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Imunização contra a verdade.

Imunização contra a verdade.

| Desfavor | | 10 comentários em Imunização contra a verdade.

A imprensa internacional repercute nesta terça-feira, dia 10, o anúncio da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em interromper os testes para vacina contra o novo coronavírus, chamada CoronaVac, da chinesa Sinovac. Antes mesmo da confirmação com a Polícia Civil de São Paulo de que a morte de um voluntário do estudo foi causada por suicídio, o jornal norte-americano “The New York Times” fez uma provocação logo no título da reportagem: “Brasil interrompe teste de vacina chinesa. Mas a culpa foi da ciência ou da política?”. LINK


Deveria ser uma vergonha sem fim para o governo, não? Mas não foi: mais gente começou a duvidar de vacina. Bolsonaro está ganhando… Desfavor da Semana.

SALLY

Esta semana vimos um esmerdeio envolvendo a vacina chinesa: um dos voluntários que participava dos testes da Sinovac no Brasil morreu e aproveitaram a oportunidade para suspender os testes no país, algo que o Bolsonaro queria faz tempo. O Presidente foi se gabar em público por ter morrido uma pessoa e disse que “ele ganhou” se referindo a Dória, principal responsável por trazer esta vacina pro Brasil.

Vamos ignorar o fato do Bolsonaro ter visto, na morte de uma pessoa, uma vitória e vamos aos fatos: segundo laudos do IML, o voluntário no qual a vacina estava sendo testada (e na verdade, nem sabemos se ele tomava a vacina ou o placebo), se suicidou. Portanto, sua morte não teve qualquer relação com a vacina. Tanto é que, no dia seguinte, os testes foram retomados.

Em um país normal, a ANVISA (que suspendeu o estudo) e o Presidente seriam duramente criticados e ficariam desmoralizados, como de fato vem acontecendo fora do Brasil. Mas não foi isso que vimos. Bolsonaro conseguiu (novamente) o que queria: ser um agente do caos e plantar uma dúvida nas pessoas.

Em pouco tempo era tanta notícia falsa sobre o assunto que as pessoas começaram a ficar confusas. Obviamente não faltou débil mental para questionar se não foi a vacina que causou uma depressão e o suicídio do voluntário, por mais que isso nunca tenha acontecido em toda a história da humanidade e que não exista qualquer relação dos elementos da vacina com o humor de uma pessoa.

Tudo que vocês possam imaginar foi dito. E o brasileiro é imbecil e consome tudo que lhe é dito. E esse é o grande problema e, a meu ver, o Desfavor da Semana: mesmo as pessoas supostamente inteligentes acham que não tem problema em consumir e até repassar tudo se tiverem senso crítico. Tem sim. Essa onipotência tá derrubando muita gente boa. E pior: se você deixar, te levam junto. Agem como viciados.

Os mesmos que acham que uma vacina pode causar sintomas como depressão ou suicídio não parecem perceber os danos que o excesso de informação, teorias da conspiração e informações não comprovadas podem causar. Tem um texto nosso só sobre isso. O cérebro é projetado para reagir a ameaças, ele fica de prontidão, ele libera hormônios do estresse, ele faz muitas coisas que nós não percebemos quando botamos para dentro um excesso de informações com as quais ele fica atolado.

Um dia ou dois não faz mal, porém, muitos meses causa danos que vão acumulando. O primeiro a se sentir é a liberação de hormônios do estresse que, entre outras coisas, fazem a pessoa dormir mal e engordar, principalmente acumular gordura na região abdominal, o tipo mais nocivo para a saúde. Abre-se uma porta de autossabotagem, onde a compulsão da pessoa por consumir informações sobre o assunto que atendam ao que lhe interessa se torna quase um vício. O cérebro quer mais e mais, ele solta fogos quando recebe uma informação “especial” que poucos supostamente tem.

