Mentes doentes.

Mais de um em cada sete meninos e meninas com idade entre 10 e 19 anos viva com algum transtorno mental diagnosticado, de acordo com relatório global do UNICEF The State of the World’s Children 2021; On My Mind: promoting, protecting and caring for children’s mental health (Situação Mundial da Infância 2021; Na minha mente: promovendo, protegendo e cuidando da saúde mental das crianças). Pesquisa também mostra que quase 46 mil adolescentes morrem por suicídio a cada ano, uma das cinco principais causas de morte nessa faixa etária. LINK


Já que a pandemia está nos dando um respiro, está na hora de olhar para algo que ela só piorou: o estado lastimável da saúde mental do ser humano, especialmente os mais vulneráveis. Desfavor da Semana.

SALLY

Um tema leve, descontraído e alegre para o sábado de vocês: suicídio de crianças. Desfavor, de onde não se espera nada é que não sai nada mesmo.

Desagradável, eu sei. Mas se a gente estivesse preocupado em agradar, escrevia mainstream com monetização e não precisava mais trabalhar. Nosso objetivo sempre foi tentar fornecer uma via alternativa de conteúdo e falar o que mais ninguém está falando. E hoje, a paulada da vez é: a saúde mental do seu filho é sua responsabilidade, tanto quanto a saúde física – e se você não sabe cuidar nem da sua, não vai saber cuidar da do seu filho.

Como a própria matéria diz, a pandemia é “a ponta de um iceberg” quando falamos em saúde mental e suicídio. Não dá para dizer que “lockdown faz crianças se matarem”, o que podemos dizer é que uma pandemia, e tudo que ela implica, que vai muito além de uma quarentena (medo, crise econômica, mudança de rotina, etc.) agrava ou faz explodir algo que já estava latente.

Não faz muito tempo eu escrevi um texto aqui sobre como se trata mal e de forma inadequada quem tem uma doença mental e nesse texto cito que quase 97% dos casos de suicídio estão, de alguma forma, relacionados a uma doença mental. Então, acredito que seja por esse ângulo que a coisa mereça ser olhada.

Situações de medo, ansiedade e estresse são estopim para muitas doenças mentais. Não digo que são causadoras, pois o buraco é bem mais embaixo, mas podem sim ser um start. É como dizer que um susto matou uma pessoa: a pessoa que morre de um susto já tinha um problema cardíaco anterior (sabendo dele ou não), que iria se manifestar cedo ou tarde, mas o susto acelerou e agravou o processo.

Se já se trata de forma errada, cruel e desumana um adulto com uma doença mental, imagina uma criança ou um adolescente. Quantos não estão em agudo sofrimento neste exato momento e as pessoas que os cercam não identificam uma doença mental e sim “frescura”, “é da idade”, “está querendo chamar a atenção” ou nem sequer percebem, tão imersos em seus trabalhos, vidas amorosas e redes sociais.

Mesmo sem dados oficiais, eu arrisco dizer que as crianças e adolescentes que tem alguma doença mental com o devido diagnóstico, tratamento médico, psicológico e postura adequada de seus pais são uma ínfima minoria. É aquele mesmo argumento do texto que escrevi no mês passado: doença mental é visto como sinônimo de loucura, se não rasga dinheiro ou come cocô, presumem que não há doença mental, deve ser preguiça, deve estar usando drogas ou vai passar.

Não tem que presumir. Se o seu filho sente uma dor persistente na barriga, você presume o que é ou vai em um médico, que tem capacidade de descobrir e tratar o problema? O que te faz pensar que você pode compreender, diagnosticar ou presumir o que seja o sofrimento alheio? Não tem que presumir que é uma fase, não tem que presumir que vai passar, não tem que presumir nada. Tem que consultar quem sabe, quem pode diagnosticar. Se um sintoma emocional apareceu, vou repetir para ficar fixado, tem que consultar quem sabe, quem pode diagnosticar.

Eu sei que a maioria não o faz por maldade nem por crueldade, e sim por acreditar que se não der atenção ao sofrimento dos filhos isso “vai passar sozinho” ou pior, que se der, está recompensando o sofrimento e ele vai aumentar. Novamente: não tem que presumir porra nenhuma do que suas ações vão gerar, tem que consultar um especialista. E o especialista da mente humana é o psiquiatra ou o psicólogo. Não o terapeuta holístico, não o centro espírita, não pastor. Profissionais que estudaram um processo científico que se mostrou apto a diagnosticar e tratar pessoas.

