Skip to main content

Colunas

Arquivos

Boicotando Neverland…

Boicotando Neverland…

| Desfavor | | 29 comentários em Boicotando Neverland…

Diante de mais informações vindas à tona recentemente, a imagem de Michael Jackson como pedófilo tem tudo para acabar cimentada no inconsciente coletivo de vez. Nem Sally nem Somir defendem o cantor, já morto, mas pensam diferente sobre sua obra. Os impopulares decidem se a questão é preto no branco.

Tema de hoje: vale a pena boicotar as músicas do Michael Jackson por sua vida pessoal?

SOMIR

Não. Se ele estivesse vivo e lançando um novo álbum, eu consideraria outra resposta. Mas Michael Jackson morreu, e com ele, todas as possibilidades de punição possíveis contra a pessoa. Vamos partir do princípio que ele realmente abusou das crianças. Nessa altura do campeonato já é extremamente mais provável que tenha acontecido mesmo do que ser armação. O que ele deixou foi uma vasta carreira musical cheia de canções dignas de fazerem parte da herança cultural humana por muitos séculos ainda. Não que eu seja um fã, música pop raramente me interessa, mas não é necessária nenhuma ginástica mental para defender o talento dele. Todo mundo (e aqui eu finalmente estou sendo literal) conhece pelo menos uma música feita por Michael Jackson. E a imensa maioria gosta de pelo menos uma delas.

Isso não é pouco. Isso é um feito extraordinário que sugere que quando o assunto era música, Jackson jogava numa divisão própria, virtualmente intocável. A questão aqui não é discutir se ele era talentoso, óbvio, mas precisamos guardar essa informação porque ela eventualmente influi na discussão. Sim, estamos falando sobre consumir ou não a obra criativa de um pedófilo. E a resposta dessa questão ética, pelo menos na visão que apresento aqui, pode assumir dois caminhos distintos:

No primeiro, você decide se consome os produtos de uma pessoa que está fazendo mal para crianças. Essa é a hipótese de Michael vivo. Aqui existe sim um dilema: muito embora não seja culpa sua que a música que você gosta foi feita por um pedófilo, oferecer qualquer forma de suporte para essa pessoa soa como um endosso para seu comportamento. Gostar da música dele significa gerar renda e atenção positiva para uma pessoa fazendo algo horrível. Caso ele estivesse vivo, eu faria a escolha de não dar dinheiro para ele, até para evitar que ele tivesse poder suficiente para continuar fazendo as coisas que eu abomino.

Mas, esse argumento pode ir mais longe. Para começo de conversa, o boicote é uma via de mão dupla quando você realmente gosta do que está evitando. Você se pune ficando sem o que quer porque outra pessoa está fazendo algo errado. E na prática, temos polícia e sistema judiciário justamente para tirar de nós a pressão de punir o outro. É culpa de alguém que escuta a música do Michael Jackson que as autoridades com responsabilidade real de coibir o crime que ele cometeu não tenham agido a tempo? Você vai compartilhar a culpa por um pedófilo só porque gostou de uma música? Sagrado direito de cada pessoa consumir produtos legais na nossa sociedade. Ninguém é culpado de um crime do qual não participou, oras. Boicote pela satisfação pessoal, mas saiba que é um argumento muito mais emocional do que racional. Deixar de escutar uma música no Spotify não interfere em nenhum processo legal.

E outra: seres humanos horríveis podem construir coisas belíssimas e/ou úteis. Ad Hominem não é a falácia mais comum de todas à toa, é muito comum que as pessoas confundam quem falou com o que a pessoa falou, ou quem fez com o que a pessoa fez. Uma música não pode ser pedófila (mesmo que faça apologia a isso), músicas não podem cometer esse crime por serem incorpóreas. Uma frase interessante do Hitler não vira um absurdo só porque saiu da boca de um genocida maluco. Uma pessoa negra pode viver feliz da vida dentro de uma casa desenhada por um arquiteto branco racista. Objetos e ideias não são pessoas, não podem fazer o que pessoas fazem. Não sei se a maioria aqui já considerou isso, mas é virtualmente impossível viver a vida sem interagir com as criações de pessoas que você provavelmente detestaria se conhecesse de verdade.

