É dose dupla…

Tarcísio Meira morreu aos 85 anos de idade nesta quinta-feira (12). O ator foi vítima das complicações da Covid-19 e havia sido internado no Hospital Albert Einstein, em São Paulo, no dia 6 de agosto, com a mulher, Glória Menezes. LINK


Mais uma morte de famoso por Covid, mas essa está sendo desvirtuada porque o ator já tinha tomado as duas doses. Desfavor da Semana.

SALLY

Era a faísca que faltava para reacender a hedionda fogueira que coloca em questão a eficácia das vacinas ou de algumas vacinas: o ator Tarcísio Meira faleceu esta semana, mesmo estando imunizado com duas doses de vacina (tomou a segunda dose em março deste ano). Pronto, todas as vidas salvas por vacinas parecem esquecidas.

Sua morte foi justificativa suficiente para que o brasileiro médio pegue a ciência, esfregue na bunda e jogue no lixo. As barbaridades que estão dizendo só não viraram “Ei Você” por ele ter morrido na quinta-feira, depois que a coluna foi ao ar. O tipo de busca que está chegando por aqui é simplesmente deprimente.

Cansamos de explicar em outras postagens: vacina não é mágica. A vacina faz a parte dela, mas pode ser que, por inúmeros motivos, o seu corpo não consiga fazer a parte dele. Por isso, vacinados tem que continuar se cuidando. Você só descobre que algo falhou no processo de imunização quando adoece. Quer descobrir assim, pagando para ver?

Quando se diz que uma vacina tem X% de eficácia se fala, em média, de organismos cujo sistema imune esteja funcionando bem. Se o seu sistema imune estiver funcionando mal, você pode tomar a Pfizer benzida pelo Papa Francisco que, ainda assim, ela pode não ser capaz de te proteger. Felizmente, são poucos os casos em que isso acontece. Mas acontece.

Desmerecer algo com o argumento de que “falhou” é de uma desonestidade intelectual (ou burrice, que é sempre uma possibilidade) sem precedentes. Se uma vacina protegeu 96% das pessoas que a tomaram de morrer, ela funcionou, no saldo geral. Ou por um acaso os pequenos alecrins dourados exigem absoluta perfeição para que algo seja classificado como positivo e eficaz?

Um estudo da USP indica que, entre todas as mortes por covid que ocorreram no Brasil, apenas 3,68% são de pessoas completamente imunizadas. Ou seja, se você tomou a vacina, em média, tem 96% de chances de sobreviver se pegar covid. Você acha que isso é uma vacina merda? Vão tomar no cu. Ano passado estávamos todos implorando para que conseguissem desenvolver uma vacina e este ano tem gente reclamando de 96% de prevenção contra morte? Só dando tapa na cara mesmo.

A vacina funciona. Isso está cientificamente provado. Existem fatores conhecidos capazes de reduzir a eficácia de uma vacina: com a idade avançada o corpo vai perdendo a capacidade de combater qualquer vírus, gerando uma resposta imune menor, doenças preexistentes, tratamentos que afetem o sistema imune (como quimioterapia, por exemplo) e outros já discutidos na nossa coluna FAQ Covid. Então, não depende só da vacina. Ela faz a parte dela. A pessoa que a tomou fez a sua parte?

É como encher um carro cujo motor não funciona com a melhor gasolina do mundo. O carro não terá a capacidade de processar esse combustível e andar. Tanto faz se você coloca a melhor gasolina do mundo ou urina, se o motor não funciona direito, ele não vai ligar e ponto final.

Outra mentira que circula: não adianta ficar em casa, pois o ator estava em quarentena e morreu mesmo assim. Adianta sim, a própria família dele declarou, publicamente que, apesar de estar em isolamento social, ele teve contato com o coronavírus “em um momento de descuido”. A vacina fez a parte dela. O vacinado não.

Outro tremendo desfavor: pessoas como Felipe Neto (também com covid) perpetrando: “ain, eu não saio para nada e peguei”. Fica parecendo que isolamento social não funciona. Pois é, meu anjo. Não adianta “não sair para nada” e ter uma horda de criados na sua mansão. Isolamento social é, além de não sair, não receber ninguém na sua casa.

