A vida ensina?

A semana promete, então, antes disso, vamos parar para pensar um pouco.

Tema de hoje: a vida ensina?

SOMIR

Não. Casualidade não significa causalidade, ou, em termos mais simples: não é só porque o evento A aconteceu depois do evento B que o evento B foi causado pelo evento A. Sim, vamos acumulando algum conhecimento durante a vida, mas isso é muito mais resultado da sua capacidade pessoal de aprender do que uma inevitabilidade da passagem dos anos.

Eu entendo o ângulo que a Sally vai seguir, mas eu discuto a premissa que sustenta essa expressão: o acúmulo de experiências só gera aprendizado se você estiver agindo diretamente para se desenvolver. Se a vida ensinasse, era de se esperar que vivêssemos num mundo onde a grande maioria das pessoas não continuasse cometendo os mesmos erros dia após dia, ano após ano. O que claramente não é o caso.

A realidade é baseada nas leis da física e suas interações praticamente impossíveis de acompanhar, num universo onde cada célula do seu corpo é composta de quatrilhões de átomos, a complexidade que rege o ser humano é tamanha que quase tudo parece caótico, imprevisível. As pessoas escolhem diversos caminhos para lidar com essa complexidade primordial, e um dos mais comuns é abafar a confusão com crenças sobrenaturais. O misticismo humano é basicamente uma viseira para manter nossa mente sob controle.

Não é a única forma de lidar com a realidade, mas com certeza é uma das mais populares, afinal, nivelar por baixo permite que a maioria de nós consiga levar uma vida minimamente funcional sem um grande investimento em desenvolvimento do intelecto. E nem é uma crítica nesse contexto: ninguém é obrigado a fazer o mais difícil se o mais fácil gera os resultados desejados.

O ponto aqui é que a afirmação que a vida ensina presume que as pessoas aprendem. Se a vida ensinasse, não estaríamos vivendo num mundo onde os jovens precisam se rebelar contra os mais velhos constantemente, e onde esses jovens fatalmente envelheçam no poder e precisem ser confrontados novamente pelas próximas gerações. Embora possamos identificar uma evolução constante na mentalidade e nos padrões de vida da humanidade com o passar dos milênios e séculos, não é como se esses avanços fossem causados por uma maioria, e com certeza não no tempo de uma vida.

Quase sempre quando estamos falando de evolução, estamos falando de uma minoria que vai buscar o aprendizado de forma direta e consciente, não esperando as coisas caírem no seu colo. O aprendizado não é passivo. A vida quer que você se reproduza antes de morrer, o resto é resto. Até porque nem faria sentido esperar algo diferente: nossas vidas costumam ser bem diferentes até mesmo dentro de grupos mais homogêneos.

Nem sempre a provação vem para quem está preparado, na verdade, quase nunca funciona assim. Nunca fui fã daquela frase de que “deus dá o cobertor conforme o frio” nem de suas variações. O que não falta por aí é gente com frio ao lado de gente que nem sabe mais o que fazer com seus cobertores. Cobras aladas então… é bobagem esperar alguma ordem consistente com a mentalidade humana no universo. A entropia não liga para os seus sentimentos.

A vida ensina quem tem condição de aprender, numa combinação rara de dificuldade tolerável e habilidade de lidar com o problema. Nesse contexto, dizer que a vida ensina é generalizar o todo pela parte. É mais ou menos como dizer que “a loteria enriquece”: sim, enriquece quem tem o número premiado. Não tire a conclusão que a loteria enriquece todo mundo que aposta da mesma forma que não tire a conclusão que a vida ensina todo mundo que sofre. Ainda bem que o componente da sorte não é tão essencial para o aprendizado, porque isso te permite mais controle sobre o resultado.

Se você conseguir colocar na cabeça que tem que aprender com cada dificuldade e agir de acordo, aí sim a vida pode te ensinar muito. Senão, você só tenta sobreviver à pancada e torce para não cair no mesmo buraco de novo. O que infelizmente é o padrão. Vai dizer que nunca viu uma pessoa que parece fazer a mesma bobagem seguidas vezes? Ou, talvez você tenha essa experiência na sua própria vida. Quanta gente não está esperando que a vida ensine, e nada dela ensinar?

