Mudança histórica.

O que está feito, está feito, certo? Bom, essa não é nossa premissa: Sally e Somir analisam a longa história da humanidade e decidem interferir em algum ponto. Os impopulares reescrevem a história.

Tema de hoje: se você pudesse mudar um grande evento histórico no passado para melhorar o presente da humanidade, qual escolheria?

SOMIR

O comércio escravagista da África para as Américas. O mundo moderno tem os melhores índices de qualidade de vida em comparação com qualquer outra época da nossa história, então, por mais horrível que seja nosso passado, podemos presumir que no final das contas o saldo das nossas decisões como sociedade é positivo. Mas, a escravidão é um ponto fora dessa curva: nem mesmo nessa análise pra lá de fria sobre fins justificarem os meios podemos dizer que esse processo de retirar milhões de africanos de suas terras natais valeu a pena.

Vejam bem, não estou falando de escravidão em geral, a prática é muito antiga e nenhum povo ficou livre dela, mas quando falamos de escravos africanos, a coisa se estende muito além da época onde essa cultura era aceitável. Não que a escravidão no Egito ou Roma tenha sido mais tolerável pelo nosso padrão atual, mas pelo menos a distância entre esses fatos e o mundo moderno é consideravelmente maior. A escravidão de africanos é tão recente que nas Américas ainda existem netos vivos de pessoas que morreram escravas.

E por ser tão próxima da era atual, essa escravidão foi turbinada por avanços tecnológicos consideráveis como agricultura e transporte em largas escalas. Nunca foi simples escravizar milhões de pessoas e dar um trabalho para elas em lugares distantes, não tínhamos capacidade de escalar esse processo de exploração. A escravidão antiga não era agradável, mas não causava esse êxodo humano como os europeus e descendentes fizeram com os negros africanos. Escravos romanos, por exemplo, viviam mais ou menos perto de onde nasceram, acabavam integrados às famílias que os compravam e eram tão parte da lógica social que existiam mecanismos claros que o permitiam comprar sua liberdade e continuar sua vida sem carregar um estigma para sempre.

Já no caso dos africanos jogados no Novo Mundo aos milhões, sem nenhum laço com a terra e plano de integração, não havia para onde correr. Eram enfiados em grandes fazendas, onde não conseguiam entrar para a sociedade local, e suas diferenças óbvias de aparência para os povos locais geravam um grau de desconexão gigantesco, impedindo sua integração por séculos. Foi nossa primeira experiência com imigrantes sem a menor intenção ou chance de fazer parte de sua nova terra. E deu no que deu.

O resultado disso é que em países como Brasil e EUA, os descendentes desses escravos ainda pagam o preço pelo desastre humanitário de gerações anteriores. O negro é estatisticamente mais pobre, porque não teve condição de acumular riquezas até pouquíssimo tempo atrás, e ainda sofre com o estigma de ter a aparência do último povo que foi abertamente escravizado na nossa história. Sim, eu sei que a escravidão existia na África, mas era uma versão mais próxima da romana: a pessoa ainda vivia próxima de onde nasceu e acabava integrada à família para a qual era enviada. A escravidão africana (dos povos que venderam escravos para o Ocidente) não era necessariamente para a vida toda também. Era moeda de troca em forma de trabalho.

Mas como essa versão aconteceu numa economia que já se globalizada e queria produzir em escalas gigantescas, os escravos africanos foram usados como máquinas. Ao desumanizá-los, criamos feridas que não se curam tão fácil, talvez precisemos de muitos séculos ainda para colocar isso definitivamente no passado. E o resultado disso na sociedade moderna é terrível: milhões de pessoas descendentes de quem não queria estar aqui ainda pagando o preço por algo que aconteceu séculos atrás. E honestamente, não tem muito o que fazer para consertar: infelizmente “lacrar na rede social” não desfaz o dano. Adoraria que fosse fácil assim, mas é um processo muito longo que nos mantém separados repetindo ciclos de ódio entre seres humanos de cores diferentes, o que fica ainda mais complicado no Brasil considerando o grau de miscigenação: o impacto da escravidão está diluído no meio da nossa sociedade. Não tem um grupo óbvio de pessoas para as quais tentar fazer justiça.

