Criando o Criador.

Para começarmos a Semana Anta 2018, vamos falar sobre o ponto central da imensa maioria das religiões: um deus ou algo que o valha. Ao invés de discutir sua existência, Sally e Somir tornam tudo muito mais pessoal. Os impopulares manifestam sua crença.

Tema de hoje: você gostaria que existisse um deus?

SOMIR

Não. Pode atribuir isso a algum problema com autoridade, a arrogância ou seja lá o que quiser, mas pra mim o universo perde muito da graça com essa limitação. A existência de um deus reduz o grau de complexidade e o número de coisas a se aprender ou experimentar nessa realidade. Afinal, está na natureza do conceito de uma divindade apontar as coisas numa direção bem definida.

Até por isso a ideia deu tão certo. Por mais poética que seja a imagem de estarmos flutuando numa partícula de poeira numa imensidão desconhecida, para o grosso da humanidade isso é desesperador. Ter que conceber algo tão grandioso e obscuro ao mesmo tempo gera confusão e frustração. Para a realidade ser tolerável, ela precisa ser tão pequena quanto o limite intelectual da pessoa, até por isso que os deuses historicamente são tão imbecis.

Sim, desculpa aí, mas eu – um Zé Ninguém que apanha para fazer equação de segundo grau – sou consideravelmente mais inteligente, bem articulado e racional que virtualmente todos os deuses criados pela humanidade. E se você está lendo este texto, grandes chances de ser também. Divindades existem para simplificar a realidade para a média da população que a criou. Tanto que não adianta escrever alguém como Jesus como um humanista, a média da população não consegue lidar com algo complexo assim. Então, dois mil anos depois, Jesus acaba virando um histérico que é contra homossexuais por algum motivo. A história religiosa é reescrita constantemente para acalmar a mente de pessoas de baixa capacidade intelectual.

Claro que eu estou indo para um extremo. Você não precisa abandonar seu cérebro tanto assim para acreditar em alguma forma de deus. Mas não vamos fingir que esse elefante não está na sala: o deus das religiões monoteístas mais populares do mundo atualmente é um narcisista brutalizado com um Q.I. de dois dígitos. Porque… sabem como é, essa é a média. O deus dos cristãos, dos muçulmanos, dos judeus? Pelo bem de tudo o que é nobre, justo e puro na mente humana, tomara que não exista. Seria uma decepção imensa (e um perigo) dar de cara com alguém assim depois de morrer. Qualquer sistema que tem uma pena de sofrimento pela eternidade por não venerar seu líder é gerenciado por um monstro horrível completamente desconectado das coisas boas que a humanidade foi capaz de criar. Se esse deus aí fosse um guarda de trânsito e te pegasse estacionando num lugar proibido, não te multaria… mataria toda sua família e te forçaria a beber o sangue deles. Deuses de religiões monoteístas são psicopatas e religião é só o nome original da Síndrome de Estocolmo.

Temos também os deuses das religiões politeístas, esses um pouco mais aceitáveis por não ficarem pregando perfeição. Seriam apenas entidades mais poderosas que nós, mais passíveis de conversa, com objetivos mais claros e nenhuma obrigação de fazerem o bem. Ainda seria uma realidade meio bizarra, mas daria para saber quem é quem. O problema deles também seria a falta de confiabilidade na racionalidade e no senso de justiça. Sejam deuses gregos, nórdicos, hinduístas ou mesmo do candomblé, não tem UM que não precise passar uns duzentos anos em terapia pelas merdas horríveis que fizeram. Deuses que não demonstram inteligência tradicional ou emocional em suas histórias, sempre caprichosos, vingativos e mesquinhos para fazer seus fiéis se sentirem menos horríveis pelo seu comportamento habitual. Esses eu também não gostaria de encontrar, porque seria uma questão de sorte cair ou não nos favores deles. Já leram as histórias sobre esses deuses? Um adolescente dos dias modernos tem mais cérebro e controle emocional que todos eles juntos… são relíquias de uma humanidade com muitos problemas e poucas formas de lidar com eles.

Mas vamos sair dessas ideias simplórias de deus. Se você é capaz de guardar um pouco mais de informação ao mesmo tempo na cabeça, provavelmente já despersonificou a noção de deuses e não precisa que eles tenham feições humanas para lidar com isso. Nem mesmo propósitos humanos. Esse deus mais conceitual com certeza é bem mais tolerável, afinal, não vai agir como uma pessoa emocionalmente descontrolada ou mesmo registrar a sua existência como ser consciente. Esse tipo de deus seria mais tolerável, mas ainda sim não acredito que seria positivo no quadro geral.

