Falta estrutura.

A prefeitura de Petrópolis, cidade da Região Serrana do Rio castigada por chuvas que já causaram mais de cem mortes, reservou, no ano passado, mais recursos para gastar com luzes de Natal e publicidade do que com contenção de encostas. LINK


Tem que criticar político? Claro que tem! Tem que esquecer que eles são votados para estar lá? Não, não tem. Desfavor da Semana.

SALLY

Não preciso introduzir o assunto, todo mundo sabe o que aconteceu em Petrópolis. Perdi as contas de quantos textos como este já escrevemos. Mais de dez anos depois, nada mudou. Não que eu espere que governantes mudem, a posição deles é muito confortável, não vão mudar mesmo. Mas o povo, aquele que está em uma situação de desconforto, de risco de vida, de maus tratos, este poderia mudar.

Década após década, esse tipo de tragédia ainda é tratada por todos como uma fatalidade. “Chuvas causam…”, “chuvas matam…”. Até mesmo pela mídia, por pessoas comuns e pelas vítimas. Hora de corrigir isso. Se era evitável, não foram as chuvas que causaram nada, foi a má administração. Muita coisa poderia ser feita, desde construção de encostas, fiscalização ou até, em última instância, evacuar as pessoas do local. Poderia ter sido evitado, portanto, não é culpa das chuvas.

Vamos parar de falar “chuvas causam” e “chuvas matam”? Vamos começar a dar nome aos bois? Vamos dar o nome dos responsáveis pela tragédia? Prefeito, Governador, Secretário de Obras, de Habitação, engenheiro que deu laudo dizendo que a área estava ok, gente que deveria ter agido e não agiu? No dia em que sair uma notícia “Fulano de Tal causa a morte de mais de cem pessoas” aí pode ser que tomem mais cuidado com o que fazem.

Uma cidade inteira foi varrida por chuva, enchente e deslizamento. Mesmo que não houvesse uma única construção irregular ali, teria morrido gente. Pessoas foram sugadas pelas águas no meio da rua, dentro de ônibus. Em qualquer país sério os responsáveis já estariam presos. No Brasil, os responsáveis não são punidos e nem sequer identificados. A culpa é do fenômeno da natureza.

Sabe quando a natureza é responsável? Quando acontece algo totalmente imprevisto, inevitável, incontrolável. Não é o caso. A culpa não é da natureza. Houve erro de execução e erro de fiscalização. O que tinha que ser feito não foi e o que não tinha que ser feito foi permitido, quando é obrigação do Governo fiscalizar e impedir que aconteça.

“Ain mas é muito fácil falar”. Sim, é difícil de executar, é por isso que eu nunca me candidatei a nenhum cargo desses. Quem se candidata aceita a responsabilidade e passa a ter a obrigação, sob pena de responder criminalmente, de fazer o que tem que fazer e de impedir que o que não pode ser feito não seja feito.

Segundo dados do Portal da Transparência, a cidade de Petrópolis gastou mais com decoração de Natal e publicidade do que com obras de contenção de encosta. Tem certeza de que vai continuar dizendo “chuva causa…”? O que causou isso foram escolhas erradas, prioridades erradas

E não é que não houvesse dinheiro. Tem dinheiro. Já falei isso em diversos textos aqui no Desfavor: dinheiro sobra. Falta projeto, falta gente capacitada para fazer um projeto decente que seja aprovado, falta vontade política (obra estrutural não dá voto) e falta fiscalização do povo.

E quando falo de fiscalização do povo não falo da Dona Maria que mal tem dinheiro para comer e passa seu dia pensando em como vai alimentar seus oito filhos. Essa pessoa não tem qualquer condição de se preocupar com nada que não esteja na base da pirâmide de Maslow. Falo de todo o resto que já tem suas necessidades básicas asseguradas – e muitos deles morreram esta semana. Morreu rico e morreu pobre.

Político brasileiro só tem essa prioridade errada por um motivo: isso lhe é permitido. E isso acontece pelo mesmo motivo: o povo tem prioridades erradas. Muita gente agora deve estar pensando “que absurdo, gastar tanto e priorizar decoração de Natal em vez de fazer o que era mais importante”. Só que essas mesmas pessoas gastaram mais do que tinham no último Natal, mesmo devendo aluguel e conta. Essas mesmas pessoas se reuniram no Natal, mesmo na pandemia, contaminando parentes. Escolhas erradas, prioridades erradas, são a especialidade do brasileiro. Os políticos são apenas um reflexo do povo, só que seus atos são em escala maior.

Então, já deu de culpar a chuva e já deu de culpar só político. Os políticos têm culpa? Óbvio que sim – e devem ser responsabilizados. Mas só os políticos? Não. Seu dever como membro de um Estado Democrático de Direito não é apenas votar, seu dever é acompanhar, fiscalizar diariamente tudo que cada político faz e, quando ele não agir em nome do povo, reclamar e fazer valer a lei. Parece que o brasileiro ainda não entendeu como uma democracia funciona. Colocar o político lá, dando total controle, sem se preocupar com o que ele está fazendo é ser um péssimo cidadão.