E de uma certa forma, ainda foi uma das escravidões mais “supérfluas” da nossa história. Manter escravos africanos era marginalmente mais barato que pagar os ridículos salários que eram permitidos na época. Tem um grau de maldade e comodismo de grandes donos de fazendas nisso tudo: não era puramente econômico. Até por isso, a humanidade foi se afastando da escravidão africana mais por motivos financeiros do que propriamente humanitários. Chegou o ponto onde donos de escravos estavam simplesmente perdendo dinheiro por não pagar salários!

Durante quase todo o processo de escravidão africana, a humanidade já tinha condições de realizar os mesmos trabalhos sem escravizar ninguém. Talvez a sociedade egípcia não funcionasse sem essa mão-de-obra, mas as Américas eram outra história. Por isso, ao mudar essa fato e não trazer africanos para o Novo Mundo, provavelmente conseguiríamos um grau parecido de desenvolvimento apenas com imigrantes que escolheram vir para cá. Talvez até a mecanização agrícola tivesse começado mais rápido e nos dado alguma vantagem na tecnologia atual.

Nessa história, atrasamos o desenvolvimento das Américas, e especialmente o da África: o continente perdeu milhões e milhões de jovens saudáveis e entrou num processo econômico maldito de gerar renda sem precisar desenvolver nenhuma das melhorias das sociedades mais modernas. É uma espécie de maldição do petróleo, mas como gente. Quem sabe o que poderíamos ter visto desenvolvido na África sem o comércio escravagista? Mesmo que eles não tivessem acelerado no ritmo do resto do mundo, a África atual poderia ser algo mais próximo da Ásia, por exemplo. Eventualmente entrando na revolução agrícola e industrial e montando grandes mercados potenciais para serem explorados por capitalistas ao redor do mundo. Tenho certeza que seja como fosse, o continente estaria muito melhor agora. E se você vai falar da parte cultural e econômica, os africanos não precisavam estar nas Américas para isso. Os asiáticos não estavam e hoje em dia tudo quando é jovem escuta música de coreano em equipamentos criados por japoneses fabricados por chineses.

Não, não dava para evitar a colonização, mas no final das contas as Américas e a Ásia até que funcionaram.

Para dizer que esse texto é racista, para dizer que só evitaria o nascimento da música sertaneja, ou mesmo para apontar mil formas como isso poderia dar errado: somir@desfavor.com

SALLY

Se você pudesse mudar um grande marco histórico do passado na intenção de modificar para melhor o futuro da humanidade, qual seria?

A hegemonia da Igreja Católica na idade média. Não é saudável que uma instituição tenha tanto poder e seus atos, principalmente a inquisição, causaram danos irreversíveis à humanidade. Esse poder excessivo matou muitas cabeças pensantes e atrasou o desenvolvimento civilizatório, deixando de herança uma igreja que ainda tem muito mais poder do que seria saudável.

O período de hegemonia do catolicismo na Europa foi um dos períodos mais obscuros da história da humanidade, onde, de uma tacada só, se instituiu a tortura, se usurpou o poder do Estado, se usurpou o poder do “Judiciário”, se destruiu a ciência e se matou em larga escala cabeças pensantes. Para piorar, a religião ganhou poder e dinheiro, que a mantém viva até hoje.

O número de violações a direitos humanos (que à época, sequer existiam) da inquisição é difícil de ser calculado. Foram quatro séculos de barbárie, tortura e mortes. Não morreram apenas aqueles condenados à pena de morte e jogados na fogueira, morreram muitos mais, em decorrência de torturas, de execuções na calada da noite, de envenenamentos furtivos. Além das mortes, muitos se calaram, cessaram suas pesquisas, seus estudos, por medo. Houve morte física e morte da atividade intelectual.

Morreram aqueles que tinham a audácia de questionar ou de querer fazer diferente, ou seja, aqueles que impulsionam o avanço da humanidade. Mas, além das mortes, a inquisição trouxe uma arbitrariedade e um monopólio de poder opressor que talvez sejam a semente de todos os regimes totalitários que vieram depois dela. Tudo que veio depois em matéria de totalitarismo e abuso seguiu mais ou menos o mesmo molde.

É um grande marco de abusos de toda espécie sendo cometidos de forma institucionalizada “por um bem maior”. Essa opressão em larga escala, escancarada e com orgulho abriu portas nefastas na história do mundo, que nunca deveriam ter sido abertas. E, em vez de ser algo violentamente repudiado, é tratado até hoje como, no máximo, um equívoco por parte dos envolvidos.

