feliz (e para evitar zoofilia), mas não como a única coisa que aconteceu para gerar esse resultado positivo para a moça. Nesse aspecto, é muito mais realista do que as viradas narrativas das outras. Existe um processo que pode ser internalizado, e o processo gera a ilusão que feras tornam-se em príncipes quando existe amor.

E contar isso para uma criança beira ao criminoso. Porque demora muito tempo na vida até ter essa noção confrontada, provavelmente tarde demais para ser efetivamente resolvido. A ilusão que homens mudam por amor fica presa no sistema de crenças das mulheres até elas tentarem isso na prática. O que costuma dar muito errado por dois motivos: primeiro que pessoas são muito resistentes a mudanças em geral, e segundo que é muito mais difícil sentir e demonstrar o tipo de amor necessário para essa tarefa. Na vida real, a fera e a mocinha não tem nem mesmo o potencial para repetir a história. Falta mágica e falta até mesmo amor.

Essa coisa de forçar a barra para uma pessoa se conformar ao que você espera dela é muito furada, e mesmo nos casos onde pode-se presumir que algo assim tenha acontecido, com certeza existiram muito mais frustrações e concessões do que mágica tornando aquela pessoa em outra muito melhor. É um processo lento, propenso a falhas e extremamente dependente da vontade da Fera, muito mais do que da dedicação da Bela. No vácuo, ninguém muda. É uma mistura de querer com ajuda externa para gerar esse resultado, e francamente, na maior parte dos casos, a Fera no máximo se depila. E, de boa, na vida real às vezes esse tipo de coisa já está de ótimo tamanho.

Como a história é tão dependente do seu ponto central de mudança, torna-se suficientemente mais realista para enfraquecer os pontos fantásticos, mas fantasioso o suficiente para gerar aspiração nas pessoas que entram em contato com ela. E ainda por cima sustenta uma boa parte das ideias tortas de outros contos: o fato da mulher ser bonita está estampado no título e o homem é rico do mesmo jeito que as outras. Esse centro forçado de mudanças em pessoas entra para tornar todo o conceito ainda mais nocivo na média que todas as outras. Até porque como disse no parágrafo anterior, ainda impõe uma ideia de transformação total, não de uma adaptação progressiva ou parcial, o que é muito mais alcançável na realidade.

E só para completar, pode ser só uma teoria minha, mas eu acho que os furries são consequência direta dessa história. O que faria a Bela e a Fera ganhar fácil essa discussão só por esse ponto.

Para dizer que não entende como ficamos progressistas do nada, para dizer que deveriam lançar “A Baranga e o Bêbado”, ou mesmo para dizer que sua infância foi estragada: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é a história infantil com a premissa mais nociva para a cabecinha das crianças? Sem sombra de dúvidas, Cinderela.

A história já começa cagada incutindo medo nas crianças: Cinderela é filha de um rico comerciante, mas ele morre e ela fica nas mãos de uma madrasta muito má que a maltrata de várias formas. Não acho bacana plantar essa sementinha na cabeça de uma criança: “se seus pais morrerem, você pode estar sujeita a todo tipo de maus tratos, pense nisso”. Desnecessário.

A madrasta impõe a Cinderela um verdadeiro trabalho escravo, na concepção das leis trabalhistas. Isso é contado como algo possível, que fica impune, Cinderela não tem o que fazer para se livrar disso. Tremendo desfavor, hein? Crianças tem que saber que trabalho escravo não é permitido de forma alguma e que existem pessoas a quem recorrer e denunciar para se livrar dessa situação. Mas não, Cinderela continua ali, sendo escrotizada, como se isso fosse um destino inevitável.

Aí calha do Rei realizar um baile para que seu filho, o Príncipe, escolha uma esposa. Minha Nossa Senhora da Bicicletinha, isso é errado em tantos aspectos! Casamento não é por amor. A escolha do cônjuge parte exclusivamente do homem. Mulheres desfilando como gado para serem escolhidas pelo Príncipe.

A Madrasta impede Cinderela de ir a este baile alegando que ela não tem um vestido apropriado, ou seja, aparência é o determinante para ter oportunidades na vida. A infeliz da Cinderela pega retalhos que estavam no lixo e costura um vestido com ajuda de animais da floresta. A madrasta fica putaça e rasga tudo, alegando que ela não havia autorizado Cinderela a pegar os retalhos que estavam no lixo. O que Cinderela faz? Se impõe? Denuncia? Luta por seus direitos? Não. Ela senta e chora passivamente. Pior: reza. Cinderela começa a rezar por uma solução mágica, pois é assim que se devem resolver os problemas da vida!

Ao que tudo indica, apenas rezar funciona. Cinderela foi recompensada: aparece uma fada que, magicamente resolve tudo, fazendo surgir um belo vestido, sapatos de cristas e uma carruagem. Você, menina, ao se deparar com adversidades da vida, chore e reze que vai ficar tudo bem, ok?

A fada dá um aviso a Cinderela: ela deve voltar para casa antes de meia noite, caso contrário essa mágica iria se desfazer diante dos olhos de todos e ela estaria ferrada, afinal, ninguém gostaria dela ao natural, como ela realmente é. Parabéns aos envolvidos por mais esta linda lição.

Cinderela vai ao baile fingindo ser o que não é, com roupa, sapato e carruagem de mentira. Graças à produção, encantou o Príncipe. Dançaram a noite toda e ele se interessou por ela, ou seja, o determinante é a roupa, o cabelo, a maquiagem. Sem isso você não tem chances nem de conhecer pessoas bacanas na vida.

Deslumbrada pelo Príncipe, Cinderela esquece da hora e só percebe que é meia noite quando o relógio começa a badalar. Desesperada, ela sai correndo, porque nem fodendo que alguém pode vê-la como ela realmente é, ela só pode ser amada, querida e desejada nessa versão ostentação, com esse falso layout. Na correria, perde um sapato nas escadarias do palácio. O Príncipe, na esperança de encontrá-la, recolhe o sapato e decide procurar pela dona.

Ele vai de casa em casa, para que as moças experimentem o sapato. Quando vai à casa de Cinderela, a Madrasta a tranca no porão e permite apenas que suas filhas experimentem o sapato. O que Cinderela faz? Dá um grito? Luta por seu amor? Não. Ela não faz porra nenhuma, pois afinal, no mundo as coisas se resolvem sozinhas, você pode ficar inerte que o destino se encarrega da sua felicidade por você. Um ajudante do príncipe percebe que tem alguém no porão e o Príncipe exige que a moça também experimente o sapato.

Ela calça o sapato e ele serve perfeitamente. Somente diante desta prova contundente que aquela baranga era a moça bonitinha do dia anterior, o Príncipe decide se casar com Cinderela e são felizes para sempre, sem qualquer esforço, sem qualquer sacrifício, sem qualquer renúncia. O relacionamento simplesmente fluí maravilhosamente bem de forma automática, pois é assim quando duas pessoas se amam, se não for assim não era amor. Sério mesmo, quem foi o arrombado que escreveu isso?

Francamente, vai tomar no cu Cinderela!

Para dizer que é realidade demais para uma segunda-feira, para dizer que pelo menos metade dessas premissas ainda povoa a cabeça de muitas mulheres hoje em dia ou ainda para dizer que vai parar de contar essa história cagada para sua filha: sally@desfavor.com

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