Depoimento: Relato de uma estudante presencial.

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Relato de uma estudante presencial na pandemia.

Por ser mais nova que a média de leitores do Desfavor, eu sempre me senti um pouco deslocada. Acompanho o blog desde 2018 e nunca tive ideias de como contribuir: pedir temas, escrever coisas para um Desfavor Convidado ou mesmo comentar eram coisas impensáveis para mim; entretanto, nesse cenário de pandemia, eu finalmente saio do meu estado de leitora fantasma e compartilho o que vejo sendo uma estudante que tem que ir às aulas presenciais.

Já começo dizendo que se você já viu aquelas propagandas de escolas desinfetando as mochilas dos alunos, medindo a temperatura, passando álcool em gel em suas mãos e dizendo que a proteção é impecável, isso é uma meia verdade. Essas coisas de fato acontecem, mas você percebe quão inutilizadas essas medidas ficam quando nota que os funcionários responsáveis por isso às vezes estão com a máscara com o nariz descoberto! E isso está longe de ser uma raridade; há mais funcionários com máscara mal usada do que os próprios estudantes, embora estes também carreguem sua parcela de culpa.

Subindo as escadas e olhando de relance, a mesma paisagem se repete em todos os andares: alunos próximos uns dos outros, não raramente se abraçando e com as máscaras mal usadas ou mesmo ausentes. Alguns desses alunos, se não me falha a memória, eram os mesmos que foram de sala em sala avisando sobre os riscos do coronavírus no início da pandemia. Eles só se afastam e arrumam a máscara quando o monitor, um homem já em seus 30-40 anos que NÃO usa máscara em momento ALGUM — apenas um daqueles plásticos que se coloca no rosto — chega e diz pra eles tomarem jeito. Isso é tão irresponsável! Isso é tão hipócrita! Isso é tão BRASIL!

Quando se entra na sala de aula, eis o pesadelo: os alunos nos corredores se multiplicam em dez vezes e alguns conversam um perto do outro sem máscara; se a usam, a tiram pelos motivos mais estúpidos possíveis: já vi VÁRIOS casos de alunos que tiram a máscara pra fazer vídeos do Tik Tok. Por que exatamente eles precisam tirar a proteção pra gravar vídeos? Não sei, não entendo e acho mais provável ser uma desculpa imbecil. Esses mesmos alunos deixam as cadeiras umas perto das outras, nunca usam o álcool em gel que a escola disponibiliza ou trazem o próprio, estão sempre a dizer que as coisas estão melhorando, que a pandemia está próxima de seu fim… enfim, uma bagunça total. O caso mais curioso é de um garoto que pegou covid há mais ou menos um mês, ficou de cama com uma febre altíssima — achei justo, ele fez pouco da morte do tio de uma amiga —, pediu orações, falou que tinha medo de matar um dos familiares e agora que está bem, não hesita em dizer que sai mesmo, que as vítimas de covid morrem porque Deus havia decidido que já era hora. A empatia do brasileiro só dura enquanto a doença causa sofrimento.

Além do grupo dos irresponsáveis (que são a maioria), há também os que vão porque não podem escolher, os que têm consciência do perigo do vírus e tentam tomar o máximo de proteção possível. Como exemplo para esse pequeno grupo, cito uma amiga: ela tem asma (e a escola não fez nada para impedir que fosse mandada), quase toda a família está em algum grupo de risco e é pré-diabética. Toda vez que alguém tira a máscara, pode-se ver um terror indescritível em seus olhos. Eu não a culpo por estar assustada, parte dos amigos dela a põem em perigo. Ela era a pessoa mais alegre de meu círculo social, agora estou preocupada cada dia mais com sua saúde mental. Mas a maioria não liga. Por quê? Porque como não estão em grupo de risco, se acham imunes à doença. Deixem a colega perder mais e mais da saúde mental! A deixem morrer! Ou melhor: deixem TODA a família dela morrer! Deus queria, não? Se ela morrer, é porque Deus quis!

Francamente, essa situação não me passa pela cabeça sem pensar que apenas alguém muito doente ou muito perigoso pode ser capaz de tal insensibilidade. Não queria ofender minha pátria assim, mas tenho a impressão que vivemos num país de psicopatas.

Os professores são os menos piores, mas alguns também fazem parte do problema. Um deles ficou um dia inteiro dando aula sem máscara sob a desculpa de que era mais fácil falar sem a proteção. Quando a coordenadora chegava, ele colocava a máscara; quando saia, tirava-a imediatamente. Um detalhe para aliviar um pouco do peso desse texto: ele só começou a usar máscara porque uma pequena parte dos alunos que estavam na parte online se juntou e spammou mais de 400 mensagens com todo tipo de piada e esculhambação no chat visível por toda a sala. Não costumo compactuar com desrespeito ao professor, mas esse foi mais que merecido.

Por outro lado, a maioria dos professores (principalmente os mais velhos) dão a aula num tom de hesitação, como se não quisessem estar ali. É justo, justíssimo. Eles praticamente não puderam contestar quando as aulas voltaram e, assim como a minha amiga, cada ida à escola é uma roleta russa com a natureza.

Enfim, meu depoimento acaba aqui. Eu tenho medo de morrer ou ter sequelas antes de sequer chegar ao ensino médio, eu tenho medo de matar meus pais, eu tenho medo de matar minha amiga; desde que essa pandemia começou, eu tenho medo de tudo. Por favor, mantenham seus filhos no ensino online, não os façam passar por tal sentimento de terror, ninguém merece isso.