Como efeitos colaterais, apresentou-se ao mundo a censura institucionalizada como algo válido e rotineiro (não como medida extrema), queimando livros, ameaçando pensamentos, impedindo avanços científicos. Também vimos a normalização das “delações”, muitas vezes obtidas por intimidação ou tortura. Sim, eu sei que tudo isso sempre existiu, mas não dessa forma organizada. A inquisição foi praticamente um manual para todas as ditaduras que existiram no planeta séculos depois.

Também tem um componente social grave: com a Igreja Católica ditando regras, se estabeleceram uma série de preconceitos. Preconceitos étnicos, pela aparência física e por tantos outros fatores. Salvo engano (se estiver errado algum historiador me corrija) foi o primeiro registro de uma lei que discriminava explicitamente pessoas por seus “genes”, por sua ancestralidade.

Foi a semente da qual, posteriormente, brotou o nazismo e outros regimes/pensamento segregacionistas: se estabeleceu a ideia formal e avalizada de que uma pessoa poderia ser inferior à outra ou merecer a morte em função de sua etnia ou de seus antepassados. Esse conceito de pessoas “válidas” e pessoas que não eram “válidas”, como grupo, como etnia, formalizado em “lei” é tão nocivo que deixa rastros até hoje.

Além disso, gerou-se um tremendo desequilíbrio de poder. A igreja católica chegou a ser dona de mais de um terço da Europa, em uma época onde terra significava poder. Arrecadou de forma pacífica ou violenta, legal ou ilegal, uma fortuna que até hoje os sustenta, que foi multiplicada assegurando que eles possam continuar sendo a máfia que ainda são.

Some-se a isso o monopólio da informação, que a igreja guardou para si, mantendo o resto na ignorância. Apenas eles tinham acesso a certos livros, que, à época, eram uma das poucas fontes de informação e era o que possibilitaria avanços, progressos para a humanidade. Não apenas monopolizaram a informação, como estagnaram a evolução científica. Guardaram a informação, a esconderam, a destruíram e não fizeram nada com ela.

Não prejudicou apenas uma raça, uma etnia, um continente. Prejudicou a humanidade como um todo. Poderíamos ter a cura do câncer, poderiam ter teletransporte ou sei lá mais o quê. Impossível saber ao certo o tamanho do estrago que quatro séculos de escuridão causaram, mas é fato de que qualquer pessoa do planeta se beneficiaria com avanços científicos.

A hegemonia da Igreja Católica na idade média atrasou a humanidade em séculos, desde um aborígene na Austrália até um executivo no Japão, a vida de todos poderia ser mais simples, mais longa e mais produtiva se o caminhar da humanidade não tivesse cessado por séculos. Não consigo pensar em mais nada que impacte todas as pessoas do mundo de forma tão contundente.

Quatro séculos é muito tempo. Pensem em quatro séculos de ciência paralisada. Vocês conseguem mensurar o prejuízo que isso gerou para a humanidade? Para facilitar a compreensão da magnitude do que foi feito, vamos fazer o seguinte exercício mental: se a gente pudesse, hoje, acelerar quatro séculos de descobertas científicas, já imaginaram onde estaríamos?

Pois é, isso é o que foi tirado da humanidade. Se você consegue pensar em um prejuízo maior do que quatro séculos de evolução paralisados, que afetam todo o planeta, compartilha aí nos comentários, pois eu não consigo.

Para dizer que não conhece a história o suficiente para opinar, para dizer que ruim mesmo foi ser colonizado por português ou ainda para dizer que o tema de hoje está muito profundo e que volta amanhã: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • Concordo com Somir.
    Não dá pra escolher um ponto específico, mas o que mais torna a escravidão Africana tão presente é a questão da cor. Atrasos econômicos, tecnológicos e culturais poderiam e podem ser compensados com o tempo, mas o negro sempre será relacionado à escravidão.
    “(…) ainda sofre com o estigma de ter a aparência do último povo que foi abertamente escravizado na nossa história.”

  • Nazifascista Satanista Pedófilo

    Pra que queimar livos numa era onde para tirar o acesso a eles, basta tornar o custo dos mesmos proibitivo para as pessoas?

