Espírito animal.

Salvo alguma grande surpresa pós-morte, o que vamos sugerir aqui é impossível, mas não deixa de ser um bom exercício de autoconhecimento. E sem as balelas de entrevista de emprego. Sally e Somir imaginam seus cenários ideais de existência não-humana, os impopulares deixam seu lado primal aflorar.

Tema de hoje: se você tivesse que reencarnar em um animal não-humano, qual escolheria?

SOMIR

Eu voto no chimpanzé. Estava considerando a vida de um golfinho pela mudança de cenário, mas nada no resto da natureza ainda consegue vencer o combo de cérebro desenvolvido e coordenação motora fina dos primatas. Seja como for, já deve estar claro que eu não teria a menor intenção de abrir mão de inteligência avançada. Depois de experimentar o cérebro humano, qualquer outro seria decepcionante, eu provavelmente teria que ser forçado a escolher outra espécie que não a minha, mas, é a condição do texto.

Quem acompanha o Desfavor faz tempo sabe que eu passei por uma jornada de “desfetichização” da inteligência. Nesses mais de 10 anos, deixei de achar que era a única coisa importante para um ser humano para entender que as coisas são mais complexas, que um equilíbrio saudável de instintos, emoções e racionalidade é muito mais importante para uma pessoa do que intelectualidade por intelectualidade. A vida é mais que isso.

Mas isso não significa, de forma alguma, que esteja renegando o valor desse aspecto da mente. Podemos ser controlados pelo inconsciente, mas o elemento racional abre uma série de portas, criando possibilidades fascinantes para nossas vidas, possibilidades que outros animais simplesmente não têm. Claro que ainda não temos completa noção de quão complexos são os processos mentais em outros animais, mas fica evidente pelo desenvolvimento de outras espécies que falta alguma coisa neles para dar o próximo passo na evolução social.

E se vier com um papo do tipo: “sábios são os animais que não criam esse mundo horrível”, eu só posso lamentar pelo seu papo furado. Esse mundo horrível que vivemos reclamando é de um grau de conforto, diversão e segurança com o qual todo animal sonha. Cachorros e gatos que o digam. Uma gazela na natureza topava fácil Bolsonaro presidente e mimimi lacrador no Twitter em troca do que temos. Larga de ser mimado. Não tem nada nem próximo do grau de excelência da vida humana na natureza. Mas antes que eu passe o resto do texto reclamando dessas asneiras, de volta ao ponto:

Sendo obrigado a descer na escala evolutiva, eu escolho dar só um passo para trás. Chimpanzés são basicamente humanos, pensando na composição genética. Algo em torno de 99% de similaridade. Não é ideal abrir mão de toda a complexidade intelectual de um ser humano, mas talvez exista alguma diversão em trabalhar com recursos limitados. Às vezes cozinhar com os ingredientes na geladeira é mais recompensador do que ir ao mercado e pegar a lista exata de uma receita. Imagino que seja mais ou menos o possível vivendo uma vida de chimpanzé. Não tem os recursos de um ser humano, mas uma parte considerável dos elementos básicos estão lá. Talvez um chimpanzé tenha pensamentos mais complexos do que aparentam pela falta de uma linguagem ampla para se expressar.

E como uma das regras desse exercício de pensamento é que você não pode escolher a condição na qual vive, aceitando a aleatoriedade do nascimento, existem 3 cenários prováveis: o mais comum (ainda) é estar no seu habitat natural, munido pelas ferramentas instintivas que você tem, ou nascer sob o controle de humanos. No primeiro caso, o natural, você teria capacidades físicas bem interessantes: não 2, mas 4 polegares opositores. Chimpanzés conseguem agarrar até com os pés, o que os permite escalar quase qualquer coisa disponível numa floresta. Some-se a isso uma força física impressionante, de 2 a 3 vezes maior que um ser humano médio, e você vira uma máquina de Parkour selvagem.

Deve ser divertido ter tanta força com membros de um primata. Você vai ser muito forte, muito rápido e muito hábil também. Sua visão vai continuar sendo excelente (para a média dos mamíferos) e seus outros sentidos vão ter um avanço considerável. O foco quase que obsessivo do ser humano com a visão nos tirou muitas capacidades em outros sentidos. E como você é um chimpanzé, não vai ter muita frescura. Quase tudo está bom, chimpanzés também podem comer uma quantidade enorme de coisas diferentes, assim como nós. Provavelmente não vai ter nenhuma dúvida existencial, vai ter uma estrutura social clara para seguir e dificilmente vai ter tempo para ficar entediado. Sua memória de curto prazo vai ser tão melhor que a de um humano que vai até ser covardia comparar. Você consegue notar mais coisas mais rapidamente, o mundo deve ser muito mais nítido para um chimpanzé sem todo o “barulho mental” que um humano médio tem que lidar.

Sim, a vida de um chimpanzé pode ser hardcore na parte da violência, mas animais normalmente seguem padrões bem previsíveis de agressão na natureza. Se o outro bicho não está criando problemas, você o ignora. Se o outro bicho é menor, você enfia a porrada, se é maior, sai de perto. É o que eu disse sobre fazer o melhor com recursos limitados. Pessoalmente eu prefiro interações mais complexas, mas se a limitação é a mesma para todos, não me parece um problema tão grave. Ponto positivo também para a capacidade de usar ferramentas e ter uma noção rudimentar de causa e consequência, o que outros animais de cérebros mais limitados normalmente só fazem por instinto. Chimpanzés aprendem de verdade, não só “decoram para a prova” como cachorros.

E no outro caso, o de nascer sob o controle de humanos, duas possibilidades também: você pode estar na mão de quem se importa com seu bem estar ou não. Alguns chimpanzés acabam como cobaias ou sofrendo em circos, o que deve ser horrível. Mas uma boa parte acaba em zoológicos (não parece ideal, mas tem suas vantagens) ou mesmo como chimpanzés de madame. Porque isso existe. Tem gente que gosta do animal e trata ele como se fosse filho. Não é o fim do mundo ser mimado por um humano, não?

E talvez você até caia na mão de humanos que são fascinados por você e tentam te ensinar um monte de coisas que em tese você é capaz, mas nunca tem a oportunidade de desenvolver na natureza. Pode ser que você acabe sendo o primeiro chimpanzé a dar o passo final para a inteligência complexa e domi… quer dizer… encantar o mundo.

Para me chamar de macaco, para dizer que é só abrir uma conta no Instagram para vivenciar isso, ou mesmo para dizer que eu seria o chimpanzé nerd que morreria isolado do grupo: somir@desfavor.com

SALLY

Se você tivesse que reencarnar em um animal não-humano, qual escolheria?

Regra importante: você pode escolher o animal, mas não as condições nas quais ele vive. Isso quer dizer que se você escolher um cachorro, por exemplo, pode voltar com todo o conforto de um cachorro de madame ou com os perrengues de um cachorro de rua. Dito isto, qual animal você escolheria?

Um gato. Por mais difícil que seja a vida de um gato, ela me parece mais atraente do que a vida da maior parte dos animais.

Gatos são animais razoavelmente limpos e independentes. Isso garante que, em quaisquer condições externas, eu teria um mínimo de dignidade e conforto. Higiene e comida não dependem necessariamente do ser humano ou de outros animais da mesma espécie. Um gato tem condições de se auto prover dignamente, ao menos em quesitos básicos.

Mesmo sendo um gato de madame, o animal não é compelido a fazer o que os donos querem, como é o cachorro. Se um gato não está com vontade de fazer algo, ele simplesmente não faz. E se for obrigado, ele não tem o menor pudor de sentar a unha na sua retina, sem cerimônia. É muito improvável que alguém subjugue ou humilhe rotineiramente um gato. Isso melhora muito a qualidade de vida quando comparado a outros animais.

Não importa onde esteja, gatos dormem entre 15 e 20 horas por dia e foda-se o mundo. Se estiverem na rua podem escalar um lugar alto onde se sintam seguros e sonecar. Se estiverem em uma casa com humanos, se escondem em qualquer cantinho e descansam o quanto querem, só saindo quando se lhes dá na telha. Na boa, talvez seja uma vida até mais independente do que a nossa, de seres humanos.

No geral, se gatos precisarem de comida sabem se virar sozinhos e conseguem caçar algo sem grandes sacrifícios. Da mesma forma são bons de fuga e em esconderijos, caso precisem fugir de predadores ou se esconder de algum perigo. São rápidos, flexíveis e cabem em qualquer buraco, não é à toa que se diz que um gato tem sete vidas: normalmente eles são safos e sabem se cuidar bem.

Não são animais de matilha, podem levar uma vida solitária e feliz, sobrevivendo sem a dependência de outros gatos ou humanos. Isso garante um belo grau de independência. Imagina que maravilha não ter que aturar outros da sua espécie por política, sobrevivência ou laços familiares? Garanto que muitos de vocês já estão com vontade de ser gatos.

O gato é um animal limpo, ele mesmo se encarrega da sua higiene com o famoso “banho de língua”. Isso assegura que mesmo que seja um gato sem dono, sem regalias, estará sempre razoavelmente limpo e digno. Aliás, gatos são sempre dignos: andam com classe, sentam com classe, fazem tudo com elegância. Um animal admirável.

Gatos se distraem com qualquer coisa: uma caixa de papelão, uma pena que voa ao vento, qualquer porcaria é pretexto para um gato brincar (exceto aquele brinquedo caro que a gente comprou para ele). Um animal que se diverte muito com pouco, portanto, meu lazer estaria garantido. Essa capacidade de brincar com qualquer folha que se mexa com o vento deve tornar a vida mais leve.

Um gato não precisa de caminhas caras, brinquedos de pet shop ou qualquer outro adereço vindo de humanos. Não. Um passarinho no telhado, um monte de feno no chão para deitar e tá ótimo. Não existe nada que o homem fabrique que desperte uma grande paixão em gatos, eles parecem bem indiferentes: tanto faz dormir em uma caixa de papelão ou em uma caminha cujo preço é de três dígitos.

Gatos, exceto aquelas aberrações cruzadas por humanos até ficarem disformes, costumam se adaptar muito bem ao frio e ao calor. Eles possuem mecanismos eficientes de aquecimento e resfriamento do corpo, o que garante um relativo conforto, onde quer que se vá reencarnar. Imagina o desconforto de ser um animal exclusivo de um clima e nascer no outro? Um lagarto na Antártida ou um urso polar no deserto. Não, obrigada.

Gatos tem facilidade em deslocamento: pulam grandes distâncias sem se machucar, pulam para grandes alturas graças a uma impulsão privilegiada, são flexíveis, entram em qualquer buraco e tem uma visão excelente, inclusive visão noturna. Isso aumenta o grau de liberdade: não ser um animal pesado, nem grande, nem lento e ainda ser bem preparado para qualquer terreno. São poucos os lugares onde um gato não consegue ir. E sim, para os que não sabem, gatos nadam.

Gatos são relativamente bem aceitos em todas as culturas. Talvez exista algum grau de risco em nascer um gato preto em alguns países, mas, no geral, eles oscilam em uma escala que vai de “ninguém liga” até “animais sagrados”. E tem mais adoradores de gato do que odiadores pelo mundo, então, as chances estão a favor do felino.

Salvo de forma acidental, acredito que não exista nenhuma cultura que institucionalmente coma gatos, portanto, o fato de não ter o humano como predador também seria de grande ajuda. Carne de gato é inclusive malvista, contando como mais um ponto positivo na hora da sobrevivência.

A vida de um gato não tem grandes complexidades, o que, atualmente, é algo que eu aprecio. Voltar para outra sociedade complexa como a dos chimpanzés ou golfinhos? Não, obrigada. Não tenho mais paciência. Chega de aturar a opinião alheia, chega de democracia, chega de decidir vinculada a um bando, prefiro andar pelos muros à noite sem cair feito uma jaca podre. A vida do gato é basicamente dormir, comer e brincar. Parece boa para mim.

Para dizer que você prefere ser um bicho que voa, para dizer que você prefere ser um tardígrado ou ainda para dizer que você prefere nem voltar: sally@desfavor.com

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Comments (9)

  • Eu já tinha pensado em poodle de dondoca antes de ler o texto, mas vi as regras e ai pensei que queria ser um cachorro mesmo, esperaria que fosse um que ajuda as pessoas como cão guia ou são Bernardo…

  • Gato, com certeza! Tinha uma época que eu invejava esses bichos. Eu com o cabelo sujo, dor nas costas e eles dormindo por escadas e janelas.
    Sempre tem alguém para dar comida e brincar. Hoje em dia estão na moda, fácil arranjar um dono. Ia ter atendimento veterinário, que é mais difícil para um chimpanzé.
    Sem contar que eu tenho horror a macacos. Do menor miquinho ao maior gorila. Bem feios.

  • Quando adolescente ouvi para nunca dizer em entrevista de emprego que queria ser gato. A psicologa te riscaria na hora devido ao fato de gato ser traicoeiro. Me sugeriram dizer coelho. Vai saber….
    risos

  • “E sem as balelas de entrevistas de emprego”

    Poxa, eu queria ver uma resposta dessas pra uma entrevistadora, a mulé cansada de ouvir aqueles lugares comuns, “quero ser uma águia, quero ser um leão bla bla blá”, e vem o Somir com “sai fora, se é pra descer na escala evolutiva que seja um degrau só”, hahaha

  • Sendo uma fêmea pra mim dá na mesma, eu teria que ser uma eterna parideira nas duas situações, caso viva na natureza ou nas ruas. Se fosse pra escolher mesmo, sempre achei que seria interessante ser um pássaro e voar por aí.

  • Chimpanzés da espécie bonobo, além da inteligência fazem sexo por prazer, então já sei quem eu escolheria :D

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