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Relatos do Covid-19

Relatos do Covid-19

| Desfavor | | 11 comentários em Relatos do Covid-19

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Relatos do Covid-19

Já que Sally deu uma da Carmen San Diego e se refugiou em algum lugar sério e civilizado, segue um relato do que tenho lido, visto e ouvido sobre a Covid-19 desde 14 de março, quando começou a quarentena para muitos de nós aqui em São Paulo.

Disclaimer: não sou profissional da saúde. Apenas calhei de conhecer diversos profissionais, aqui e no exterior, por circunstâncias pessoais e profissionais. Esse relato é uma coletânea das informações que tenho recebido desde março dessas pessoas. Dada a velocidade das informações, muita coisa já deve ser de conhecimento de todos.

Enfermeira em um Hospital Público de São Paulo

Tem trabalhado em turnos de 24h, no mínimo, desde que dezenas de colegas e médicos do hospital caíram doentes. Por um lado, culpa alguns médicos e enfermeiros por suas próprias contaminações, em virtude do descaso com a própria proteção, que os levaram a se contaminar, desfalcando a equipe que já estava com poucas pessoas. Por outro, mesmo ganhando pouco, paga do próprio bolso os equipamentos, uma vez que recebe uma máscara para o dia todo e um avental que é tão grosso quanto uma capa de chuva descartável, daquelas baratinhas que são vendidas em estádios.

Teme ter sido contaminada pelos pacientes que cuidou, que chegam em números cada vez mais crescentes da periferia, e teme contaminar a filha de quatro anos, uma vez que o marido, também enfermeiro no mesmo hospital, traz a criança de carro para encontrá-la na troca de turnos, uma vez que nenhum parente quer cuidar de uma criança cujos pais estão continuamente na linha de frente. Recebe bilhetes anônimos pedindo para que ele e a família não usem o elevador ou se mudem do prédio.

Foi avisado que, em 15 de maio, o Governo do Estado iria testar os profissionais de saúde. Policiais e seus familiares já estariam sendo testados. Não sabe se será o teste de sangue ou retirada de amostra do nariz.

Infectologista em hospital público no interior

Avisou um dia antes do anúncio de ontem que hospitais de Campinas e de Jundiaí serão os primeiros a receber pacientes da Grande São Paulo, mesmo sem ter certeza de que poderão ceder leitos no curto prazo. Disse que um dos principais perigos de contaminação está nos perdigotos de quem costuma falar alto, sobretudo quando o uso da máscara ainda não está disseminada. Sugeriu assistir um documentário da NHK para ter noção dos perigos das gotículas (assistam trecho dele abaixo. Por sorte, tinha em inglês).

Disse também que houve um mal entendido em relação à doença. Ela não mata por alguma deficiência da imunidade. Pelo contrário, é pelo excesso da reação das defesas do corpo de qualquer um, que mata quem é do grupo de risco por conta da saúde frágil que não agüenta a carga imunológica excessiva. Daí o aparente sucesso de medicamentos supressores para quem sofre de lupus e de moduladores.

Médico do Hospital das Clínicas

Disse que o HC pode dobrar a UTI de 100 para 200, 250 leitos de imediato. O problema é a falta de pessoal especializado, uma vez que o salário é ridiculamente baixo, tendo em vista que o recurso vem de uma fundação. Enquanto isso, hospitais privados de ponta estão com ociosidade beirando os 90%. Entretanto, até o momento, esses hospitais privados acham mais barato ajudar a montar hospitais de campanha do que ceder ao Estado suas vagas de UTI para Covid-19 e eventualmente outras vagas de outras doenças que poderiam ser voltadas para a pandemia. Desconfia que, dada a ociosidade nesses hospitais de ponta, uma vez que a classe média e média alta pode se dar ao luxo de obedecer a quarentena, o paciente que eventualmente for internado seguirá para a UTI mesmo sem necessidade, a fim de maximizar a receita…

Relatou que nem os estudantes de medicina respeitam o distanciamento social. Ficam juntinhos, sem máscara e trocando perdigotos. Colegas infectologistas o informaram que até que surja uma vacina, a curva pode até ser achatada nesse primeiro momento, mas seguirá quicando. A questão é se vai quicar mais alto ou mais baixo, a depender da consciência da população. Disse que o maior perigo de contágio está na hora de tirar a máscara, da insistência em ajustá-la ao longo do dia.

Enfermeiro em UBS na Zona Sul de São Paulo

Relata que, na região da sua UBS, famílias inteiras estão sendo dizimadas, casa a casa, nas periferias. Recentemente, caiu vítima da falta de critério na aplicação de exames. Chegou no pronto socorro, com indícios de Covid-19, e foi apurada baixa saturação de oxigênio (86%). Contudo, como o teste deu negativo, foi mandado para casa. Voltou depois, e teve que ser internado. Ao receber alta, soube dos colegas que a qualidade do teste era ruim. Houve muito mais pessoas que, como ela, foram testados negativos num dia, para, nos dias seguintes, voltar para ser entubado, contaminando familiares e amigos nesse meio tempo. Posteriormente, o protocolo foi modificado e pessoas com baixa saturação de oxigênio não foram mais liberados dessa forma…

Pediatra da família

Agradeceu a quarentena imposta pelo Doria, pois acabou com o surto costumeiro de influenza que assolam as escolas tradicionalmente nessa época do ano, o que teria exacerbado ainda mais o problema. Afirmou que colegas médicos desconfiam que a combinação influenza-corona seriam o prego no caixão para pessoas até então saudáveis, fora do grupo de risco, e que fazem também uso de corticóides no tratamento do Covid-19 para evitar infecções oportunistas.

Dono de mercado na Liberdade.

Dono de mercado no bairro da Liberdade aqui em São Paulo viajou para o Nordeste para passar férias com a família. Além de muito provavelmente contaminar familiares que foram juntos, contaminou funcionários e talvez clientes. Uma das funcionárias é mãe de dois conhecidos meus, e foi para direto para a UTI. Em relação a clientes, não dá para saber quantos foram contaminados e, a partir destes primeiros, quantos outros mais teriam sido contaminados, uma vez que o mercado fica na boca do metrô Liberdade e próximo à praça da Sé, local de encontro de duas linhas de metrô que ligam a cidade de norte a sul e leste a oeste. O restaurante ao lado fechou as portas.

Enfermeiro em hospital público no extremo da zona leste (região mais pobre da cidade)

Disse que a moral dos médicos e dos enfermeiros está caindo a cada caso de colega contaminado, e que muitos médicos e enfermeiros cogitam largar a carreira, sobretudo os enfermeiros. “Uns cogitam prestar outros concursos públicos ou mesmo ir trabalhar em qualquer outra coisa, pelo que ganham para enfrentar o perigo”, afirmou.

No hospital em que trabalha, tem presenciado às seguintes situações de pessoas que demoraram para ir ao hospital quando começaram a sentir falta de ar:

(a) Em muitas, o pulmão virou um bloco de concreto e aí ficava difícil esperar que o respirador desse jeito em um órgão que perdeu praticamente a capacidade de se expandir
(b) Pode ocorrer que a anatomia da sua garganta possa dificultar ou mesmo impedir a entubação. Um médico de 31 anos desse hospital morreu justamente por conta dessa impossibilidade. Nem mesmo os profissionais mais experientes conseguiam entubá-lo e, antes que cogitassem outras alternativas, o coração parou de bater…

Colega de trabalho acometido pelo Covid-19

Classe média-alta, contra isolamento, mais preocupado com a economia, ele e outro punhado de colegas optaram por continuar a ir trabalhar, sem máscara. Isso porque acharam que quem optou pelo teletrabalho ficaria impedido de mudar as férias que fossem consumidas pela quarentena (na verdade, isso se aplica a todos). Três semanas depois, começou a ter os sintomas da Covid-19, mas relutou em ir ao hospital. Taquei o terror no infeliz citando os exemplos do parágrafo anterior do que poderia acontecer com ele caso continuasse a ficar enrolando.

Chegou no hospital e exames mostraram que 60% do pulmão já havia sido tomado e saturação de oxigênio caindo. Foi direto para a UTI. Recebeu um coquetel de remédios com a tal da cloroquina, combinado com corticóides para evitar as infecções.

Presenciou a falta de funcionários no hospital, ao ver gente novata sendo treinada para trocar o pneu do carro andando. Resultado: soube que um ou outro novato acabou contaminado, levando junto o profissional que o treinara. Também viu pessoas prometidas para alta piorarem o estado e seguirem internadas. Assim como gente morrendo do nada.

Passou 10 dias na UTI e mais alguns dias no quarto. Ainda está ofegante. A infectologista do hospital em que ficou internado (de ponta) admitiu que não conseguiram ainda firmar um protocolo e que cada médico está usando medicação no empirismo. Uma médica conhecida nossa que está na Europa confirmou essa situação por lá.

Pelo menos um dos outros colegas que, com ele, seguiram trabalhando pessoamente, pegaram a Covid-19, mas, por serem jovens, não tiveram maiores problemas e se recuperaram rapidamente.

Médico infectado no começo de março

Médico conhecido nosso, intensivista (que trabalha em UTI), foi internado antes do Carnaval com Covid-19 quando atendia em seu hospital pacientes idosos, enviados pelo plano de saúde especializado neles (e em cujo hospital, uma enfermeira de 34 anos teria morrido de Covid-19 no começo da pandemia, de acordo com mensagens recebidas de grupos de médicos). Já em fevereiro, notara que esses idosos começaram a morrer sucessivamente de problemas respiratórios. Quando ligou os pontos, caiu doente. Está com uma enorme dor de consciência, por ter participado de uma festa na escola dos filhos, e teme ter contaminado pais e avós dos coleguinhas.

Disse que o infectologista que o atendeu o informou que chega a ser uma loteria quem pega ou não. Na própria família desse médico, além dele, a esposa e os dois filhos menores se contaminaram, mas a filha mais velha segue com exames dando negativo. Logo farão nova rodada de testes.

30 de abril de 2020.

Sigo em contato com essas pessoas. Com exceção do dono do mercado, todas seguem vivas. Outras podem não estar, pois cogitaram suicidar-se.

Por: Suellen

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