E, mesmo depois do diagnóstico, a maioria dos pais não age da melhor forma. Deixa fazer uma perguntinha aqui para vocês: se seu filho quebra uma perna e fica com gesso por um mês, você o obriga a fazer aula de educação física? O obriga a cortar a grama? O obriga a levar o cachorro para passear? Não, né? Há uma condição que o torna vulnerável, há a necessidade de que ele seja poupado de certas coisas para que possa melhorar. Pois bem, o mesmo vale para saúde mental. Pessoas que estão passando por esse problema precisam ser poupadas. Você não pode ver e sentir a fratura, mas, acredite, ela está lá.

O problema é que muitas vezes isso é visto como “passar a mão na cabeça” ou como algo que endossa a situação e a faz perdurar. Muito pelo contrário. Não poupar quem tem uma doença mental é que faz a coisa perdurar e se agravar. É uma perna quebrada na mente. São pessoas que merecem um desconto até se recuperarem: menos cobrança, menos brigas, mais ajuda, mais acolhimento. Uma perna quebrada não cicatriza bem se a pessoa corre uma maratona, uma doença mental não melhora se a pessoa é exposta a estresse, ansiedade, pressão e medo.

Mas parece que estender a mão para seu filho (ou para quem quer que tenha uma doença mental) é errado, é abaixar a guarda, é dar brecha para abusarem da sua boa vontade. Vem cá, que tipo de ser humano você criou para pensar uma coisa dessas? Ou, de que tipo de pessoa você se cerca, para pensar uma coisa dessas? Dar acolhimento a quem tem uma doença mental não é alimentar a doença mental, é começar seu processo de cura.

Agora que o elefante branco saiu da sala (mil mortos por mês, hospitais lotados, gente sem poder trabalhar), acho que passou da hora da gente olhar para quem já tinha rachaduras antes da pandemia e, com ela, quebrou algum pedaço. Passou da hora de entender que doença mental não difere de uma perna quebrada ou de apendicite: precisa de diagnóstico médico, tratamento e alguns cuidados na rotina até a completa cura.

Doença mental é algo que pode acontecer com qualquer um de nós. Ninguém está livre disso. Não é babar em uma camisa de força enquanto se grita que alienígenas vão te pegar. Doença mental pode ser sutil, pode ser uma insônia persistente, ou uma tristeza que não vai embora, ou uma vontade de não levantar da cama de manhã, ou uma dificuldade maior para fazer as suas tarefas diárias, ou uma angústia sem motivo, ou um pensamento ruim que não te deixa, ou um sono excessivo, ou um desânimo que não vai embora, ou um não achar graça em nada ou muitas outras coisas.

Deixa eu falar muito sério com vocês, guardem esta informação: a vida não tem que ser difícil, não tem que ser um esforço, não tem que ser sofrida. Se a sua vida É difícil procure ajuda. Eu sei que todo mundo passa por fases em que a vida não está boa momentaneamente, é normal, mas se isso dura muitos meses, procure ajuda antes que você normalize o sofrimento e atole nele, ou normalize o sofrimento do seu filho e permite que ele se atole nele. Uma coisa é a vida estar difícil (temporário) outra é a vida SER difícil.

Tem milhões de jovens que, neste exato minuto, precisam de ajuda, de diagnóstico, de tratamento e de acolhimento – e pode não o encontrar, culminando em suicídio. Não presuma o que significa um comportamento diferente, um estar mais calado, um chorar sem motivo, um não querer sair de casa. Não presuma, você não tem estudo e experiência para saber, como não teria para operar um coração ou diagnosticar um tumor. Não presuma. Na dúvida, procure ajuda, procure um psiquiatra ou psicólogo, procure um diagnóstico profissional.

E, não importa qual você ache que seja a natureza do sofrimento de alguém, acolha a pessoa. Mesmo que o motivo te soe como não justificável, o sofrimento é real. Ninguém fica pior, mais mole, mais acomodado por ser acolhido e validado, muito pelo contrário.

