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Apatia epidêmica.

Apatia epidêmica.

| Desfavor | | 24 comentários em Apatia epidêmica.

Enquanto o país enfrenta um novo aumento de número de casos e mortes da Covid, o Amapá volta a ficar sem luz e um negro é espancado até a morte num supermercado, o brasileiro parece num estado de suspensão, confuso ou talvez pior… desinteressado. Desfavor da Semana.

SALLY

Está acontecendo tanta coisa bizarra no Brasil que foi difícil escolher o tema de hoje. Mas, conseguimos um denominador comum: a indiferença do brasileiro é um sintoma claro da danação que está por vir.

Há décadas se sabe que vírus respiratórios podem ter uma segunda onda mais mortal do que a primeira e os países europeus já experimentam na prática essa realidade. Em algumas cidades brasileiras o aumento no número de internações e mortes já dão um indício de que é hora de tomar mais cuidados. Mas a indiferença do brasileiro continua. Deixa a vida me levar, vida leva eu…

Ainda falta luz no Amapá, mais de dez dias sem energia elétrica. Nem país vítima de terremoto e furacão passa por uma coisa dessas. O governo não fiscalizou a empresa responsável pela prestação de serviços e deixou que uma falha na manutenção causasse esse estrago. Também não parece dar sinais de que vai punir de forma exemplar o que aconteceu. As eleições tiveram que ser adiadas, tem gente alugando tomada para que pessoas possam carregar seus telefones e não fiquem incomunicáveis.

Uma pessoa foi espancada até a morte por seguranças do supermercado Carrefour, enquanto a namorada de um dos seguranças filmava tudo e o vídeo foi parar na internet. O que brasileiro fez? Xingou muito em rede social e alguns foram até o local depredar o supermercado, uma bagunça que será limpa pelo pessoal da limpeza e não gera danos significativos, uma vez que o supermercado tem seguro.

Se for conveniente, se for barato, se for perto de casa, continuarão comprando no Carrefour. Mas as pessoas se distraem com coisas ineficientes para ter a falsa sensação de que estão fazendo alguma coisa, quando na verdade não estão fazendo nada. Repassam teorias da conspiração sobre covid, xingam no Twitter, picham supermercado. Tudo isso é perda de tempo e energia, é inutilidade, é uma modalidade bizarra de inércia ativa.

O brasileiro está indiferente, anestesiado, resignado. É um processo que vem de muito tempo e que já foi tema de várias postagens aqui no Desfavor, mas que agora chama a atenção por outro motivo: o país está chegando a um grau tão nocivo de tolerância com o que é escroto e errado que está começando um processo de implosão. É como se estivessem colocando peso demais em uma prateleira e ela começa a envergar, estalar e dar sinais de que vai arrebentar.

Existe um limite do que um país ou um povo pode aturar antes de um colapso e eu suponho que o Brasil está entrando na reta final que antecede o colapso. E isso não é de todo ruim, pois o colapso faz tudo desmoronar e dá espaço para surgir algo novo, melhor. O que é ruim é que o brasileiro não seja protagonista de porra nenhuma, esteja sendo levado pela maré, ao acaso. Quem se planeja tem futuro, quem não se planeja tem destino.

Há algo coletivo acontecendo no Brasil, que quem está no país parece ter muita dificuldade em enxergar. Uma cegueira, uma paralisia, uma perda de parâmetros do que é aceitável. O brasileiro desistiu, simples assim. Parece ter gastado toda sua energia e atenção com imbecilidades conspiratórias e agora está catatônico, no melhor estilo piripaque do Chaves, não conseguindo ou se recusando a ver, perceber e reagir à realidade que se apresenta.

É como ver um acidente de carro em câmera lenta. Para quem vê de fora, para quem não está contaminado por esse processo de normalização do absurdo, é agoniante. Parece ter dado um overload na mente do brasileiro, provavelmente pelo excesso de estímulo, pela imbecilidade de ficar consumindo tudo quanto é notícia sem credibilidade, que desliga o disjuntor do cérebro. Já falamos sobre isso aqui: um cérebro exposto a muita informação ou ameaças colapsa e perde o discernimento.

O problema é: a realidade não se importa com o que as pessoas pensam, acham ou divulgam. A realidade passa por cima, atropela e se faz presente, com maior ou menor intensidade, dependendo do grau de negação. Pessoas muito negadoras precisarão de uma dose violentíssima de realidade para sair dessa anestesia. E terão. Quando se fica na inércia, a vida cedo ou tarde te manda um recadinho, nem sempre carinhoso, e te puxa de volta.

E quanto maior a inércia e a negação, mais contundente o recadinho. Estamos no silêncio que precede a tempestade. Obviamente não estamos falando de algo de um dia para o outro, grandes rupturas são processos que não são medidos em dias, mas o start foi dado. Em algum momento vai acontecer algo significativo que impacte o brasileiro de forma contundente e, de dois um: ou ele mesmo rompe com essa inércia cagada ou é tirado dela na base de muita dor e sofrimento.