Se cuidem.
Isolde

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Comments (20)

  • Obrigada por compartilhar sua experiência, Isolde. Sinto muito por vc estar passando por isso, que a força esteja sempre com vc! Parabéns pela sua escrita e, acima de tudo, pela clareza de suas idéias. Infelizmente vivemos em um país de psicopatas, vários deles são premiados por atitudes cruéis. É assustador ler relatos como esse e, ao mesmo tempo, ver tantos pais fazendo vídeos, vibrando ao deixar seus filhos na escola. Ouço o silêncio dos defensores de homeschool e dos pais que reclamavam da doutrinação comunista nas escolas.

    • “Ouço o silêncio dos defensores de homeschool e dos pais que reclamavam da doutrinação comunista nas escolas.” Bem lembrado, Revoltz.

  • É horripilante redescobrir que a índole em escolas, sejam elas públicas ou particulares, não mudou NADA, isso se não piorou desde que eu estive no ensino médio há uns dez anos atrás (era professor se atracando com aluno, gente matando aula adoidado e depois colando nas provas, aprovação automática, uso e abuso de tarja preta cá e acolá… Não sei porque me surpreende ver que agem de forma irresponsável e incauta hoje durante uma pandemia). Para cada 1 que queria fazer o máximo possível certo, uns 10 queriam fazer o máximo possível errado, e sabotavam o que podiam, mas continuavam exigindo melhoria nas condições, criticando o sistema e qualquer outra coisa, desde que os tornasse em descoladões no Orkut ou num Vlogão, e só. Aquele 1 que queria dar seu melhor, terminava tido como quem não sabia viver a vida.
    E deixa eu adivinhar: você tenta explicar, com toda calma e seriedade do mundo, com fontes, a periculosidade da situação, e geral te encara com aquela careta “ugh, vai transar”…

  • Muito obrigada pelo seu depoimento, Isolde! Força pra vc, muita força!

    Este depoimento é lapidar, a escola é o microcosmo de um povo, e é isso aí que vemos: Uma chuva de irresponsabilidade, descaso, pouco caso com a peste e com tudo mais… Sinto por vc e por sua colega asmática e todos aqueles q se importam. Decretar volta às aulas neste contexto em q vivemos é CRIME CONTRA A HUMANIDADE e deveria ser tratado como tal.

    E olha, gente, é um super consolo pra mim não ter filhos no Brasil – pior ainda neste momento tão cruel… (E como eu penso no futuro deles, ter filho só em país decente).

  • Isolde,

    Lamento muito por todo esse medo e demais sentimentos que enfrentas sendo tão jovem. Desejo serenidade para atravessar isso e sinta-se acalentada mesmo que apenas virtualmente.

  • Pôxa, Isolde… Que coisa mais triste! E também preocupante. Principalmente pela sua precisa definição de que “cada ida à escola é uma roleta russa com a natureza”. É para ficar com medo mesmo. O pior é que a maioria das pessoas não se importa e nem parece ser capaz de perceber a gravidade da situação.

  • Ninguém pediu a minha opinião, mas aqui vai ela: tem que ser muito irresponsáveis esses pais que permitem que seus filhos vão para a escola. Eu nao mandaria os meus.
    Prefiro que fiquem atrasados 2 ou 3 anos, que fiquem me pentelhando em casa, e eu fazendo o que fosse possível, mas seguros, assim como todos em casa.

  • Tenho curiosidade em saber como aluno de escola veio parar aqui. Eu achava que as idades dos leitores eram de 30 pra cima. Quando tinha coisa engraçada eu até mostrava pra minha avó de quase 80 que rachava de rir. Ainda bem que ela morreu antes do fim dos tempos, que começou em 2020 e não vai terminar…

    • Tentei ser universitário “no tempo certo”; espero completar 29 em 03/04.

      [ Também agradeço por mais este teu avanço, Isolde(!), apesar dessa época… ]

    • Eu confesso que quase caí da cadeira quando a Isolde disse que ainda ia entrar no ensino médio. Eu não escrevia com um décimo da qualidade que ela escreve nessa idade.

      O que talvez explique o motivo de estar no Desfavor…

  • Capitão Impressionante

    Que relato mais triste! Cada dia me convenço mais e mais de que o Brasil nunca vai tomar jeito…

  • Que horrível ler um relato desses assim! Tá todo mundo louco mesmo, pelamor..
    Força e coragem, Isolde!
    Imagino que a situação também se repita em várias escolas, sejam elas públicas ou privadas, não? Bem, ainda bem que, no caso da tua escola, os professores ainda tem um pouco de consciência e parecem ser “os menos piores”.

    Aliás, curioso também como que a escola – sempre, ou quase sempre – reflete o macrocosmos social lá fora: pessoas ignorantes, irresponsáveis, mal educadas, e mesmo com essa compaixão hipócrita que só dura enquanto é em benefício de si próprio. Triste retrato.

    • “Aliás, curioso também como que a escola – sempre, ou quase sempre – reflete o macrocosmos social lá fora: pessoas ignorantes, irresponsáveis, mal educadas, e mesmo com essa compaixão hipócrita que só dura enquanto é em benefício de si próprio.” Concordo sem tirar nem pôr, Ge.

  • Jhonata Lima Barros

    A situação é realmente séria…

    A impressão que dá por aqui é a de que não há quase nada acontecendo, que as pessoas estão fazendo tudo normalmente, fazendo parecer que o vírus não está a solta ou, se está, é bem menos letal que alardearam por aí…

    Com essa impressão eu já desejei até demais a volta das aulas presenciais, mas depois de me informar melhor e, também, depois de descobrir este blog há quase uma semana, percebi que estava era na realidade pedindo para correr um risco e fazer meus próximos também correrem esse risco.

    Parabéns pelo texto, Isolde! Vou lembrar dele sempre que meu instinto me der a impressão de que não há nada acontecedo.

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