Dar “porrada” em quem está mal não ajuda a levantar. Cobrar não ajuda a levantar. Dizer que deveria agir diferente quando a pessoa não consegue fazer diferente não ajuda a levantar. É como aqueles pais sem noção que pegam uma aranha e jogam dentro da blusa da criança que tem medo de aranhas “para acabar logo com esse medo”. Não. Apenas parem. Não validar o sofrimento alheio e não o acolher só vai piorar a situação.

Confiem nos filhos que vocês criaram e estendam a mão quando acharem que eles precisam de ajuda.

Para dizer que não vai dizer nada pois está chorando, para dizer que eu não posso falar nada por não ter filhos ou ainda para dizer que “só estão querendo chamar a atenção”: sally@desfavor.com

SOMIR

Toda ação gera uma reação. Vivemos num universo governado por leis fundamentais que garantem a mudança constante é a única certeza. A pandemia não pode ser considerada finalizada, mas com a redução do número de casos e mortes proporcionada pelas vacinas, começamos a ver o resultado de mais de um ano e meio de crise global.

O preço da gasolina é um deles, mas passa longe de ser o único. Ainda não sabemos a extensão dos danos que as sequelas do Covid-19 vão causar na população mundial, apenas que com certeza elas vão ter algum papel no futuro próximo da humanidade. Além de casos mais óbvios como comprometimento de capacidade pulmonar, muita gente relatou problemas de memória, concentração e até mesmo coordenação após se recuperar do estágio mais grave da doença.

Redução de oxigenação e resposta imunológica extrema são o tipo das coisas que podem causar problemas cerebrais. Muita gente vai precisar de ajuda para se recuperar (ou aprender a conviver) dessas sequelas. Mas essas não são as únicas cicatrizes da pandemia: por baixo das sequelas mais evidentes, estará uma onda de problemas mentais.

Passar por mais de um ano de “novo normal” obviamente vai gerar uma reação. Eu mesmo tive meus problemas nessa área de saúde mental nesse meio tempo, mas eu já tinha experiência suficiente para ir buscar ajuda profissional e, ainda bem, um entorno de pessoas que entendiam a situação. Ainda estou em tratamento, mas não vivendo nem 1% do sofrimento que senti da primeira vez que precisei de ajuda e não sabia o que fazer.

Todo mundo pode ficar gripado, todo mundo pode ter dor de barriga, todo mundo pode quebrar um osso, todo mundo pode ter uma doença mental. Basta ter um cérebro para ter a chance de ter um desequilíbrio químico ou um caminho neural indesejável. Apesar de achar que não faz sentido glorificar problemas mentais como uma parte da grande mídia (influenciada por ativistas exagerados) acaba fazendo, a ideia de normalizar a doença mental é essencial para uma humanidade mais saudável no longo prazo.

Trate da gripe, trate da dor de barriga, trate do osso quebrado e trate da doença mental. Psicólogos e psiquiatras são treinados para reconhecer padrões e aplicar tratamentos nessa área. Evidente que existem profissionais ruins em qualquer profissão, mas ninguém deixa de ir ao cardiologista depois de sentir uma pontada no peito porque alguns cardiologistas são ruins, né? É só mais um médico ou profissional que você vai visitar quando precisa de seus serviços.

Acho importante ressaltar isso porque foi justamente a falta desse entendimento que me causou muitos problemas no passado. Quando eu achava que era coisa de maluco e que dava para resolver “pensando”, eu só consegui me enfiar numa espiral de sofrimento que piorou tudo. Vencendo a resistência, eu fui me tratar, e veja só, em pouco tempo as coisas começaram a melhorar, até o ponto onde eu não conseguia mais acreditar quanto eu me deixei sofrer à toa por tanto tempo.

Tem doença que passa sozinha, tem doença que precisa de remédio, análise ou mudança de hábitos. Você dificilmente vai saber qual é o caso sem ajuda profissional. Se tem uma regra básica da medicina, ela é que quanto mais cedo você diagnostica uma doença, mas fácil é tratar dela. Acho que pelo estresse da pandemia, eu tive alguns problemas de ansiedade no começo do ano, só que dessa vez, uma semana depois de sentir incômodo para realizar tarefas básicas da vida, eu já estava numa consulta com um psiquiatra. Ansiedade nível doença é um saco, demora para tratar, mas tem solução. E o tratamento melhora absurdamente a qualidade de vida enquanto o problema não for resolvido.