Repito: o resultado final vai ser feliz, vai ser bom. É desejável romper com o que não está funcionando para que algo melhor entre no seu lugar. Mas seria muito melhor fazê-lo por escolha, no amor e não na dor. Mas o brasileiro se tornou esse zumbi que apenas xinga muito em rede social, vai ter que levar um tiro de escopeta no meio da bunda para começar a se mexer.

Nestes 12 anos de Desfavor já fizemos dezenas de previsões de rupturas desde seu início, quando ninguém nem as cogitava: a queda do PT, a eleição do Bolsonaro, as mudanças profundas provocadas pela pandemia e muitas outras. E em todas fomos desacreditados e ridicularizados por muitos. Mas acertamos. Então, acho que vale, no mínimo uma reflexão: tem uma tempestade se formando no Brasil e o brasileiro em vez de construir um abrigo, está inerte.

E, por todo mundo estar inerte, todo mundo continua inerte, afinal, pela lógica do bando que rege países pouco civilizados, se tivesse algo grave acontecendo seria possível visualizar isso no comportamento dos demais. Só que não. O brasileiro é aquele que não bota o colete salva-vidas quando embarca no Bateau Mouche pois mais ninguém o está usando e seria ridículo ser o único a se preocupar com isso. Se mais ninguém está usando, não deve ser necessário. E quando o barco vira, morre afogado junto com todos os demais.

Hoje os brasileiros são Lêmingues suicidas, rumando todos juntos para um precipício e achando que não pega nada, pois se fosse perigoso, não teria tanta gente indo nessa direção. E certamente a maior parte das pessoas que está lendo este texto vai achar um tremendo alarmismo e exagero, por sinal, como vêm desacreditando todos os que tentam dar algum tipo de alerta nesse sentido. É o comportamento padrão de quem está anestesiado e não quer acordar: desacreditar o que lhe desagrada e se distrair com imbecilidades não comprovadas.

“Mas Sally, estou cercada de pessoas assim, não tenho o que fazer, não posso salvar o mundo”. Tem o que fazer sim. Esteja consciente do que está acontecendo. Consciência, pé no chão, um olhar para a verdade faz toda a diferença na hora de passar por esse furacão que se aproxima. Esse é seu abrigo, essa é a saída para não virar saco de pancada da vida: não precisar de um tiro de escopeta na bunda para entender a realidade.

Só pessoas conscientes e despertas vão sobreviver bem a isso. Deixa os zumbis da tarja preta se debatendo quando a tempestade começar, você cuide de sua mente e mantenha-se centrado. Isso não é pouca coisa, isso é muito. Isso é a diferença entre uma vida merda versus sanidade mental. E dá muito trabalho. Não dá tempo de ficar lendo teorias da conspiração, de ficar stalkeando ex, de ficar preocupado com a vida alheia. Tenham foco.

A intenção não é assustar nem desesperar ninguém. É um processo normal o que vai acontecer e, como já cansamos de repetir, é benéfico. Mas para que você se beneficie dele e não seja varrido junto com todo o lixo que vai embora, é preciso que esteja consciente, com o foco no que é importante e real, com a mente centrada. Não se perca. Não seja levado pelos zumbis que o tempo todo te convidam a se distrair, a olhar para o irrelevante, a perder tempo discutindo teorias da conspiração. Finque os dois pés no chão e não deixe que ninguém te desequilibre. Muitos vão tentar. Cabe a você não permitir.

E, acima de tudo, tenha consciência do processo que está acontecendo. A inércia excessiva gera mudanças na porrada. Elas virão. Não esteja na inércia e você não precisará levar porrada para sair dela.

Para dizer que eu sou alarmista, para dizer que não consegue ver nada pois está soterrado na inércia e negação dos que te cercam ou ainda para dizer que sabe que algo grande vai acontecer para tirar o brasileiro da inércia mas prefere não pensar nisso: sally@desfavor.com

SOMIR

Talvez exista uma expressão melhor para definir isso, mas existe algo como um “espírito das ruas” num país. Não é algo que a maioria das pessoas exprime explicitamente, é mais como se fosse um sentimento coletivo. Por mais diferentes que sejam nossas vidas, há uma experiência compartilhada por quem vive próximo sob um mesmo sistema político e uma mesma cultura.

E por mais que gostemos de acreditar que nossos pensamentos nos tornem únicos, num dia quente quase todos pensamos em sorvete e piscina, num feriado quase todos queremos descansar, numa guerra quase todos temos medo de morrer… o espírito das ruas é uma evolução disso: é a soma dos acontecimentos dos últimos meses e anos no estado mental das pessoas modificado pela cultura de cada população.

O brasileiro, como todo povo, tem suas peculiaridades: talvez o espírito de um povo indígena abençoado por uma terra que não lhes deixava faltar nada e o dos conquistadores maravilhados pela fartura natural tenha criado um impacto na mentalidade do brasileiro que dura até hoje. Um senso de segurança sobre a terra, a certeza de que tudo passará não importa o que as pessoas fizerem a cada momento. Do outro lado de cada crise, a nossa terra proverá para os que resistirem.