Quem tem perfil mais desempoderado vai para as teorias conspiratórias e compartilha com os demais notícias sobre “a mentira” a respeito do coronavíris. Cientistas do mundo todo não perceberam (ou se calaram), mas a pessoa sabe e vai te contar. Pessoas mais assustadas compartilham informações alarmistas sobre como a humanidade vai acabar. Pessoas mais negadoras compartilham informações sobre como o vírus não existe. Tem para todo gosto, mas o denominador comum é que usam o vírus como escape da realidade e consomem essas notícias que convergem para suas neuroses.

Tenho dó de quem se expõe a algo que lhe faz mal, mas, se fosse só isso, foda-se, não seria tema da postagem de hoje. O problema é que essas pessoas são CHATAS, elas não conseguem apenas ler algo e custodiar a informação. Não, a pessoa tem que te contar, ela tem que fazer você perder seu tempo com isso. Olha, o número de amizades (não colegas, amizades) que joguei na privada e dei a descarga esse ano é maior do que o de amizades que abri mão em toda a minha vida.

As pessoas não respeitam. Você diz que só quer saber de informações que venham de estudos científicos sérios, revisados pelos pares, publicados em revistas científicas renomadas e a pessoa te diz que sim, e te manda um estudo da Ronald’s Mc Donald’s Magazine feito por um Zé Cu que já foi desmentido por toda a comunidade científica. Eu não sei vocês, mas meu tempo vale muito. Eu não vou roubar tempo de sono, de trabalho ou de estar com as pessoas queridas para ser palco para um vício de alguém.

“Mas Sally, você é muito radical, não se descarta um amigo assim”. Descarta sim. Esse é meu ponto, isso é cuidar da sua saúde mental. Quem me toma tempo assim perde a minha amizade. É uma questão de respeito: se você diz que não quer mais saber desse tipo de informação e a pessoa continua, ela está te desrespeitando. Não vejo amizade possível onde há desrespeito. E, o principal: eu mesma perco o respeito pela pessoa. Não consigo conceber uma amizade com quem eu acho um débil mental.

E aqui, vamos colocar uma pitada de polêmica: a pessoa não faz isso aleatoriamente. Quem faz isso tem uma estrutura psíquica já inclinada para a autodestruição, para a autossabotagem, para a megalomania que leva à queda. Dificilmente você encontre alguém que bombeia tanto lixo pro seu cérebro e não tenha passado por uma depressão, por uma síndrome do pânico ou qualquer desses surtos com nome psiquiátrico. A pessoa não cuida da sua mente, a conta vem. É típico desse perfil.

É, amiguinhos, quem planta merda colhe bosta. O cérebro humano não foi feito para ser bombardeado de informação. Em algum ponto, quando o bombardeio é muito grande, ele desliga, ele fica dormente, ele fica anestesiado. Aí a pessoa nem percebe mais o que ela está fazendo.

Olha ele aí, o nosso amigo ganho secundário! O ganho secundário de não terem que olhar para os problemas reais das suas vidas. Todo mundo bem com a família, sem se sentir solitário, bem resolvido profissionalmente e com o corpo magro e saudável? Acho que não. Mas Deus os livre de olhar para isso, vamos consumir informação de covid feito viciados para anestesiar o cérebro e não sentir a frustração da vida atual.

O problema é que anestesiar o cérebro dessa forma custa muito caro a longo prazo. E a doença mental é uma porta que, uma vez aberta, não se fecha mais. Uma pessoa com depressão sempre vai ser uma pessoa com depressão, mesmo que esteja controlada. Em períodos críticos, ela pode voltar. Então, cuidem de suas mentes e não abram uma porta que nunca mais pode ser fechada e que vai ser uma âncora amarrada no seu pé o resto da vida.

Acreditem e mim quando eu digo que é uma questão de saúde não consumir informação que não seja cientificamente avalizada. Escolham seus curadores de conteúdo, pessoas confiáveis, e bebam apenas daí. Fulaninho veio te dizer uma informação que nenhum cientista, imprensa ou chefe de estado do mundo todo está comentando? Diga que não quer escutar esse tipo de coisa.