Vou dizer que estou melhor agora que estava antes? Claro que não. Doença é doença, não deixa ninguém mais feliz na média. Mas eu vivi os dois lados da moeda: doença tratada é mil vezes mais fácil de lidar que doença não tratada. Obviedade, eu sei, mas desde que você entenda a questão básica: dor emocional não é muito diferente de dor física. Se passar sozinha, excelente, mas se não passar, tem que ir atrás de uma solução!

Me permito a arrogância: se desse para curar na racionalidade, eu teria conseguido. É que não dá mesmo, são reações químicas indesejáveis que ninguém é capaz de controlar. Eu não consigo racionalizar a cura de um resfriado, então obviamente eu não consigo racionalizar a cura de uma doença mental. E antes que isso pareça uma crítica à psicologia, não é: nenhum terapeuta (decente) vai olhar para você e dizer “já tentou não ficar triste?”. Porque isso não faz sentido para ninguém. Psicologia é sobre conhecer a mente, não sobre controlar a mente.

A notícia fala sobre crianças e adolescentes, eu sei, mas eu uso meu exemplo adulto para dizer que só quem sabe o que fazer pode ajudar nesses casos. E saber o que fazer é entender que doença mental é doença como qualquer outra, que precisa ser tratada. É entender que doente não está em condições de igualdade com uma pessoa saudável. É entender que todo mundo pode ter e não é necessariamente culpa de ninguém. Pais não falham quando os filhos ficam depressivos, pais falham quando ignoram sinais óbvios de depressão nos filhos. Você não fracassa quando fica com uma doença mental, você fracassa enquanto não estiver tentando tratar a doença. Por sorte, basta estar vivo para ter alguma forma de resolver o problema, ou pelo menos aumentar muito sua qualidade de vida se ele puder ser resolvido de vez.

Infelizmente, muita gente acha que nunca vai ter fim e acaba sucumbindo à doença. É um absurdo que tanta gente tire a própria vida por causa de algo que pode ser tratado. Os últimos meses podem ter causado uma série de doenças mentais em pessoas que não tem preparação para lidar com elas, e provavelmente não vimos a real extensão disso ainda. As pessoas vão começar a sair da toca, vamos descobrir o tamanho do problema nos próximos meses. Então, se você está sentindo que precisa de ajuda ou se notar que uma pessoa próxima está precisando, coloca na cabeça que é uma doença e precisa de tratamento. Só isso e você já melhora sua vida e a vida de quem estiver ao seu redor.

Para dizer que eu ser ansioso não te surpreende, para dizer que fomos comprados pela Big Pharma, ou mesmo para dizer que quer voltar a ser macaco: somir@desfavor.com

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Comments (6)

  • Inclui no curso que leciono aulas sobre saúde mental com foco no equilíbrio entre trabalho/vida pessoal. Neste ano não tive uma turma sem que alunos me procurassem no particular para relatar desde ansiedade até casos de abuso sexual e as pessoas (em especial os mais jovens) não sabem a quem pedir ajuda. Achei uma boa profissional e fiz uma parceria ela atende esses alunos com preço reduzido ou mesmo de graça. É pouco, mas ajudar quem podemos é importante.

  • Ótima ênfase na busca por por bons profissionais. Quando procurar um ajuda especializada, é melhor questionar sobre a abordagem e os métodos que baseiam a prática do profissional. Vale lembrar que as terapias alternativas modinha fazem muito mal e foram proibidas em vários países. Aconselho fugir de constelação familiar, bioenergética, terapia de renascimento e qualquer abordagem mística e sem embasamento. Apenas profissionais decentes ajudam.

  • Não acho espantoso suicídio em crianças. Eu mesmo já quis morrer quando era criança por conflitos familiares, só não sabia como me matar. Não tinha Internet, eu acreditava em deus e achava que era rezando. E a vida é feita pra ser difícil e sofrida sim, ser feliz é exceção. As pessoas só fingem felicidade no Instagram e pandemia é só mais um item que torna a vida pior.

  • Eu bem que disse uma vez, acho que foi até aqui no desfavor mesmo, que quando a pandemia passasse – se é que passaria -, iria ter um boom na procura de psicólogos e psiquiatras…

    Complicado demais lidar com a mente humana, realmente precisamos reconhecer que tem horas que a gente precisa de ajuda do outro.

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