O que o terceiro grupo que forma nossa população deveria desmentir: os escravos africanos não viram, nem no passado e nem no presente, essa fartura toda. Mas por serem forçados a vir até aqui e historicamente serem ignorados na construção do país a não ser como mão de obra, há também um senso de terra de ninguém que trazem para a mesa. Com o tempo essas duas visões vão se juntando, por mais paradoxais que possam parecer, para formar a base do espírito das ruas moderno.

Um povo que ao mesmo tempo sente-se seguro demais sobre a capacidade da sua terra prover e não consegue realmente se sentir dono dela. É como se o Brasil fosse um meio e não um fim. E com essa explicação toda, podemos voltar ao espírito da rua: 2020 não foi um ano fácil para ninguém, a pandemia chacoalhou muitas das nossas certezas e conseguiu gerar muitas divisões num mundo que já vinha num processo de radicalização ideológica há algumas décadas. O corpo humano não é feito para ficar o tempo todo lidando com conflito e crise, pelo menos não nessa versão moderna que espera viver pelo menos uns 70 anos. 2020 veio e nos deixou perto do limite.

Povos diferentes responderam de forma diferente, os orientais e os europeus, acostumados a desgraça atrás de desgraça há milênios, parecem ter mantido um certo grau de equilíbrio diante da situação. Os americanos, que na sua terra vivem em relativa paz há muitos anos, começaram a perder a linha e partir para a agressão. Os brasileiros… bom, o espírito das ruas dos brasileiros começou a apontar para a apatia. Sim, xingam muito na rede social, mas na prática, estão vendo sua casa começar a ruir e dando de ombros. O governo é um dos mais perdidos da nossa história, xingando muito na rede social e bravateando também, mas não consegue se organizar para nada. O brasileiro médio pode até não entender o que está vendo, mas consegue sentir isso.

E agora, estamos vendo a segunda onda da Covid batendo na nossa porta. Segunda onda que tecnicamente nem deveria ser segunda por mal termos lidado com a primeira, mas que em termos globais pode ser notada em diversos outros países. O que eu mais vejo por aí é gente achando que já foi, já passou e agora a vacina é só um bônus, só mais uma coisa para politizar. Era de se esperar em outros países pelo menos um espírito das ruas um pouco mais inquieto, daqueles que deixam políticos preocupados. O espírito das ruas fungou no cangote de Dilma com os protestos de 2013 e no de Temer com a greve dos caminhoneiros, mas Bolsonaro ainda parece tranquilo, e o país não está melhor economicamente do que esteve em nenhuma dessas duas situações bem recentes.

Será que o brasileiro finalmente cansou? Que vai se deitar eternamente num berço cada vez menos esplêndido? Se fosse preocupação com o vírus eu até poderia entender, mas basta sair nas ruas para ver que uma boa parte da população simplesmente não liga e outra maior não entende a pandemia. Máscara no queixo e “aglomeração rapidinho” num dos países mais afetados pela doença.

Ou será que está tudo bem? Talvez o brasileiro esteja reconhecendo seu estado natural sem rumo na situação atual. O Brasil meio, que usamos para conseguir algo que queremos, mas que nunca é o objetivo final. Pode ser que o cosplay de Black Lives Matter anime esse povo por alguns dias, mas eu duvido que vamos mexer nesse vespeiro das relações raciais brasileiras, ainda mais considerando que a pressão dificilmente fica grande o suficiente para assustar os políticos. Mas aí, vai ser que nem a situação do Amapá: algo que perde o impacto com a repetição. Até nos EUA o fôlego está acabando (trocadilho escroto semi-intencional), quem dirá aqui.

O Brasil está desmontando devagar diante dos nossos olhos. Nada que vá nos assustar muito de uma só vez, só uma falta de manutenção acumulando aos poucos. Já caímos do top 10 das economias mundiais, a pobreza está aumentando… e eu nem digo que é uma “venezuelação” porque o país ao norte é um típico caso de maldição do petróleo que já vimos dezenas de vezes nas últimas décadas. O Brasil é caso de estudo próprio, um país que vai afundando sem uma causa óbvia, sem explicação simples de esquerda, direita ou qualquer ideologia política, vai só… desmontando. Pode ser que a ilusão de melhoria tenha sido só o resultado de um período de aquecimento do comércio internacional gerado pela China nas duas últimas décadas. Pode ser que o lugar do Brasil nunca tenha sido esse de país do futuro, foi só um daqueles saltos em gráficos de performance que não refletem o padrão.

Porque se com tudo o que está acontecendo, o espírito das ruas é esse, é porque no fundo o brasileiro espera que as coisas sejam assim mesmo: uma terra para ser explorada que muitos de nós nem queriam que fosse sua casa. Um país é a soma da mentalidade de seu povo. É isso que somos agora. A Covid agradece.

Para dizer que esse texto é depressivo, para dizer que o Brasil é depressivo, ou mesmo para dizer que é culpa do “grupo político oposto ao seu”: somir@desfavor.com


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