Se Fulaninho não respeitar, se de alguma forma te julgar (“você não quer saber a verdade”) ou insistir, corta a pessoa da sua vida sem só. São viciados tentando te arrastar junto. Dica: quando é preciso que o resto do mundo esteja errado ou omisso para que uma teoria esteja certa, essa teoria é teoria da conspiração, é falsa, é mentirosa.

E, deixo aqui a resposta padrão que dei para todos os que se chatearam com a minha escolha de não ser palco para gente chata, com tempo de sobra, carente e autodestrutiva ou que acharam ser exagero: não sou eu quem toma tarja preta. Não sou eu quem fodeu o próprio cérebro até adoecê-lo. Será mesmo que é um exagero, ou será apenas um autocuidado? Observe como está a mente e a vida da pessoa que te cospe achismos de coronavírus. Observe o histórico de doença mental dela. Você rapidamente vai perceber qual é a postura saudável a adotar e correr para o outro lado.

É bem básico: se a pessoa está acreditando em teorias da conspiração, eu não consigo ter respeito. Sem respeito, não consigo conceber amizade. Cuidem de suas mentes e se afastem de quem toma o seu tempo precioso com qualquer informação que não seja avalizada por cientistas e pesquisadores do mundo todo. É a única forma de não ser sugado por esse rebosteio e acabar no tarja preta. Repito: exagerada? Intolerante? Não sou eu quem toma tarja preta.

Para dizer que lembra muito bem dos que falavam que não conheciam ninguém que tivesse morrido de corona e por isso desconfiavam da sua existência, para dizer que se fizer isso fica sem amigos (arrume novos amigos, melhores) ou ainda para dizer que está solidário pelo tanto de hate que eu vou receber por este texto (relaxem, não será publicado): sally@desfavor.com

SOMIR

Assim que recebi a informação sobre a causa da morte do voluntário, não tive um segundo de paz do meu cérebro, ele passou direto de “vão falar que ele morreu por causa da vacina” para “vão falar que a vacina fez ele ficar deprimido e se matar”. A rede de desinformação já faz parte de mim. Eu lembro, de verdade, de um tempo onde eu não pensava automaticamente em qual boato maluco sairia de cada notícia para distorcê-la.

Acho que todos esses anos de internet finalmente cobraram seu preço. E pior, em outros tempos também eu desconfiaria que era uma manifestação da minha nerdice. Pessoas normais não passam tanto tempo na internet para começar a desenvolver essa síndrome de cinismo infinito, não? Bom… hoje em dia passam. Uma das diferenças fundamentais do mundo em 2020 é que estamos todos conectados mesmo se não tivermos o mínimo interesse em ficar na frente de um computador.

A torrente de informações chega de uma forma ou de outra na maioria das pessoas. De celular em celular, degradada progressivamente pela compreensão limitada de uma população pouquíssimo educada. Cada elo nessa corrente de desinformação não é necessariamente um agente maligno, apenas está lidando com algo um pouco acima da sua capacidade de compreensão. Pode apostar que atrás da maioria dos propagadores de fake news está uma mente que acha que está fazendo uma coisa boa para o resto da humanidade. A indústria profissional da mentira existe, é claro, mas simplesmente não teria condições de empregar tanta gente assim.