Você já comeu uma coxinha feita por alguém que acha que ateus tem que morrer, já aprendeu sobre uma profissão com alguém que abusou de uma criança, já colocou gasolina com alguém bate na mulher… é tão óbvio que sua vida é feita de dar dinheiro e suporte para pessoas que vão contra tudo o que você acredita que a maioria de nós simplesmente nem entretém a ideia. Você lembra disso às vezes quando o caso é grande o suficiente, mas no dia a dia, estatisticamente falando, apoia tanto gente merda como quem não entra nos boicotes da vez. Claro que você pode argumentar que não tem como saber de tudo e só agir quando tem a informação, mas vamos ser realistas? Duvido que não tenha nada ao seu redor neste exato momento que não tenha sido feito através de trabalho escravo. Você sabe disso. Eu sei disso. Todo mundo sabe disso. Esse é um dos preços do mundo moderno: pessoas horríveis produzem coisas que queremos nas condições que queremos.

E vamos agora ao segundo caso, o caso real, o no qual Michael Jackson está morto. Acabou. As crianças foram abusadas e não há nada que eu ou você possamos fazer para resolver esse problema. Absurdo que isso tenha acontecido, estraga de vez a imagem da pessoa Michael Jackson, mas não muda absolutamente nada no quadro geral das coisas boicotar a música dele. A música não abusou de criança nenhuma. A música não contribui para nenhum abuso futuro. E permitam-me a honestidade: Michael Jackson só conseguiu viver livre do grosso das consequências (ser preso) por ser uma das pessoas mais talentosas do planeta. Pouquíssima gente nesse mundo conseguiria sobreviver ao impacto das primeiras acusações. A carreira dele já tinha acabado, caso alguém tenha esquecido disso. Michael morreu depois de ter sua popularidade reduzida imensamente. Não é como se todo mundo tivesse fingido que não aconteceu nada: Michael de 2009 era um desastre ambulante, drogado 24 horas por dia. Deveria ter ido para a cadeia? Sim. Mas não é como se ele tivesse vivido uma vida feliz depois das primeiras acusações. Um pouco do preço ele pagou. Escutar a música dele não é celebrar alguém que abusou de crianças impunemente, ele passou uns bons 10 anos completamente estragado para a vida depois que as acusações vieram à tona. Ninguém descobriu isso agora, o documentário recente foi a pá de cal.

Quem tinha que boicotar Michael Jackson já boicotou em vida. Quem falhou foi a polícia e o sistema judiciário americano. Pode largar essa culpa, ela não é sua. E só para arrematar: lembra que eu disse que ela foi uma das pessoas mais talentosas da história da música pop e isso contava? Ninguém vai ser capaz de esconder a obra dele das próximas gerações. E com o passar das décadas, a música é mais forte que a memória. Vai ter gente ouvindo as músicas dele daqui a 200 anos sem a menor noção que ele abusava de crianças. E para quem estiver vivo por lá, isso é bom. Obras duram por séculos, milênios até, apesar das coisas horríveis que seus criadores fazem. Porque não é essa a informação que tem que ir pra frente, não é isso que temos que guardar. Se você escolhe ouvir a música do Michael Jackson como a música de um pedófilo, é isso que está guardando. Se escolher ouvir a música e deixar essa pessoa desaparecer, ela desaparece. Vamos deixar ele levar embora com ele a obra que tantos de nós gostamos? Isso é dar poder demais para uma pessoa que abusava de crianças…

Para dizer que a melhor forma de combater a pedofilia é fazer coisas que não tem absolutamente nada a ver com pedofilia, para dizer que vai escutar do mesmo jeito e dizer que boicota para os outros, ou mesmo para dizer que foi abusado por uma música e meu texto é insensível: somir@desfavor.com

SALLY

O documentário “Deixando Neverland”, da HBO, mostrou com riqueza de detalhes um lado obscuro e criminoso do cantor Michael Jackson. Diante das informações reveladas, muitas delas contadas pelas próprias vítimas, empresas, instituições e pessoas pelo mundo todo optaram por boicotar Michael Jackson, de modo a não prestigiar alguém que arruinou vidas de crianças desta forma. Isso fez surgir o tema de hoje: este boicote é válido?