Sei que a Sally não está dizendo para rezar e esperar as coisas caírem do céu, mas só jogar a ideia que a vida ensina na cabeça alheia fatalmente vai gerar essa visão das coisas. A complexidade da realidade e a constante sensação que as coisas são injustas tendem a empurrar muita gente para um caminho de misticismo passivo: esperando que o universo gere ordem ao seu redor para encontrar seu caminho. Essa ordem não vai chegar.

É visível no mundo ao nosso redor: a maioria das lições são ignoradas por gente que não as entende ou as rejeita. Até porque só são lições para quem está disposto e atento. Muita coisa vai passar batida até mesmo para quem se considera muito inteligente e interessado nesse aprendizado. Novamente, complexidade: acontecem tantas coisas ao nosso redor que muitas vezes é questão de sorte você estar olhando para a certa na hora certa. Quem espera a vida ensinar pode simplesmente não perceber as oportunidades.

Por isso que o ideal é considerar que a vida não ensina nada, que é problema nosso correr atrás de conhecimento e evolução, e se a realidade ao nosso redor se apresentar de uma forma que facilite esse aprendizado, é um bônus. Nada substitui a busca pelo aprendizado, seja em livros, seja em conversas… a vida é um complemento para quem quer aprender. E digo mais: muitos dos maiores avanços da humanidade são resultado de gente teimando contra as regras da natureza e da sociedade. Estudiosos e “malucos” que viram como a vida se apresenta e resolveram fazer diferente.

Então, por mais que eu concorde que a experiência de vida seja valiosa, ela definitivamente não é a força essencial para o aprendizado. Só aprende quem quer, se tiver a capacidade. Desenvolva-se por vontade própria, não espere um universo caótico te dar uma chance.

Para dizer que é muita filosofia para um feriado, para dizer que vai ler o da Sally para entender do que estamos falando, ou mesmo para dizer que a vida te ensinou a não esperar nada de ninguém: somir@desfavor.com

SALLY

A vida ensina?

Sim. E não estamos falando da cadela gigante, agressiva e assassina do Somir. A vida de fato ensina lições, seja pelo amor, seja pela dor. Não tem quem passe por ela sem aprender algumas coisas.

Quando eu concordo que a vida ensina, não se trata de nada místico, karmico ou sobrenatural. É quase que matemática: pela lei da probabilidade, quanto mais merda uma pessoa faz, maiores as chances de um dia alguém se emputecer e resolver acertar as contas. Da mesma forma, quanto mais pessoas você ajuda, maiores são as chances de um dia essas pessoas te estenderem a mão.

É o clássico “quem planta merda colhe bosta” dito de uma forma um pouco mais educada. O que você dá, você recebe, ainda que não seja tão imediato e tão simples, ainda que seja por vias transversas, ainda que demore. E sim, isso ensina. Mesmo a pessoa mais cabeça dura aprende alguma coisa se levar umas belas porradas ou um grande afago da vida.

Obviamente existem graus de aprendizado. Há pessoas que tem uma capacidade de aprendizado maior enquanto outras tem uma capacidade de aprendizado menor. Mas ninguém fica indiferente às consequências de suas escolhas. Algum aprendizado sempre sai. Até hamster aprende a não mexer em um pedacinho de queijo quando ele está eletrificado.

Se o ser humano não aprendesse com as experiências, não teria chegado até aqui, evolutivamente falando. Somos basicamente um compilado de aprendizados: aquele que viu o coleguinha ser morto por um tigre dente de sabre que pulou de uma moita recebe a informação de que uma moita que se mexe pode ser perigosa.

Se ele aprendeu, se ele colocou essa informação em prática e passou a ser prudente quando uma moita se mexia, provavelmente sobreviveu para passar os genes adiante. Não estamos aqui ao acaso, chegaram os mais aptos, os que aprenderam mais observando seu entorno e colocando em uso essa informação.