Se foi muita informação até aqui, simplifico: maldita inclusão digital! O cidadão médio não estava pronto para ouvir mil pontos de vista sobre o mesmo tema ao mesmo tempo. E mais: o cidadão médio nem pediu por isso. Uma coisa são “pioneiros” da cacofonia de informações da internet como eu, que foram buscar essa loucura toda por acharem divertido, outra completamente diferente é quem estava vivendo na base do jornal da TV e de repente tem um equipamento na mão dizendo inúmeras versões contraditórias sobre todos os assuntos imagináveis. O ser humano funciona muito melhor com o que acha divertido…

Até pouco tempo atrás, eu amava os malucos da internet: gente com teorias bizarras, comportamentos completamente desajustados, histórias épicas de obsessões… era mexer com fogo sem o risco de se queimar. O maluco ficava atrás do seu computador gerando conteúdo cada vez mais fascinante e você atrás do seu consumindo tudo aquilo. Um fórum perdido onde uma pessoa fazia 10.000 postagens sobre seu amor por uma personagem de desenho animado ou videogame era uma joia que você dividia com os outros “antropólogos virtuais”. A complexidade de teorias da conspiração isoladas num site mal feito, mas com dias de conteúdo para explorar por pura curiosidade mórbida. Até mesmo as chans originais: onde pessoas iam para competir quem dizia a coisa mais estúpida ou ofensiva só porque era muito engraçado…

O ponto aqui é que essa internet da desinformação e da bizarrice era apreciada por gente que estava lá com esse objetivo: não estávamos lá para aprender sobre o mundo, estávamos lá por puro entretenimento. O que significa pelo menos duas coisas: a primeira é que havia uma barreira natural para não acreditar em tudo que líamos, afinal, o “esporte” era observar gente maluca. A segunda, e talvez mais importante, é que fazer isso por diversão significa mais tempo disponível para analisar as coisas. Nesse contexto, os malucos da internet ficavam sob controle.

Mas esse não é mais o contexto, não? O problema é que centenas de milhões de pessoas começaram a entrar nesse mundo muito rapidamente. Gente que não sabia que você podia dizer qualquer insanidade na internet com a certeza da impunidade, e mais: gente que não tinha o mesmo interesse pelo acúmulo de informações. Não era a diversão delas observar e as vezes até incentivar os malucos. É gente que acessa internet do celular e tem interesse em outras coisas, evidente. Bater palma pra maluco dançar é um hobby como qualquer outro: quase sempre tem um número limitado de pessoas disposto a adotá-lo.

E aí, tempestade perfeita: todos os malucos cultivados pela minha geração encontraram um público incauto que ainda não sabia a diferença entre o que o Bonner dizia no Jornal Nacional e a corrente que recebiam no WhatsApp. Claro, às vezes é informação bem mais realista que o que a imprensa solta, mas isso está no meio de uma enxurrada de estupidez, boa parte dela proposital. Os nerds e trolls originais não pediram por isso, mas aconteceu: entrou um monte de gente na internet que não entendeu a piada e achou que era tudo verdade.

Eu tenho que me controlar diariamente para não escrever conspirações bizarras e criar personagens insanas para ver até onde eu consigo confundir e enlouquecer o cidadão médio. Era isso que eu fazia antes, e… era muito engraçado. Mas é como descobrir que as peças do seu jogo preferido são feitas por crianças escravizadas… a consciência pesa. O meu eu de dez, quinze anos atrás riria disso, afinal, eram só uns otários na internet que fatalmente aprenderiam uma lição, era egoísta, mas minimamente ético. O meu eu de hoje não ri mais, porque esse eu de 2020 está vendo que a brincadeira do passado está se tornando o sistema político do futuro.

E é com dor no coração que eu não concordo mais com desinformação por desinformação. Ou mesmo informação que confunda as pessoas o suficiente para ajudar quem está trabalhando em prol da desinformação. Não é só porque eu consigo reconhecer em segundos a maioria das bobagens que vejo na internet que todo mundo vai. Cada vez que a gente vacila na proteção da verdade, é mais uma bobagem que avança: dessa vez foi uma vacina que perdeu muito da sua confiança, à toa.

Para dizer que amadurecer é se tornar um chato, para compartilhar suas histórias de observar malucos na internet, ou mesmo para dizer que a verdade é o que for mais conveniente a cada momento: somir@desfavor.com

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