Limpa sua privadinha, varre seu chãozinho, cozinha sua comidinha que você não pega o vírus. Tem empregada? Está correndo risco, mesmo que ela faça PCR toda semana, você pode acabar contaminado. Botou empregada ou cuidadora para os seus pais/avós? Estão correndo risco também. Vamos repetir mais uma vez: essa crença falsa que fazer PCR impede contágio não deu certo nem na Casa Branca, imagina se vai dar na sua.

As pessoas gostam de acreditar que não, que não há risco, aí vem a realidade e esfrega a verdade na cara. O que as pessoas fazem? Aprendem? Não. Assumem responsabilidade? Não. Culpam as vacinas. Dá vontade de chorar.

Não foi a vacina do Tarcísio Meira que falhou. Foi o seu sistema imunológico. Foi a falta de cuidados no isolamento social. Foi a falta de vacina do resto da população. Se todos estivessem imunizados em maio de 2021, o que poderia ter acontecido se as vacinas fossem compradas da forma correta, talvez a pessoa que contaminou o ator não tivesse pegado covid. Foi tudo, menos a vacina.

Mas, no Brasil, a culpa é de todo mundo menos de quem realmente tem culpa. Não é da pessoa/família que cometeu “um descuido”. Não é do governo que, passados muitos meses, tem pouco mais de 20% da população imunizada, não é das pessoas, que ficam bundeando inclusive quando sabem que estão contaminadas. A culpa é da vacina, que não foi mágica, perfeita, infalível. Se não for do jeitinho que eu quero, do jeitinho que eu idealizei, se não resolver todos os meus problemas, não presta. Não é assim que a ciência funciona!

E essa mentalidade bosta não vale apenas para vacinas. Brasileiro acha que o político X vai resolver todos os problemas. Que o remédio Y vai resolver todos os problemas. É tudo fora, é sempre algo mágico externo que vai deixar as coisas como ele quer que sejam.

Pois adivinha só? Isso não existe. Pessoas normais deixam de acreditar em mágica quando crescem. Só quando somos crianças vem alguém e resolve todos os nossos problemas, quando crescemos, nós temos que fazer a nossa parte também.

Não existe nada mágico que, por si só, impeça que você morra. Você tem que fazer a sua parte também. Não existe um político mágico que vá resolver a situação do país, você tem que fazer a sua parte também. Só quando você era criança que seus pais faziam tudo e tudo aparecia resolvido, agora que você é adulto, isso acabou. Você tem parcela de responsabilidade em tudo e, se não fizer a sua parte, vai viver frustrado, reclamando e se fodendo.

E, fazer a sua parte é FAZER a sua parte e não planejar fazer a sua parte, ficar colocando empecilhos para fazer a sua parte ou ficar falando em fazer a sua parte e nunca fazer. É FAZER, CARALHO. Saiam do mental e comecem a se tornar executores, caso contrário vão passar o resto da vida se fodendo, colocando a culpa e reclamando do que está fora, do que deveria ter resolvido tudo e não resolveu.

A gente não pensa duas vezes antes de meter o cacete em algo, somos extremamente críticos e, ainda assim, estamos dizendo: a culpa é de todo mundo menos das vacinas. Cresçam.

Para dar uma boa desculpa (todo mundo tem) do porquê não está fazendo a sua parte, para dizer que o governo tem que fazer a sua parte por você ou ainda para dizer que não sabe preparar sua comida: sally@desfavor.com

SOMIR

Regras são importantes, é claro. Elas equilibram o jogo e criam uma espécie de “bom senso coletivo” essencial para a vida em sociedade. A maioria das pessoas tem alguma noção de quais regras são mais importantes, mesmo que discordem entre si sobre quais seriam essas regras. O conceito está arraigado na mente humana de tal forma que quase todos os conflitos políticos do mundo são baseados no conjunto de regras que cada grupo quer impor sobre os outros.