Sim. No que depender de mim, não vou dar dinheiro para pedófilo, ainda que morto. Quando conversei com o Somir sobre o assunto ele disse que “a música dele não abusou de ninguém”, mas se a música é o que lhe garantiu condições de montar uma enorme armadilha para crianças travestida de parque de diversões ou ludibriar a justiça e não responder pelos crimes, não serei eu a financiar isso.

O grande problema é o boicote seletivo: pessoas boicotam aquilo que já não gostavam muito diante de denúncias, fazendo um estardalhaço, para posar de boas pessoas. Mas, se é algo que vai gerar um sacrifício, como por exemplo, largar seu iphone feito com trabalho escravo, aí fingem que não viram. Na real, boicote é a única arma que funciona contra pessoas, empresas e instituições muito mais fortes que o consumidor.

Se todo mundo boicotasse produtos de origem incorreta ou criminosa, bateria onde dói: no bolso das empresas. E por boicote, eu quero dizer apenas uma coisa: parar de consumir. Não precisa jogar no lixo o que você já tem, não precisa fazer escarcéu, não precisa nem divulgar que está boicotando. Não precisa de absolutamente nada a não ser parar de consumir, de forma silenciosa e discreta. Se todo mundo fizer isso, a empresa vai sentir no bolso.

Você tem coisas relacionadas a Michael? Ok, pode ficar com elas. O dinheiro já está gasto, já foi para ele. Não precisa atear fogo, repudiar em público, jogar fora. Continue escutando a música que você tem se assim desejar. Mas se lançarem um novo trabalho dele, por exemplo, com músicas inéditas cortadas dos álbuns anteriores, faça um favor à sua coerência: se você entende que ele é um pedófilo, simplesmente não consuma.

Do ato incorreto ou criminoso em diante, não prestigie mais a pessoa/empresa. É o mínimo que se pode fazer para passar o recado de que você não compactua com a prática deste tipo de crime. Não se trata apenas do dinheiro, ao consumir o produto criado por um predador sexual você está aumentando as chances de sua impunidade, banhando-o de dinheiro e prestígio e dificultando que seus crimes sejam punidos. É realmente tão difícil de perceber? Como bem disse um membro da família Jackson uma vez: “Temos dinheiro para neutralizar mais cem acusações se isso for necessário”.

Mesmo morto, acho ofensivo que Michael Jackson tenha saído “limpo” de todas as atrocidades que cometeu, independente do seu grau de consciência no momento em que cometeu os abusos. Quando estava vivo era trucidado, quando morreu foi absolvido. Se eu fosse uma das vítimas, estaria muito triste em ver alguém que cagou a minha vida ser tratado como ícone, como rei, como referências. Por melhor que seja a música dele, não se aplaude pedófilo, pois os aplausos geram impunidade e subsídios para que ele se safe dos seus crimes.

“Ain, mas tem que separar a pessoa da sua obra”. No seu lindo mundo da imaginação, pode ser. No mundo real, foi o fato de vender disco pra cacete que fez com que Michael tenha bilhões para pagar acordos de valores insanos e calar a boca de mais de 12 crianças que foram abusadas. “Ain, mas se aceitaram o acordo problema deles”. Não. Pais aceitaram, as crianças não puderam opinar.

Além disso, o problema não é só dos envolvidos. Se ele tivesse sido preso na primeira acusação, outras 11 crianças (ou mais, pois nem todas querem ir ao tribunal se expor) não teriam sido abusadas. E muito dos que foram não conseguiram reconhecimento judicial disso graças à fortuna que os fãs de Michael asseguraram à família do cantor, que continua rebatendo acusações e usando muito dinheiro para desqualificar as vítimas.

