Crueldade final.

Em vários países do mundo ainda se aplicam penas de morte e prisões perpétuas. Sally e Somir nem entram no mérito do valor delas para coibir a criminalidade, apenas discutem o que é pior para o condenado. Os impopulares estão sentenciados a dar sua opinião.

Tema de hoje: o que é mais cruel, pena de morte ou prisão perpétua?

SOMIR

Pena de morte. Na prática e nas ideias que a fundamentam. Já escrevi algumas vezes aqui minhas objeções sobre o conceito de ter uma punição irreversível aplicada pelo Estado. A maioria de nós não confia no governo nem para tapar um buraco no asfalto, mas quando o tema é matar uma pessoa, o sistema magicamente se torna infalível… sim, eu sei que não estamos discutindo se a pena de morte deve ser aplicada ou não, mas esse primeiro desvio é necessário para estabelecer que crueldade também tem a ver com o nossos senso de justiça.

Como a pena de morte não tem volta, sua crueldade é definitiva. Se o Estado falhar e matar um inocente, podemos concordar que foi um destino muito mais cruel do que o Estado falhar e o preso ser liberado anos depois? Sim, a vida na cadeia é horrível, mas no caso do inocente, pelo menos existiu tempo hábil para ele ser inocentado. E por que eu estou falando de inocentes? Porque a maioria de nós tem um senso de justiça interno que considera as ações de uma pessoa para calcular quanta punição ela deve receber.

Não parece tão cruel matar um estuprador ou um torturador, não? Se você parte do princípio que a acusação está correta, algo desliga na sua empatia. O criminoso quebrou o contrato social e virou um risco para o seu bem estar ou o das suas pessoas queridas. Isso tem influência no cálculo que fazemos sobre crueldade. Não é terrível punir quem merece. A discussão sobre o que o Estado deve fazer em relação a esses sentimentos muito humanos vai bem mais longe, e como eu disse, nem é o foco deste texto.

É por isso que eu preciso que você já comece essa análise considerando o caso de um inocente falsamente acusado. Essa é a pessoa que vai te dar a visão mais clara sobre o que é cruel ou não. Dadas condições normais de empatia, é melhor que o inocente morra logo ou que tenha a chance de receber a justiça, mesmo que tardia? É uma crueldade, talvez a maior de todas, acabar com uma vida por um erro.

E agora que você pensou no inocente primeiro (o que deveria nortear todas suas ideias sobre punição aplicada pelo Estado), vamos pensar na pessoa realmente culpada? O que o seu senso de justiça te diz? Uma pessoa que cometeu um crime horrível, que tirou outra vida de forma horrível ou deixou sequelas devastadoras numa pessoa inocente… o que você sente que é a melhor forma de puni-la? A morte ou uma prisão para o resto da vida? Com raras exceções, a maioria vai dizer que é matar essa pessoa. Tirar uma vida é o ato definitivo de punição.

Dizer que matar a pessoa é a forma mais humana de resolver o tema é se enganar: não é assim que o ser humano funciona. Querer a morte do bandido é querer causar o máximo de dano possível para uma pessoa que você já desconsiderou como igual. Pena de morte não é uma solução fria e calculista, é legislar um sentimento muito primal de raiva pelo inimigo. Novamente, eu não enxergo algo de fundamentalmente errado ao ver um pai matando o estuprador da filha, por exemplo. Porque o indivíduo se guia por sentimentos que não podem ser modificados por uma folha de papel e uma análise de longo prazo sobre as consequências de suas ações para a sociedade como um todo.

Quem quer pena de morte quer a punição mais cruel possível para o criminoso. Tanto que se não houver um sistema de governo para tentar controlar a multidão, a maioria dos acusados seria morto por linchamento, uma forma de maximizar a crueldade: primeiro tortura e depois mata. É uma forma comum de aplicar “justiça” em lugares com pouca ou nenhuma estrutura pública.

Prisão perpétua não é uma reação natural do ser humano. É uma solução que o Estado encontrou para punir uma pessoa que julga que não pode ser ressocializada. O elemento da crueldade da vingança é eliminado da equação, deixando a frieza da ideia de que uma pessoa que não é viável para o convívio humano deve ser isolada até morrer por causas naturais. Muitas vezes, a solução mais humana é a solução mais difícil de se imaginar como um ser humano.

Sim, deve ser terrível passar a vida preso, ainda mais em sistemas carcerários bizarros como o brasileiro, mas vamos voltar às duas possibilidades: o inocente injustamente preso ainda tem a chance de ser solto, e o culpado de verdade não é exatamente um ser humano que está aproveitando o máximo da sua vida… gente que comete os crimes necessários para uma prisão perpétua tem algo de muito errado na cabeça. Algo que muda sua percepção da realidade ao ponto de não tornar a cadeia um lugar tão alienígena assim. Pode ser cruel para quem respeita o pacto social e tenta viver de forma a maximizar sua felicidade pessoal, mas pode ser só um cenário diferente no filme de terror que é a vida de uma pessoa tão perturbada.