Quando o universo é basicamente uma manifestação de uma consciência, somos escravos de seus desígnios. A consciência define os caminhos, alinha todos os propósitos numa só direção, por mais que você queira acreditar que somos livres. Se esse deus despersonificado ainda sim tem alguma forma de pensamento e um desejo ou motivo para fazer as coisas, ele está te limitando, mesmo que não tenha nenhum objetivo egoísta ou maléfico ao fazê-lo. Seria simplesmente a base da nossa realidade vigente. Existimos por um motivo, o que pode mesmo ser alentador, mas ao mesmo tempo… existimos por um motivo. Somos personagens num jogo que não estamos jogando de verdade. Talvez você goste disso, mas eu acho… chato. Me sinto meio usado, mesmo que não tenha raiva nenhuma desse deus nesse contexto. É imensamente melhor do que dar de cara com o velho barbudo do cristianismo? Com certeza, mas mesmo assim, anticlimático.

E ainda tem a questão do limite de expansão: se esse deus é tudo, a parede da qual não passamos é justamente ele. Já tem um dono no universo, ele já pode ter planos para o resto da sua criação e nós vamos ter que aceitar isso. Se a própria ideia de consciência provém desse deus, você não pode escolher nem o final da sua existência. Um funcionário numa empresa que não pode passar de um certo cargo (nunca será o dono), e não pode sair para criar outra empresa (a existência é esse deus). E não deixa de ser um entediante fim da complexidade: quando se chega nesse deus, sabe-se tudo. Mesmo que os específicos ainda fiquem em aberto, sabendo a causa de tudo e tendo alguma noção dos propósitos desse deus, dá para presumir todo o resto.

Repito, esse tipo de deus não me deixaria com raiva. Assim como não culpo meus pais pelos problemas decorrentes de eu ter nascido, não culparia esse deus. Mas, a realidade ficaria menor… e menos… interessante. Se o universo só é sem consciência ou motivo, temos um playground possivelmente infinito e regras para quebrar dada energia suficiente investida. Com um deus… nhé… acaba ali. Parece bem chato.

Para dizer que esse papo está bem maluco, para dizer que chamar todos os deuses de burros foi meu auge, ou mesmo para dizer que pensando bem, é mais inteligente sim que o velho barbudo: somir@desfavor.com

SALLY

Perceba que não estamos perguntando se você acredita ou no que você acredita, estamos trabalhando com uma hipótese fantasiosa que versa exclusivamente sobre uma preferência pessoal sua: se você pudesse escolher, se estivesse em suas mãos decidir, você gostaria que Deus existisse ou que Deus não existisse?

Eu adoraria que Deus existisse (o que não me faz acreditar nele automaticamente). Seria um conforto saber que este planeta-cortiço tem um síndico. Por mais que eu não compreenda direito as regras do jogo, já me traria conforto saber que existem regras no jogo. Com esta certeza nas mãos, eu daria meu jeito e descobriria, nem que fosse na pura experimentação, na simples tentativa e erro, quais são estas regras.

Quando falo em “Deus” não me refiro a um ente todo-poderoso sentado no topo de uma nuvem com forma humana. Deus pode ter milhões de significados diferentes. Não vou aprofundar o assunto, pois ele já foi discutido neste texto. O ponto é: não estamos falando do Deus católico e sim qualquer modalidade de “Deus” para existir.

O senhor de barba que assiste a tudo contemplativo sentado em uma nuvem eu realmente não faria questão que exista, afinal, alguém que deixa crianças morrerem de fome só torna o mundo pior. Mas tem outras formas possíveis de Deus. Nenhuma delas te agrada? Como força interior? Como planeta no qual vivemos? Como coletividade? Como qualquer outra coisa? Talvez um Deus ainda não compreendido, ainda não explorado, do qual pudéssemos ativar algumas potencialidades. Francamente, a humanidade está precisando desse reforço.

Não é a toa que a maior parte da humanidade acredita em Deus. A ideia de alguma força além da nossa gera conforto. A ideia faz tão bem que tem até quem abrace um Deus punitivo, vingativo e preconceituoso em troca de um pouco de esperança. Então, é claramente algo que o ser humano precisa no momento. Talvez em um futuro deixe de ser necessário, mas hoje, acredito que seria fazer um bem à humanidade se existisse um “Deus” e se ele não fosse essa entidade pau no cu que católicos e evangélicos pregam.

Por exemplo, se Deus fosse uma força interior muito poderosa que todos nós temos e podemos acessar. Eu prefiro escolher que todos nós realmente tenhamos escondido em algum lugar uma força sobrenatural para vencer as batalhas da vida. Seria muito bacana bater esse martelo. Sim, meus queridos, Deus pode existir sem religião, as religiões é que se apropriaram de sua figura e não querem mais largar. Francamente, ao bater o martelo pela existência de um Deus, seria até mais fácil desmantelar essas religiões picaretas.

Nós humanos fomos programados para tentar encontrar causa e efeito em tudo. É um mecanismo evolutivo. Só aqueles que entendiam que uma moita se mexendo podia significar um predador sobreviveram para passar os genes adiante. Causa e efeito confortam nossa mente, então, sim, eu gostaria de ter e de levar esse conforto à humanidade: se depender de mim, tem um Deus sim, sem religião, sem medo, sem culpa, apenas uma força para nos ajudar quando necessário.

A existência de um Deus sem adoração, sem religião, sem submissão faria bem à humanidade. Seria lindo ver esses babacas que brigam e fazem guerras em nome de Deus tendo que parar e dizer “ops, merdei”. Acalmaria os ânimos do planeta. Também elevaria a capacidade de muitas pessoas que não conheciam essa força e poderiam passar a acessá-la. Sem contar que seria um fator de união para criaturas que andam muito desunidas: algo todos nós temos em comum, um Deus.

Como eu sempre disse aqui, não tenho nada contra Deus, são seus prepostos que me incomodam. Se o mundo de fato não ficasse melhor, mais palatável com um Deus, será que tantas pessoas inventariam tantas divindades e as seguiriam?

É uma muleta? É sim. Mas mancos precisam de muletas, e a humanidade está mais manca do que nunca. Além de matar uns aos outros, há um sem fim de pessoas tristes, sozinhas, deprimidas, com síndrome do pânico, sem vontade de viver, acomodadas em situações desconfortáveis, sem autoestima, sem forças, indiferentes, viciadas nas mais diversas categorias de vícios (drogas, bebida, sexo, pornografia, eletrônicos, etc). Não sei se vocês perceberam, mas a humanidade não está nada bem, está se desfazendo, está se emburacando. Sim, eu daria um Deus a essas pessoas se pudesse, tal qual pais divorciados dão um cachorro para os filhos.

No pé em que estão as coisas, no saldo final, eu acho mais positivo para a coletividade que Deus exista. E, convenhamos, você tem que ser muito egoísta filho da puta para tomar uma decisão desse porte pensando em você. São mais de 8 bilhões de pessoas impactadas pela sua decisão. Continuo pensando que em um mundo ideal as pessoas não deveriam precisar de um Deus para serem felizes, mas, as coisas são como elas são e não como a gente gostaria que elas fossem.

“Mas Sally, e se Deus não existisse e com essa sua escolha, você o criasse?”. Não tem problema. Como está, está uma merda tão grande, que eu ainda acho que estaria fazendo um bem para a humanidade. O ser humano não deu certo, fato. Algo precisa acontecer para sacudir a raça humana e desviar esse carro que está indo em uma reta para o abismo, nem que seja um Deus. Passou da hora da gente sair dessa barbárie de dualidade, de viver apenas em função do próprio umbigo e de resolver as coisas na porrada.

Certamente esse Deus ficaria bastante puto comigo, pelo abacaxi que eu estaria colocando em suas mãos ao escolher pela sua existência, mas, paciência. Caminhando sozinho o ser humano se perdeu. Se eu pudesse, chamava o síndico.

Para dizer que nem Deus dá jeito, para dizer que seria necessário um Deus só para o Brasil ou ainda para dizer que Deus vai nos punir por esta comemoração de Semana Anta: sally@desfavor.com

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Comments (8)

  • Estou com a Sally, acho que a humanidade precisa de um Deus assim, sem religião, sem preconceito, sem cagar regra mesquinha, apenas uma força interior ou sei lá o que que fizesse bem de alguma forma.

  • Entre o livre arbítrio e a ausência dele existe um meio termo: todas as possibilidades terem sido criadas anteriormente.

    Mais ou menos a ideia de Elon Musk.

  • Depende do perfil desse deus que está em pauta. Se ele fosse bondoso, mas um pouco atrapalhado, justificaria a existência do mal natural (Tsunami, erupção vulcânica, terremoto) como um grande “Ops… Foi mal!”.

  • Por mim tanto faz como tanto fezes. Desculpa pela opinião vaga.

    Tudo que se chama religião ou filosofia tá convergindo pra uma única massaroca de “espiritualidade” cheia de “energias” com uns mandamentos que parecem saídos de um livro do Mario Cortella ou de uma palestra motivacional para empreendedores.
    É muito bizarro como nego se apega em qualquer coisa pra continuar vivendo, fico pensando se um dia eu também vou cair nessa.

    • Acho mais saudável assim: bufê, e não a la carte. Cada um pega o que lhe servir e monta seu próprio prato, com o que precisa.

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