Essa mania de sempre tirar a responsabilidade das mãos e jogar para algo externo é a forma mais nociva de auto perdão que eu já vi. O curioso é que se as mesmas pessoas descobrem que seu vizinho já abusou de 12 crianças, vão fazer o diabo para queimar a pessoa, expulsá-la do prédio e sujar seu nome. Famoso e rico que lhe gera algum lazer pode, o vizinho jamais. Percebem a falta de coerência?

Michael Jackson está morto, mas o dano que ele causou a estes meninos está bem vivo. Ver o mundo cultuar seu estuprador não deve ser nada agradável, vocês conseguem, por um minuto, se colocar no lugar destes meninos? Ver o “mito”, o “rei do pop” renascer depois de morto reduz as chances de que a verdade completa venha à tona, municia a família Jackson com mais dinheiro para financiar impunidade e coloca a opinião pública a favor de Michael.

Curioso que estas mesmas pessoas que não querem abrir mão de nada que gostem são as primeiras a lançar mão do argumento “E se fosse com o seu filho?”. Então, já que são fãs deste argumento, eu devolvo a pergunta: Será que se fosse com o filho delas, abusado sexualmente por um cantor, elas não veriam qualquer problema nas pessoas continuarem consumindo sua música? Em vê-lo crescer novamente, ser endeusado, fechar sua carreira com glória? Mas é claro que veriam. O “E se fosse com seu filho” só vale para desqualificar o argumento alheio.

Não estou sugerindo que se boicote um erro humano corriqueiro. Se o cantor que você gosta levou uma multa de trânsito, paciência, são coisas da vida. Estou falando de uma situação extrema: um predador sexual que montou uma armadilha para abusar sexualmente de dezenas de crianças sistematicamente, por décadas. Uma situação extrema que arruína vidas para sempre. Você consegue fechar os olhos para isso e continuar prestigiando essa pessoa?

“Ain, mas isso não se confunde com a música dele”. E por um acaso eu estou dizendo que você tem que achar a música dele uma merda? A música dele é boa, eu mesma admito isso. Ele era muito bom no que fazia. Porém, mesmo achando o trabalho do sujeito fenomenal, eu tenho a consciência de que consumir isso contribui para impunidade, esquecimento e descaso com os crimes que ele cometeu.

Se todo mundo boicotasse pessoas e empresas que cometem erros deste porte, que violam direitos humanos, que arruínam vidas, as pessoas/empresas teriam mais receio em cometê-los, ou, ao menos, perderiam o poder de cometê-los na primeira informação que vazasse, pois o dinheiro secaria e eles não teriam como fugir de dezenas de julgamentos. Eu me recuso a dar dinheiro para vagabundo escapar da responsabilidade pelos seus crimes.

“Ain, mas Michael está morto”. Sim, mas os processos continuam correndo. Crianças não foram “desestupradas” porque ele morreu. E quanto mais rica e prestigiada for a família Jackson, menores as chances de que justiça seja realmente feita. Além disso, abre um precedente perigoso para outros que estejam pensando em fazer o mesmo: se você conseguir fama e dinheiro, fica tranquilo, pode abusar sexualmente de crianças que as pessoas continuarão consumindo sua arte e ninguém vai te virar as costas.

Não, obrigada. Não vou compactuar com isso. Sem escândalo, sem estardalhaço, simplesmente não prestigio mais.

Para dizer que concorda em tese mas não quer se privar do que você gosta por isso vai fazer uma ginástica argumentativa para se convencer de que não tem problema em continuar consumindo, para dizer que a música dele não era boa ou ainda para dizer que coitado era o Michael Jackson de ter que aturar tanta criança: sally@desfavor.com

Comentários (29)

Deixe um comentário para Gui Cancelar resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado.