Intratáveis…

Um monte de gente dizendo que não vai tomar a vacina + um sistema de saúde público que não tem condições de tratar todo mundo = desastre esperando para acontecer. Sally e Somir concordam sobre a estupidez de quem rejeita a vacina, mas não sobre como o Estado deveria lidar com isso. Os impopulares aplicam suas doses de opinião.

Tema de hoje: é justo excluir quem se recusou a tomar vacina do tratamento do SUS?

SOMIR

Não. Se você é uma pessoa sensata que entende a importância de se vacinar, já deve ter ficado incomodado(a) com a minha negativa. Se você não está acompanhando meus textos sobre o tema ou acabou de chegar aqui, pode até achar que eu tenho alguma simpatia por aqueles que acham que a vacina é uma conspiração dos reptlianos, ou algo assim. Mas na verdade, eu sou apenas um defensor ferrenho da neutralidade do Estado.

Ou todo cidadão tem acesso aos direitos definidos na Constituição, ou não tem direitos. Ou é um sistema público de saúde ou não é. Eu já expliquei esse ponto de vista algumas vezes aqui: o Estado é uma entidade sem sentimentos, o indivíduo pode amar e odiar pessoas à vontade, mas o Estado não pode fazer diferenciações entre seus cidadãos que não estejam previstas em lei.

O Estado não pune pessoas malvadas ou premia pessoas boas. O Estado faz funcionar um conjunto de regras pré-definidas pelos cidadãos através de uma constituição e nada mais. Sim, presume-se que essas regras sejam baseadas no que o povo daquele lugar considera justo ou injusto, mas depois de postas, as regras devem ser cumpridas sem juízo de valor adicional. Se o povo concordou que um comportamento é crime e fez disso uma lei, o Estado não analisa caso a caso, ele apenas compara o fato com a regra e diz se a regra foi quebrada ou não.

Se você quiser que o Estado faça algo diferente, tem que mudar a regra. Não pode pedir para que em um caso específico, a aplicação da regra mude. É para isso que temos o Legislativo: quando o povo quer mudar uma regra (lei), são essas pessoas que colocam isso em prática. Quando a regra muda, aí sim o Estado começa a agir diferente. Essa lógica de funcionamento não é burocracia por burocracia, é a base do funcionamento das sociedades democráticas modernas. Quando o Estado começa a quebrar regras, você começa a regredir para autoritarismo violento ou mesmo colapso social.

Essa frieza técnica do Estado é a nossa última linha de defesa. Você gosta de guerras civis, genocídios e tortura? Porque é pulando essa linha que você consegue guerras civis, genocídios e tortura. Eu sei que é humano querer punir gente ruim e/ou estúpida que nos ameaça, mas é contraproducente fazer isso destruindo a lógica do Estado no processo. Não se coloca fogo na casa para matar uma barata…

E por que eu estou dizendo que o SUS recusar atender pessoas que decidiram não tomar a vacina quebra a lógica do Estado? Porque o combinado é que o SUS atende todo cidadão brasileiro. Pessoas que se recusaram a tomar a vacina não fizeram nada para mudar essa condição: você pode estar puto da vida com elas, mas elas são cidadãs brasileiras. E aliás, o SUS atende qualquer ser humano. Com certeza tem algumas tecnicalidades quando se fala de estrangeiros, mas ninguém fica sem tratamento no Brasil (pelos olhos da lei, na prática não conseguem mesmo).

“Mas a pessoa fez uma coisa errada!”

Criminoso também tem direito ao SUS. A polícia deixa a vítima e o bandido no hospital. Você pode até achar que é errado, mas é a regra. Ninguém pode ser excluído do SUS, não importa a opinião do resto das pessoas. Isso pode parecer bizarro, mas lembre-se: todos são inocentes até se provar o contrário. Já pensou se a moda de recusar atendimento pega? Basta acusar alguém de algum crime e o médico deixa morrer. Alguém inventa que você cometeu um crime, te dá um tiro, e antes de qualquer chance de julgamento, você morre no hospital porque o médico acreditou que você era um bandido…

Percebem que as leis não foram inventadas por alguém entediado? Existe uma lógica no funcionamento da sociedade, especialmente sociedades democráticas modernas, que aceitam pagar qualquer preço para não punir um inocente injustamente. Justiça não é só dar tiro em bandido, justiça é proteger o cidadão de abusos. Toda vez que você tem certeza que uma regra sem escapatória só vai punir gente ruim, você está se colocando numa armadilha que fatalmente vai voltar para te morder a bunda no futuro.

Eu uso a mesma lógica para defender o imbecil que se recusou a tomar vacina: o fato de eu não gostar dele não muda o funcionamento do Estado. Se eu sou contra a pena de morte, eu sou contra o SUS recusar atendimento a uma pessoa. Não dá para abrir mão de garantias como atendimento médico universal, é caminho certeiro para abusos. Imagina o precedente! O SUS se recusando a salvar uma vida! Sendo incapaz de salvar uma vida por condições precárias é uma coisa, mas fazer uma escolha consciente de negar atendimento como punição?

Médico pode tomar decisões técnicas sobre quem salvar numa situação extrema, mas não pode tomar decisões morais sobre quem merece sobreviver. E francamente, por mais merdas que sejam alguns médicos, eu ainda acredito que a maioria preferiria rasgar o diploma e ir vender coco na praia antes de quebrar o juramento. E os que topassem isso provavelmente precisariam de terapia depois… quem fez escolhas necessárias durante a pandemia já está despirocando, imagina só ver uma pessoa implorando para ser salva, se arrependendo amargamente da besteira que fez ao não tomar a vacina? Imagina a família dessa pessoa? Os que não entrassem em depressão provavelmente viveriam com medo de serem mortos por parentes de quem se recusou a atender.

É injusto com quem tomou a vacina e perdeu um leito por causa de um cretino que se recusou a tomar? É. Mas isso acontece todos os dias: sempre tem alguma pessoa ruim tomando lugar de uma pessoa boa no limitadíssimo SUS. Vai fazer o quê? Investigar a vida de cada pessoa antes dela entrar no hospital? Não é assim que nada funciona, e por um bom motivo. Tem coisa que simplesmente não tem como fazer na vida real.

O Estado não pode perder a razão. O mundo é um lugar muito complicado, e nos resta lidar com isso.

Para dizer que eu tenho que levar para casa e cuidar, para dizer que não é justo, ou mesmo para dizer que eu sou esquerdista/comunista/reptiliano: somir@desfavor.com

SALLY

É justo excluir quem se recusou a tomar vacina do tratamento do SUS?

Sim, é justo. O SUS não dá conta de atender a todos, portanto, se alguém vai ficar de fora, que sejam os idiotas que não se vacinaram. Hora de ensinar um mínimo de senso de responsabilidade para esse povo.

A primeira vez que escutei alguém falando isso, foi o Drauzio Varella, uma das pessoas que menos julga e que mais paciência parece ter. Lembro que quando vi uma entrevista dele defendendo responsabilizar quem optou por se colocar em rico pensei “se até essa criatura bondosa e pacífica defende isso, não deve ser um absurdo tão grande”.

É muito fácil jogar toda responsabilidade para o Estado. “Saúde é dever do Estado”. Parecem crianças, fazendo merda e depois cobrando que saúde é dever do Estado. Não, sua saúde é sua responsabilidade em primeiro lugar. E, já que o Estado se provou ineficiente em atender a todos (inclusive antes da pandemia), acho que é hora de fazer escolhas.

Não vejo motivos para salvar uma pessoa que se recusou a tomar a vacina e ficou gritando “aglomero mesmo” quando uma mãe de três filhos que fez tudo certo vai morrer na calçada do hospital por falta de atendimento. Vacinas são obrigatórias no Brasil, o fato de não pegarem as pessoas pela orelha e vacinarem à força não quer dizer que elas sejam opcionais. Saúde pode ser obrigação do Estado, mas também é do cidadão, sobretudo em questões de saúde coletiva.

Quer se destruir? Quer se colocar em risco? É um sagrado direito seu. Mas não espere que o Estado (com o dinheiro de todos vocês, contribuintes) limpe sua bunda depois. Se limpe sozinho. Correu um risco e deu errado? Custeie seu tratamento e deixe leitos livres para quem fez tudo certo e ainda assim foi vítima de infortúnio.
Não dá para falar de Brasil e tratar como se fosse um mundo ideal. Não é. É um mundo desigual, feio e injusto. Em um mundo ideal, um sistema de saúde atenderia a todos independente de fatores externos. No Brasil, o cobertor é curto e morre muita gente por falta de tratamento, então, sim, eu sou a favor de priorizar quem não escolheu se matar. É tão errado assim?

Acredito até que se a pessoa souber que não vai poder contar com o SUS, repense melhor os riscos nos quais se coloca. É muito fácil tirar onda, não se vacinar, pensando que se pegar pegou, que de um jeito ou de outro vai receber tratamento. Se essa pessoa soubesse que teria que desembolsar uma pequena fortuna se fosse contaminada pelo coronavírus, talvez tomasse vacina pelo receio de mexerem onde dói: no bolso.

Cuidado com as falsas premissas. O que se pergunta hoje não é se o Estado deve atender a todos ou negar atendimento a alguns. Isso não está na mesa, o Estado simplesmente não vai dar conta de atender a todo na pandemia. Fato. Na verdade, o que se pergunta hoje é se devem priorizar a quem salvar, dando prioridade a quem não se expôs voluntariamente a um risco.

Por mais que tenha seus méritos, o SUS é deficiente e muitos serão excluídos de seu atendimento até essa porcaria de pandemia acabar. É inevitável, vai ter gente que vai precisar de atendimento e não vai receber. O que eu proponho não é negar atendimento por vingança a quem poderia ser atendido. Não é sobre punir, é sobre responsabilizar. E no Brasil há uma enorme confusão, o povo é tão imaturo que entende responsabilização como punição.

O que eu proponho é que esse grupo que inevitavelmente ficará sem atendimento seja daqueles que se recusaram a tomar uma vacina que poderia evitar em 100% essa necessidade de atendimento. É obrigar as pessoas a assumirem responsabilidades por suas escolhas. Não é “se faltar leito”. Vai faltar. Já faltava normalmente. É quando faltar leito, quem não se vacinou não será atendido.

Repito: nem o SUS nem sistema de saúde algum tem condições de dar atendimento a todos quando boa parte deles se recusa a tomar vacina. Vai colapsar. É justo excluir quem não teve acesso à vacina, enquanto quem teve e a recusou ocupa os poucos leitos e medicamentos que restam?

Esse Estado paternalista que vive de limpar a bunda dos outros é, em boa parte, responsável pelo que se tornou o brasileiro: um povo infantilóide, sem iniciativa e eternamente dependente. Hora de começar a responsabilizar as pessoas por suas escolhas e priorizar quem joga a favor do bem-estar coletivo, e não contra.

Curioso que as pessoas têm muita facilidade em sugerir que tem que “deixar morrer” bandido baleado, pois ele é um risco para a sociedade. Pois, adivinha só: não é só bandido que pode matar a sua mãe, negacionistas filhos da puta que não se vacinam podem ser responsáveis por criar uma nova cepa do vírus que burla as vacinas que existe, ou seja, todo o trabalho para vacinar toda a população pode ir ralo abaixo e, no final das contas, matar sua mãe também.

Sério que vocês acham que quem coloca em risco o bem-estar da coletividade dessa forma, nessa proporção, merece algum amparo do Estado? Por mim amarrava uma pedra no tornozelo e mandava fazer trabalhos forçados na Sibéria, mas como isso não é permitido pela lei brasileira, acho apenas justo priorizar o atendimento de quem não colocou a vida dos outros em risco.

Não se iludam: não vai ter como atender todo mundo, como já não está sendo possível em muitos lugares onde a nova cepa chegou com força. Uma pessoa que não se vacina não é só um problema para ela ou para a família dela, ela é um problema para a sociedade toda, pois permite que o vírus continue circulando e sofrendo mutações.

Essas pessoas têm que ser desencorajadas de todas as formas possíveis na tentativa de impedir que prejudiquem a sociedade toda: impedir que filhos se matriculem em qualquer escola sem as vacinas correspondentes, serem demitidas do trabalho caso se recusem a tomar vacina, serem impedidas de viajar, pagarem um imposto por não tomar vacina e tudo mais que vocês imaginarem, inclusive perder a cobertura do SUS.

Desculpa, mas o brasileiro, em sua maioria, e bicho. E tem que ser tratado como tal. Tem que aprender que ações tem consequências. Garanto que pelo menos metade que está bravateando que não vai tomar vacina muda de ideia se souber que não vai ter para onde correr caso fique doente.

Para dizer que concorda com a proposta da Sibéria, para dizer que vacina deveria ser obrigatória e compulsória ou ainda para tentar comparar resguardar a saúde pública a algum tipo de totalitarismo: sally@desfavor.com

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Comments (14)

  • Deveriam sim obrigar vacinação pra usuários do sus, e se o governo não obrigar, as empresas privadas vão. Ninguém quer arcar com o prejuízo financeiro do movimento antivacina. O próprio governo obriga a apresentação da carteira de vacinação pra alistamento militar, e é possivel que ampliem a obrigação das vacinas pra todos os usuários do bolsa família, não apenas pros menores, que não receberão a vacina contra covid agora. Com o aval do governo, empresas poderão demitir por justa causa quem recusar vacinação. Tb não querem arcar com o risco processo se o empregado comprovar que pegou covid no trabalho, por essas e outras imagino empresas exigindo comprovante de vacinação pra participar de processos seletivos.

  • Infelizmente nessa discussão estou com a Sally, mas na forma do Somir. Acho que deveria ser regulamentado em lei, o acesso à serviço público de saúde dependente de vacinação em dia.

    • Brasileiro não obedece lei e o Brasil não fiscaliza nem pune quem não obedece lei.
      Tem que ser no dardo tranquilizante. Polícia sobra uma zarabatana e joga um dardo tranquilizante no pescoço do negacionista, esperam apagar e vacinam ele quando está inconsciente!

    • Faço minhas as suas palavras, Fernando. E, Sally, do jeito que a coisa vai, eu não vou me surpreender nadinha se daqui a pouco aparecer alguém aqui para “tentar comparar resguardar a saúde pública a algum tipo de totalitarismo”…

  • Não deveriam ter acesso à SUS e nem a UTI. Deixa pra quem realmente se preocupou. E penso que esses anti-vacina estão cada vez ganhando maias ganhando aliados. Conheço enfermeiro que está negando a vacina “da China”

    • Enfermeiro, médico e outros profissionais da saúde estão estimulando que pessoas não se vacinem, publicamente.
      Tinha que vacinar debaixo de porrada.

  • É adorável quando dizem que não vão se vacinar, assim a fila anda mais rápido e sobra mais pra quem quer! E nem adianta debater se seria justo ou não, porque na pratica o SUS não exclui ninguém e também mal funciona.

    • Não, não é. Não adianta nada sobrar vacina a rodo e “quem quer” se vacinar se tem gente sem vacina que faz o vírus continuar circulando e sofrendo mutações. Uma hora ele sofre uma mutação que burla a vacina que as pessoas tomaram e voltamos à estaca zero.

  • Concordo com a Sally. Mas discordo de ambos sobre a relevância de movimentos anti vacina no Brasil.
    Antivaxxers são minoria da minoria, e muitos deles vão acabar tomando a vacina quando verem as possíveis consequências e sanções pra quem não tomar. A maioria quer se vacinar pra poder “voltar à vida normal logo”. Qualquer coisa é só colocar essa vacina como critério pra receber auxílio estatal. O problema é ter estoque suficiente…

    Vai ter falsificação de carteira de vacinação? Vai, mas porra, se for levar em conta que sempre vai existir alguém pra burlar regras e leis e se portar feito macaco, a humanidade não faz mais nada.

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