E se não bastasse o conceito: a não ser que seu corpo esteja extremamente debilitado, não existe morte pacífica. Tem um texto antigo meu sobre formas de suicídio onde eu exploro as formas como o corpo tenta reagir de todas as formas antes de morrer. Nenhum corpo aceita a morte, mesmo que a mente já tenha feito as pazes com o conceito.

E nenhuma das formas de execução são “tranquilas”. Das formas mais bárbaras às consideradas mais humanas, existem estudos e mais estudos dizendo como as pessoas sofrem horrores, inclusive no caso da injeção letal: os países que aplicam essa punição não conseguem colocar médicos de verdade na sala, todos com juramento de profissão. E se conseguem, são médicos de quinta categoria, não especialistas em eutanásia. Em vários casos as doses foram erradas e as pessoas morreram totalmente conscientes do corpo sofrendo até morrer. Execuções “humanizadas” são caríssimas e é claro que economizam onde podem. Na prática, a maioria das penas de morte são executadas com tiros, o que com certeza não é uma forma tranquila de morrer. Vida real não é filme onde um golpe faz desmaiar e um tiro mata imediatamente. Matar uma pessoa quase sempre é um ato mais demorado, doloroso e aterrorizante do que se imagina.

O que é mais cruel, agonizar até morrer ou viver dentro de um prédio até morrer?

Para dizer que prefere a ilusão de que é mais humano matar pessoas, para dizer que enquanto não for alguém que você goste podem matar inocentes, ou mesmo para dizer que cruel mesmo é a sua vida: somir@desfavor.com

SALLY

O que é mais cruel: pena de morte ou prisão perpétua?

Prisão perpétua. A morte, ao menos, te liberta daquele sofrimento.

Sabe aqueles períodos da vida em que a gente está passando por algo muito ruim? Já perceberam como ajuda quando a gente sabe que aquilo tem um prazo determinado para acabar? Quando você sabe o dia exato que seu inferno termina, é mais fácil. Quando aquilo é indefinido, não tem prazo para acabar, fica muito mais difícil.

Sofrimento pelo resto da vida é, na minha opinião, a forma mais cruel de punir alguém. Nem entro no mérito se tem gente que merece ou não, o objetivo de hoje é determinar qual é a punição mais cruel, e sim, existem coisas piores do que a morte. Em muitos casos (não apenas em matéria de punição), a morte pode ser um grande alívio para quem está sofrendo – e não morrer pode ser muito pior.

A vida de um preso não é agradável. Não é apenas o cerceamento de liberdade. Na maior parte do mundo, eles vivem em condições precárias, indignas e não tem direitos mínimos. Achando merecida ou não essa forma de punição, suponho que todos concordem que viver em um ambiente hostil onde podem te machucar ou te estuprar a qualquer momento, onde você tem que dormir por cima de fezes, onde passa fome, frio ou calor, onde não tem direito ao básico do básico, é algo muito sofrido.

Se eu estivesse nessas condições, certamente preferiria a morte. Uma pena de morte seria um alívio, pois, na real, minha vida já teria acabado. Viver em um presídio não é vida, ao menos para mim, não é uma vida que valha a pena ser vivida. Prefiro não viver a viver em um ambiente insalubre, de medo e de violência sabendo que é para o resto da vida.

É mais cruel sujeitar a pessoa a isso pelo resto da vida do que encurtar esse sofrimento com a morte. Não sabemos o que a morte significa (e quem sabe, deveria repensar um pouco essa arrogância, pois é preciso morrer para saber). Pode ser apenas um fim da linha, pode ser um recomeço, pode ser qualquer coisa. É uma aposta no escuro, ninguém sabe o que acontece conosco quando morremos. Temos achismos, mas certeza ninguém tem.

Porém, temos certeza de que uma vida em um presídio tente a ser muito desagradável. Então, se eu tenho a certeza de danação por um longo período em uma porta e, na outra, tenho um ponto de interrogação, me parece mais jogo arriscar. Ao menos na porta da interrogação eu tenho uma chance.

Mesmo que a gente morra e acabe tudo (olha o povo do ego tendo gatilho pela própria finitude!), é melhor acabar tudo do que viver décadas em sofrimento, não acham? É quase impossível reverter uma prisão perpétua (se essa condenação chegou a se tornar definitiva, é por ter sido muito bem embasada) e na vida a gente não pode contar com a exceção, é mais inteligente sempre contar com a regra geral. Acho ingênuo se sujeitar a uma vida de sofrimento contando com uma pequena chance de mudanças que não depende de você.

Provavelmente quem já pisou em um presídio vai concordar comigo: você está morto em vida lá dentro. Qualquer humanidade que exista em você vai embora, para que você possa sobreviver a aquele ambiente, a aquelas condições. A pessoa vira um zumbi brutalizado que precisa lutar todos os dias pela sua sobrevivência, por sua comida, por suas pregas.

Você é retirado da sociedade onde vive e transladado para uma nova sociedade, muito pior, que te provoca medo, dor e sofrimento diariamente. É quase como ter uma doença terminal, exceto pelo fato de que você não morre, você fica naquele inferno sabe-se lá quantas décadas, afastado de tudo que ama, de tudo que gosta, de tudo que te faz feliz.

Isso me parece uma opção muito mais cruel do que ter a vida interrompida por uma injeção na qual você não sente nada, apenas vai embora. Óbvio, não deve ser agradável, deve causar muito medo e angústia, mas é medo e angústia por um prazo determinado, o sofrimento tem data certa para acabar. Melhor do que medo e angústia de forma indefinida.

Vai ter quem alegue que presos não vivem muito na cadeia. Sim, de fato, em algumas eles não duram muito mesmo, mas quando morrem, morrem de forma dolorosa: estuprados até a morte, com faca enfiada na barriga, apanhando etc. Prefiro uma morte limpa, com uma injeção sedativa antes, que desliga tudo de forma mais serena.

Além disso, mesmo que a pessoa não viva muito, vocês têm noção do quanto dura um dia dentro de uma cela? Uma eternidade. Quando você não tem uma atividade decente para fazer, quando você está sob constante estresse, quando você está confinado, o dia não passa nunca.

Essa coisa de julgar a vida como a coisa mais importante do mundo precisa ser desmistificada. Sim, a vida é importante, desde que seja uma vida com qualidade. É possível retornar a uma vida com qualidade quando se está na merda? Na maior parte dos casos sim e quem não luta por isso e usa a morte como fuga é um cuzão.

Mas, em alguns casos como prisão perpétua e doenças terminais, não tem o que fazer, não depende da pessoa. A escolher é viver uma vida muito, muito, muito ruim ou morrer. E, acreditem, dependendo do grau de sofrimento ao qual a pessoa é exposta, morrer pode ser um alívio.

Então, nada mais cruel do que sujeitar a pessoa a um sofrimento extremo, prolongado e sem data para acabar. Quando a pessoa tem ciência que aquela será sua vida, até o fim dos dias, a angústia é muito maior. Isso torna a prisão perpétua muito mais cruel.

A pena de morte é mais grave, é mais extrema, é mais severa. Mas cruel? Não, a pena de morte tira a pessoa de um ambiente nocivo, de dor, de sofrimento, de cerceamento. O que vem depois, não sabemos, mas dificilmente seja pior do que viver o resto da vida em um presídio.

Quem já pisou em um presídio vai concordar comigo.

Para dizer que cruel mesmo é viver no Brasil, para dizer que ultimamente morte nem parece tão ruim assim ou ainda para dizer que ajuda muito a sua saúde mental começar a semana com um tema tão leve e alto-astral: sally@desfavor.com

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Comments (12)

  • A pena de morte não é permitida por lei mas ela existe e é aplicada por justiceiros, que executam criminosos de acordo com suas regras dentro da cadeia, ou ex detentos que conseguiram sair. Até criminosos que não foram condenados são “encontrados” mortos em um beco qualquer. Por essas e outras, acho que liberar eutanásia pra criminosos seria melhor.

  • Olha, minha mãe é psicóloga e ela já tratou de vários ex-presidiários, ela conta que mesmo saindo da cadeia, a cadeia não sai da pessoa. “Viver” em um ambiente onde vc está exposto a sofrer qualquer tipo de violência 24 h por dia não é fácil, acaba com a cabeça da pessoa. Levando isso em consideração, acredito sim que a pena de morte seja melhor, msm que a pessoa sofra no ato, pelo menos acaba. Ter que viver com traumas desse tamanho e ficar encarcerado me parece beeem pior.

  • Wellington Alves

    Partindo do princípio que ambas as sentenças requerem provas concretas do crime, não havendo espaço para dúvidas quanto a inocência do criminoso, a pena de morte é a melhor saída para todos prisão perpétua só se o preso pudesse passar a vida trabalhando para pagar suas despesas. Nem que fosse girando um moinho de vento.

  • Tema bem difícil esse. Bem difícil mesmo… Mas eu fico com a Sally. Assim como ela, também acho que passar o resto da vida apodrecendo em uma prisão seja pior do que ser morto pelo Estado com data marcada e acabar de uma vez com o sofrimento no cárcere. Eu nem consigo imaginar o quão terrivelmente angustiante deve ser para qualquer pessoa passar seus últimos dias de vida trancado em uma cela sabendo com exatidão quando e como se vai morrer, mas creio que seja ainda mais duro ter que estar sempre em estado de alerta contra tudo e contra todos no ambiente brutal de uma cadeia justamente por não saber.

  • Olha, tudo depende muito do que a pessoa passa na prisão. Passar o resto da vida sendo ameaçado, enrabado, aviltado, aí é pior do que a morte. Ficar em uma cela com um criminoso não violento, tendo acesso a uma biblioteca, parece melhor do que morrer – se você não ficar clinicamente deprimido. Nenhum dos casos me parece cruel se o julgamento for justo, afinal não seria essa a pena por roubar comida. Se for injusto, aí os dois são cruéis, mas o preso pelo menos ainda pode receber visitas.

    • Mas mesmo nesses presídios “de boa”, tem gente barra pesada presa e tem momentos onde todos interagem juntos. Sempre dá uma merda no refeitório ou no banho de sol. Você nunca está seguro. Sempre tem politicagem interna, sempre tem disputa de poder…

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