O problema é que a ideia é tão básica para o ser humano que muita gente esquece de pensar sobre essas regras. Elas existem por algum motivo, elas devem existir se o resultado final for considerado positivo para uma sociedade. Infelizmente, acabamos vendo que boa parte da população mundial as segue apenas por hábito e medo de consequências. Quando você entende a regra, a chance de você a seguir aumenta imensamente: não precisa de alguém “marcando em cima” da pessoa.

Já falei algumas vezes sobre como alguns religiosos me deixam chocado ao perguntar por que um ateu não mata, rouba e estupra se não acredita num deus… na verdade, eu que deveria me espantar pela pessoa não saber essa resposta. Se ela só não faz essas coisas por medo de represália divina, é porque não entendeu nada sobre o que faz uma comunidade funcionar.

Pois bem, essa introdução serve para estabelecer o ponto sobre vacinas: se você não entende a lógica da regra de se vacinar contra uma pandemia, não além de uma solução mágica para o problema, você corre o risco de causar mal para você e para as pessoas que gosta assim que estiver diante de uma informação como a morte por Covid de uma pessoa que já foi vacinada duas vezes.

Talvez você ache que a vacina não funciona, ou que não funciona o suficiente para valer os riscos de efeitos colaterais. E se você acha isso, falta conhecimento de causa sobre a regra de vacinar todo mundo. O texto da Sally está muito didático, não preciso ficar repetindo a parte técnica, só vou reforçar o conceito básico: a vacina reduz imensamente sua chance de morrer pela doença. Algumas são mais capazes de evitar que ela sequer comece, outras são mais eficazes no apoio ao corpo para vencê-la depois de instalada.

Mas todas seguem a mesma ideia central: dar ferramentas para o seu sistema imunológico enfrentar um inimigo. Coisa que ele faz o tempo todo, lutando contra infecções, vírus e outros tipos de adversários microscópicos a cada oportunidade oferecida. Um pequeno corte no seu dedo já é uma invasão gigantesca de bactérias, que precisam ser destruídas o mais rápido possível. Se tem uma coisa que nunca para no corpo humano (vivo) é o sistema imunológico.

A vacina permite que o corpo se prepare para o caso de um ataque real. É treinamento militar numa ampola. Seus soldados já sabem o que fazer, mas o tamanho do exército é o mesmo. Por isso que em pessoas mais velhas ou com alguma outra característica que impeça o funcionamento ideal do sistema imunológico, existe um risco maior das coisas darem errado, mesmo com a vacinação em dia.

Nenhum vacina é capaz de impedir a morte de uma pessoa por uma doença com 100% de eficácia. Ela é campo de treinamento, não o exército em si. Se o seu exército é poderoso, é provável que ele ganhe a guerra até mesmo sem vacina, mas com ela pode resolver tudo muito mais rápido e você nem perceber que foi atacado. Se o seu exército está meio enfraquecido, o treinamento ajuda tanto que quase sempre ele vence no final das contas. Mas existem variáveis: se o seu exército é meio brasileiro e só tem munição para 24 horas de guerra, você vai depender também de um pouco de sorte do inimigo não vir em números muito grandes.

No final do dia, ainda é uma guerra de atrição: o adversário está se reproduzindo dentro do campo de batalha enquanto está sendo atacado pelo sistema imunológico. Os dois exércitos trocam tiros e vão fazendo estragos um no outro. Via de regra o corpo humano vence (sério, é provável que seu sistema imunológico nunca tenha parado de trabalhar desde que você nasceu), mas como bem sabemos, às vezes ele perde.

E aí, o ser humano tem uma segunda linha de defesa na medicina. Que fica cada vez mais capaz com o passar das décadas e séculos, mas que ainda não está nem perto de ter o mesmo grau de sucesso do sistema imunológico natural. Tarcísio Meira teve basicamente todo o poder de fogo do seu corpo somado ao suporte da vacina e dos melhores hospitais do país, mas não foi o suficiente. Triste, mas acontece.