  • Acho q sem essa escravidão q Somir mencionou realmente o mundo seria melhor sem grandes prejuízos . A hegemonia da igreja católica já não sei , pq tem a ver com muito da política e invasões , A influência no territorio greco-romano, idiomas com origens parecidas e consequentemente pensamentos parecidos .o empreendorismo de Jesus que se diferenciou de outros Messias com uma nova mensagem . As andanças de Paulo, filósofos como santo Agostinho e Tomás de Aquino q valorizavam a razão e aproveitaram o q podia dos antigos ensinamentos dos sábios gregos. Um “império” como o do catolicismo não surge do nada e para mim esses anos não foram desperdiçados e talvez tenham sido essenciais para caminhar do racionalismo até o científico.

  • Convenhamos, o ser humano estragaria tudo.

    Se não tivéssemos escravidão negra, provavelmente a servidão dos nativos seria muito mais pesada – ainda que não fosse tratar como coisa; no caso da Idade Média, provavelmente os quatro séculos de paganismo teriam despedaçado a Europa, possibilitando que um islã “evoluído” tomasse o continente pela força.

    Hipóteses, – mas que mostram que dificilmente o mundo seria diferente do que é hoje.

  • ah, e o comercio também…até onde sei, escravos no tempo de Roma não eram jogados ao mar para escapar de flagrantes…

  • Escravidão, disparado. Tanto pelo que houve enquanto pedurou e por seus efeitos até hoje.

    Meu pai dizia que, nos anos 40 e 50 era comum nos cinemas passar trailers com notícias antes dos filmes (!). Numa dessas notícias, contaram como os colonizadores deixavam aldeias rebeldes inteiras passar fome, a ponto de mães trocarem suas crianças para poder se alimentar delas sem (tantos) remorsos…acho que foi em Madagascar ou no Congo Belga que ocorreu isso…

    De qualquer forma, não sei como conseguiam depois ver o filme, comendo pipoca.

    • “Meu pai dizia que, nos anos 40 e 50 era comum nos cinemas passar trailers com notícias antes dos filmes (!).”

      Sim, Suellen. Eram os chamados cinejornais. Numa época em que ainda não havia televisão, era esse o único formato de noticioso áudio-visual disponível. Exemplos desses cinejornais no Brasil são o Canal 100 – que mostrava outras coisas também, mas principalmente futebol com aquela música característica em versão instrumental do “Que bonito é…” – e os mini-documentários do Jan Manzon narrados pelo Luiz Jatobá. No exterior, havia um monte de cinejornais, tais como o British Pathé, o Fox Movietone News e o ” Actualités Françaises “. E, durante a Segunda Guerra Mundial, a população ficava sabendo do andamento dos combates por esses filmetes, devidamente carregados de propaganda ideológica, claro.

      No Youtube tem alguns vídeos do British Pathé. Eis o link: https://www.youtube.com/user/britishpathe?app=desktop

      – Tema do Canal 100: https://www.youtube.com/watch?v=5uCPo6p97Pw

      – Exemplos de filmes do Jean Manzon: https://www.youtube.com/watch?v=xf3HHoFksFQ&list=PLerYHdJ9yiyoLOZB4GPe4IPZdjkFngNBE

  • É tanta cagada histórica que não tem como descagar, mas entre essas 2 aí a pior foi a escravidão. Hoje em dia a igreja já era, mas a consequência de ter escravizado um povo vai ser eterna. Atraso financeiro gerou criminalidade que temos até hoje e fora a escrotice de racismo e cotas que também vem por causa disso.

  • Fico com o Sumir nessa. Alterando a escravidão africana e dando uma chance dos africanos se desenvolverem, provavelmente compensaria o atraso da religião e o monopólio do dinheiro.

  • Não foi a Igreja que falou que negros não têm alma e por isso podia escravizar de boas? Me corrijam se eu tiver errado. Por enquanto concordo com a Sally, pois foi a Igreja que contribuiu pra escravidão negra ser aceitável e certamente retardou qualquer movimento abolicionista.

  • Sem Igreja Católica, seríamos muçulmanos vivendo em uma Europa destruída. Sem escravidão africana, acho improvável que D. João VI viesse morar no Brasil. Provavelmente, iria para Angola, Moçambique ou Cabo Verde para fugir de Napoleão.

    Eu mudaria o resultado de Brasil X Itália em 1982 e apagaria da história esse futebol retranqueiro do Tite, Abel e companhia.

    • “Eu mudaria o resultado de Brasil X Itália em 1982 e apagaria da história esse futebol retranqueiro do Tite, Abel e companhia.”

      Gostei dessa, Satori.

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