Um exemplo simplório, apenas para ser entendida: se você contrata uma diarista para trabalhar na sua casa e a deixa encarregada de arrumar a casa, comprar comida, comprar material de limpeza, limpar a casa e outras tarefas, você fiscaliza o que ela está fazendo na sua casa e com o seu dinheiro, certo? Ela foi escolhida e está sendo paga por você para fazer tarefas determinadas. Como você acha que sua casa estaria se você só fiscalizasse o que essa diarista faz de quatro em quatro anos?

Sabe quem pode pedir algo e não se preocupar com a execução? Criança. Pois tem Papai e Mamãe para cuidar disso. Se você não é mais criança, você tem que assumir responsabilidades e fiscalizar a atuação de todo mundo que trabalha para você, inclusive políticos, que são pagos com o seu dinheiro. Se você não fiscaliza, vai continuar senso sacaneado. Nada mais patético que uma pessoa sistematicamente sacaneada, que reclama disso o tempo todo, mas não faz o que tem que fazer para evitar que isso aconteça.

Se você não fiscaliza o trabalho de quem você contratou e a pessoa faz um péssimo trabalho, te rouba ou te prejudica, você não é vítima, você é um otário. Morando no Brasil e sabendo como são as coisas aí, todo mundo está ciente de que tem que fiscalizar tudo. Se você não quer ter esse trabalho, o que você está fazendo é uma troca implícita: para não se dar a esse trabalho de fiscalizar você tolera que a pessoa destrua sua casa e te roube, pois sim, é isso o que estão fazendo com o Brasil.

Quem rouba tem culpa e está errado? Muito. Mas quem sabe que está sendo roubado e tolera para não ter que trabalho também. Tem gente que não tem qualquer condição de fiscalizar, mas muitos tem e não o fazem.

Chuvas é o caralho, essa tragédia é culpa de quem tinha obrigação de fazer e não fez de quem tinha condição de fiscalizar e cobrar e não fiscalizou.

Para dizer que estou culpando as vítimas, para dizer que “choveu mais do que o esperado” (todo ano é isso) ou ainda para dizer que prefere continuar sendo roubado e sacaneado do que ter trabalho: sally@desfavor.com

SOMIR

Culpar a vítima é um dos comportamentos mais cruéis da humanidade. É indiscutível que é de mau tom pegar uma pessoa que já está sofrendo e apontar seus erros. Mas ser cruel ou de mau tom não significa necessariamente que é a pior coisa a se fazer com uma pessoa. A vida tem essa característica de que o que nos faz bem e o que nos faz sentir bem nem sempre estão relacionados.

Por questões de empatia, eu me sinto mal em criticar alguém que já está sofrendo com as consequências de seus erros. Mesmo que você tenha certeza que o que vai dizer é para o bem da pessoa, tudo tem hora. Não estamos defendendo aqui que alguém vá enfiar o dedo na cara de alguém que perdeu tudo nas chuvas de Petrópolis e dizer que isso só aconteceu porque votaram em políticos incompetentes. Evidente que não.

Mas não podemos fechar os olhos para os problemas quando eles nos desagradam. É absurdo bater em quem está sofrendo com a tragédia, mas podemos falar sobre a situação com quem ainda está em condições de pensar sobre o tema. Administração pública é algo complexo, lida com uma série de interesses conflitantes e faz parte do jogo não poder atender todos ao mesmo tempo. Quem se coloca nessas funções tem que estar pronto para tomar decisões difíceis e agir de forma que não parece intuitiva para as outras pessoas.

Fazer obras de contenção de desastres naturais sem um exemplo muito recente na mente do povo é um exemplo dessas ações não intuitivas. Político que passa o mandato protegendo a cidade de desastres futuros não se reelege. O povo não vê resultados imediatos e acha que o político não fez nada. Os concorrentes prometem coisas mais próximas da visão do povão e acabam vencendo.

Eu consigo entender a lógica dos governantes de Petrópolis em gastas mais com luzes de Natal e publicidade. Consigo mesmo: são coisas que impactam imediatamente e aumentam a chance de criar boas memórias recentes nos cidadãos. É a decisão mais fácil: como existe uma boa chance de não dar nenhuma tragédia das grandes em um mandato específico, é mais vantajoso para um prefeito e vereadores apostarem em medidas mais chamativas do que prevenção de desastres no longo prazo.

É uma aposta. Se tivesse chovido um pouco menos, os políticos de Petrópolis poderiam ter ganhado. Todo mundo sabia que o risco estava lá, mas não era garantia de que ele se concretizaria no mandato atual. O político aposta apenas no presente porque é isso que o povo acaba cobrando dele. E o povo só cobra isso porque foi acostumado a não acreditar em promessas. Político não cumpre mesmo, melhor algo imediato que eu possa usar do que ficar esperando que nem um otário…

O ciclo vicioso se instala. Político é imediatista porque o povo só recompensa imediatismo. Povo só recompensa imediatismo porque essa é a única migalha que cai na sua direção. Repito que é justo cobrar, e cobrar muito daqueles que se candidatam a administrar uma cidade, estado ou país; mas sem esquecer que essas pessoas são um recorte da sociedade em geral. O político brasileiro é cidadão brasileiro.