Não muda a lógica da regra: todo mundo tem que se vacinar, porque quanto mais exércitos bem treinados, menor a chance do vírus continuar circulando e pegando gente que apesar de tudo, não vai conseguir vencer sua guerra pessoal. Se você entende a regra, não vai ter dificuldades de seguir, mesmo quando algo parece estranho. Porque você vai perceber rapidamente que não é nada de estranho, é apenas a natureza agindo como sempre agiu.

Fico triste pela família que perdeu uma pessoa querida, mas não muda nada. Vacina ainda é nossa melhor chance.

Para dizer que escrevemos para quem já entende, para dizer que não confia em algo que vem se provando eficiente há séculos, ou mesmo para dizer que foi por ser feito na China (tudo é feito na China): somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Bernardino Teixeira

    Infelizmente, somos um povo sem educação e sem memória: qualquer um se acha cientista, se acredita especialista em qualquer assunto (os youtubbers tupiniquins bastam fazer um vídeo para ser considerado um dogma; se opõe é cancelado na hora).
    Se TODOS (inclusive o nosso PR, que deveria ser o primeiro a dar o exemplo) mantivessem o distanciamento social, usassem máscaras/álcool em gel e tomassem QUALQUER VACINA a pandemia já teria sido controlada há meses.
    Agora basta uma fatalidade para que toda a ciência seja colocada em xeque. Trágico.

  • E o Silvio Santos internado, aí os conspiracionistas já inventaram outra novidade. Agora estão falando que quem toma as 2 doses morre e ninguém tira isso da cabeça deles. Agora que fodeu de vez a chance de 85% de imunizados.

  • Um fato triste e muito difícil de reverter: a quase totalidade da população brasileira é analfabeta em matemática. Conceitos muito básicos como porcentagem não fazem sentido para essas pessoas. Então não adianta de nada ficar falando 96%. Probabilidade não existe nem como conceito. É tudo ou nada. Protegeu ou não. Morreu ou não.

    • Em um FAQ eu usei uma analogia com futebol que todo mundo usa: se o seu time chega ao final do campeonato, depois de cem jogos, com apenas 4 gol tomados, você teria coragem de dizer que seu time tem um mau goleiro por não ter apresentado uma atuação perfeita e zero gols tomados?

      E teve gente dizendo que sim, que consideraria um goleiro ruim, que goleiro bom não deixa entrar nada em cem jogos. Se essas pessoas dessem, em seus trabalhos, o grau de excelência que cobram do resto, o Brasil seria o país mais evoluído do mundo.

      • Parece arrogância ou estupidez, mas é só ignorância mesmo. A pessoa não sabe o que é porcentagem, o que é probabilidade, nunca usou na vida mesmo. Talvez tenha ouvido falar na escola.

    • “Um fato triste e muito difícil de reverter: a quase totalidade da população brasileira é analfabeta em matemática.” Verdade, Fernando. E concordo. Qualquer coisa envolvendo números, mesmo as muito simples, é, para a BMzada, uma tortura ou um enigma. Aliás, será que essa constatação renderia um texto, seu, ou da Sally, ou do Somir, ou de algum outro impopular; sobre como e por quê tanta gente ainda encara a matemática como um bicho de sete cabeças? Por fim, eu acho sensacional uma definição da própria matemática dada por uma frase atribuída a Galileu Galieli: “A matemática é o alfabeto com o qual Deus escreveu o universo.”

      • Um dos motivos, W.O.J, é que a matemática é ensinada de maneira errada já desde pequeno. Ensina-se apenas decoreba de fórmula e pronto, não instiga o aluno a pensar e raciocinar, buscar a solução de problemas, enfim.

      • Só agora é que eu vi: eu escrevi “Galileu Galieli” no meu comentário anterior. Era “Galileu“, claro. Desculpem…

      • Não só em matemática, mas em noções básicas de ciência e até mesmo linguagem. Os alunos são condicionados a enxergar o aprendizado como chato e difícil, alguns professores não ajudam a tirar essa impressão e no final das contas a criatura decora um conceito e não enxerga como ele funciona na realidade. É um problema bastante estrutural, mas nós precisamos tomar responsabilidade para aprender e fazer a nossa parte. Nenhum milagre vai acontecer pra consertar.

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