Mesmo quando a gente não percebe que está aprendendo, está aprendendo. Nosso cérebro pode não conseguir focar em tudo ao mesmo tempo, mas nosso inconsciente está ligado e percebe coisas que às vezes o consciente não se dá conta. Você sabe, mas você não sabe que sabe e não tem a menor ideia de como aquela informação chegou até você. Mas ela está lá.

E o que cada um de nós decide fazer com essa informação que o cérebro assimilou diz se houve aprendizado. Quando usamos a informação adquirida e armazenada em nosso cérebro para fazer escolhas melhores, é sinal de que aprendemos com ela. Quando ignoramos e continuamos apenas dando vazão aos nossos desejos, sem pensar no nosso bem-estar, não há aprendizado, há apenas um pequeno ego tentando se satisfazer e, spoiler, geralmente acaba mal.

Uma criança enfiaria o dedo em uma tomada, um adulto não. Uma criança colocaria a mão no fogo, um adulto não. Por mais que você não tenha levado um choque ou se queimado, suas vivências te provaram por A + B que são coisas perigosas e que não devem ser feitas. Por mais que você tenha vontade de colocar a mão no fogo, você sabe que não compensa, pois vai gerar muita dor e uma queimadura que vai demorar para cicatrizar.

Seu cérebro só tem um trabalho: sua sobrevivência. E para isso, acredite, ele armazena e processa cada pequeno ensinamento da vida e diariamente recalcula a relação custo-benefício do que você faz. Cabe a você usar essas informações com sabedoria. Se não usar, vai sofrer, vai viver mal, vai ter mal-estar. Uma hora a pessoa cansa dessa vida de merda e começa a usar, ao menos algumas dessas informações, para viver melhor.

Você pode argumentar que conhece muitas pessoas que quebraram a cara muitas vezes e continuam fazendo as mesmas besteiras. Sim, são os chamados “idiotas”, pessoas com baixa capacidade de aprendizado. Pessoas que fazem algo que é nocivo para elas mesmas em busca de um prazer imediato, passam maus bocados por isso e, mesmo assim, depois vão e repetem a mesma conduta nociva over anda over. Meus queridos, a vida ensina. Se a pessoa está disposta ou não a aprender, é outra história.

E mesmo essas pessoas que a gente acha que não aprendem nada nunca, em algum momento cansam de tanta danação na vida, viram uma chavinha e aprendem algo. Eu não disse que a vida ensinava tudo e corrigia 100% as pessoas, a vida ensina sim, mas dentro da capacidade de aprendizado de cada um. E, acreditem, todo mundo aprende alguma coisa, por mais idiota que a pessoa pareça.

A tendência é que, um dia, a pessoa canse de sofrer, de se enganar que está tudo bem, de se foder, de viver em meio a uma bagunça interna e/ou externa. Uma hora a pessoa finalmente percebe que tem que utilizar melhor essas informações que seu cérebro teve o maior trabalho para armazenar e compilar. Em algum momento vira uma chavinha que faz a pessoa perceber que tem que fazer escolhas melhores. Ao menos algumas. E aí… bingo. Aprendizado.

A vida ensina sim, garanto que cada um de vocês pode contar ao menos uma experiência onde fez uma escolha errada e veio uma consequência que os fez entender que aquele não era o melhor caminho e, por escolha própria, nunca mais repetiram o equívoco. A vida ensina diariamente, cabe a nós colocar em prática o que aprendemos ou continuar vivendo com uma âncora amarrada no tornozelo, nos puxando para o fundo o tempo todo.

A vida ensina. O tanto de tempo que cada um leva para aprender ou executar o aprendido é que varia. Quanto menos se luta contra esse aprendizado e mais rápido se entende o que é benéfico e se coloca em prática, melhor se vive. Quanto mais a pessoa resiste e insiste em fazer o que ela quer, em vez de observar o que é bom para ela, mais se sofre, se quebra a cara e se vive se forma sacrificada.

O segredo da felicidade e do bem-estar não dedicar a sua vida a fazer o que você quer. Fazer o que quer é coisa de criança mimada, nosso querer é falho e contaminado. Para uma vida saudável é preciso aceitar o aprendizado e fazer o que é bom para você, e isso nem sempre bate com o que a gente quer.

Se sua vida está um suplício, você provavelmente está se recusando a aprender algumas lições que a vida está te mostrando. Pare, respire fundo e observe o que tem para aprender aí. Aprenda e coloque em prática, não seja um idiota.

Para dizer que sua ideia (errada) de felicidade é poder fazer tudo que você quer, para dizer que o Alicate não aprende ou ainda para questionar se aprender é deter a informação ou colocá-la em prática: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • Estamos vendo esse filme agora, Sally.
    Pandemia com milhões de casos e mortos.
    -Expectativa: as pessoas vão se unir e valorizar mais o que é essencial
    -Realidade: assim que lojas de marca reabriram parcialmente, filas e filas de pessoas, gente perdendo tempo com futilidades na internet, pais não conseguindo lidar com os próprios filhos em casa

    • Você acha que todas as pessoas vão sair exatamente iguais ao que entraram nessa pandemia?
      Eu concordo que a maioria vai continuar fútil em essência, como eu disse, o aprendizado tem níveis, mas algo com certeza vão aprender.

  • “Vai dizer que nunca viu uma pessoa que parece fazer a mesma bobagem seguidas vezes? Ou, talvez você tenha essa experiência na sua própria vida. Quanta gente não está esperando que a vida ensine, e nada dela ensinar?”

    Somir, creio que tem muita gente por aí que não está “esperando que a vida ensine”, simplesmente porque é tapada demais para sequer desconfiar de que haja algo para aprender a cada experiência. Anos atrás, havia um colega de trabalho do meu pai que vivia chorando as pitangas toda vez que – rotineiramente – se dava mal ou era passado para trás por alguém. A esse queixume todo, meu pai respondia repetidas vezes, sempre com ironia: “você precisa fazer um ‘curso de ficar esperto'”. Um dia, depois de ter se fodido mais do que de costume, esse sujeito, que era preocupantemente ingênuo e entendia tudo ao pé da letra, perguntou para o meu pai onde era esse “curso de ficar esperto”. Ah, e eu também tenho alguns parentes que “fazem a mesma bobagem seguidas vezes”. Resumindo: a vida ensina sim. Só que nem todo mundo tem a capacidade para aprender – ou ainda para conseguir perceber que há uma lição em tudo que nos acontece. Dentre esses meus parentes mesmo, estão todos tomando diariamente na tarraqueta, mas nenhum ainda “virou a chavinha” da forma como a Sally mencionou no texto dela.

  • Poxa, mas é claro que a vida ensina! Em tempos de pandemia mesmo, será que vamos sair dessa sem ter aprendido nada? Duvido muito, e se continuarmos os mesmos que antes, acho que estamos fazendo algo muito errado!

  • Sugiro lerem a reflexão “A Vida”, atribuída a Bert Hellinger, sobre o quanto a vida ensina. Um dos textos mais lindos dos que já foram lidos até aqui.

  • Rapaz, o que tem de pessoa usando as experiências de vida pra ser bruta, babaca, mal educada, agressiva ou mesmo criminosa… Parece que foram programadas apenas pra consumir recursos e infernizar os outros, pqp.

  • Tem gente que passa por todo tipo de coisa na vida e continua sendo um lixo e fazendo/defendendo o errado.
    Aliás, usa as merdas que passou na vida pra justificar sua personalidade lixo, e com a quantidade de personagens na ficção que entram nesse estereótipo, é algo relativamente aceito. Sofreu bullying? Vai bullyinar outras crianças na escola nova, ou mesmo empregados na vida adulta. Teve uma família merda? Vai tentar (ou militar pra) destruir a família dos outros. Alguma ideia (planos, política etc.) não deu certo? Vai continuar tentando o mesmo plano ou votando nas mesmas merdas por ilusão que um dia vai.
    Esse negócio de aprender com o tempo (e o sofrimento) só funciona em novela na maior parte das vezes. O orgulho fala mais alto.

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