Ficamos com uma questão de ovo e galinha: quem precisa melhorar primeiro? Povo ou político? Se um não fizer, o outro não pode, e vice-versa. É disso que derivam os erros absurdos cometidos pelas nossas autoridades, não são capazes de pensar diferente do povo de onde vieram. A questão aqui é onde o brasileiro parece colocar seu foco: no político.

Quanto mais se bate no político, mais ele tem que lutar para se manter viável. E se manter viável significa apelar para o que o povão acha que quer. O problema óbvio é que o povão não entende patavinas sobre administração pública. É que nem esperar que uma criança saiba quais alimentos são melhores para ela. Se os pais só escutarem a criança, ela vai morrer depois de tomar sorvete e comer chocolate por meses. É claro que o povo quer morar perto do centro, que não quer pagar imposto, que não quer lidar com regras restritivas…

Mas não é uma escolha. O poder público não pode permitir que gente se instale em morros e áreas propensas a alagamentos. Agora, quem quer ser o político imensamente impopular que salva a vida de milhares de pessoas no futuro? Quem quer ficar apenas um mandato no poder e sair de lá com a raiva de milhares de pessoas? Sim, tem que criticar o político, mas tem que criticar a vítima também. Dizem que o Brasil é uma terra onde não se respeita a vontade do povo, mas eu temo que seja muito mais complicado do que isso: o poder realmente emana da população.

E a população, na condição de vítima de um sistema corrupto e incompetente, acaba sendo vista como sofrida demais para ser criticada. Sim, é crueldade bater em quem não tem condição nenhuma de tomar decisões melhores, mas quando é que a gente vai quebrar esse ciclo? Quando é que essas pessoas vão ser informadas que existem decisões melhores? Bater só no político perpetua um sistema que infantiliza o brasileiro.

“Coitado, não tinha como fazer diferente.”

Ok, não tinha mesmo. Mas e aí, a conversa toda para aqui? Vamos deixar eles fazerem tudo errado de novo por simpatia pelas suas dificuldades? Culpar a vítima é cruel, mas claramente não está funcionando só falar dos políticos, porque eles aprendem o que é o Brasil com o povo que os cerca.

Ou a pessoa começa a entender que vai ter do político o tanto de capacidade quanto escolheu, ou vai continuar sofrendo. Eu já disse antes e repito: o voto em vereador é o voto mais importante da sua vida. O voto em prefeito vem em segundo lugar. Todo mundo preocupado com Lula e Bolsonaro, mas estão esquecendo que no final do dia quem pode te matar é um político regional com prioridades distorcidas.

As pessoas que gastaram com luzes e propagandas ao invés de gastar com contenção de desastre naturais foram eleitas. Quero que todos sejam presos e processados até o último centavo, mas isso não resolve o verdadeiro problema: votaram neles. Se os políticos são reflexo do povo, não tem outra alternativa a não ser melhorar o povo. Os políticos vão ser assim pra sempre… se deixarmos.

Para me chamar de escroto, para dizer que não lembra em quem votou pra vereador, ou mesmo pra dizer que é mais divertido fingir que o presidente é importante de verdade: somir@desfavor.com

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Comments (12)

  • Sempre que chega a hora de procurar culpados pelos problemas penso antes disso: “poderia ter sido diferente, com as regras que o Estado impõe para cuidar de assuntos como esse?”.

    Infelizmente, a resposta é sempre a mesma: NÃO. Sem uma forma de retirar as pessoas à força dos lugares de risco, colocando-as em algum ponto seguro e impedindo que vão para lá OU uma forma de fazer as obras de contenção “doa a quem doer”, mesmo com o impacto ambiental negativo que isso significa, nada mudará.

    Comprar luzes de Natal para uma cidade é fácil. Uma notinha, uma licitação, e o gasto está feito. Contenção de enchentes, contudo, envolve mais que a licitação: envolve discutir quem vai perder com a obra, quem será desapropriado, quais os valores a ser pagos – e, mais do que isso, qual a condição em que pessoas que foram morar lá por culpa do Estado (e da sociedade) vão ficar sem uma casa para morar.

    Quando a poeira (e a lama) baixarem estes atores vão aparecer – e impedir soluções definitivas. De novo.

    • Tem forma de retirar pessoas de área de risco sim, inclusive judicialmente. Tem forma de impedir que as pessoas entrem lá. O que não tem é um Estado presente, pois o cidadão, em vez de cobrar isso, usa redes sociais para alimentar seu ego e ostentar uma pá de mentiras.

  • Dá tristeza ver as pessoas cavando a lama atrás de mãe/pai/filho, mas o pior e que ano que vem isso provavelmente vai acontecer de novo, assim como em 2024, 2025, 2026…

    E ao invés de cobrarem politico, a galera briga por causa deles. Não tem como isso aqui dar certo nunca.

  • “mas é tudo bandido, se eu não votasse nesse bandido, ia assumir outro bandido”,
    “eu não posso ficar o tempo todo vendo o que fazem, eu não posso parar minha vida pra isso”,
    “mas político é assim mesmo, a gente tem que fazer pela gente”,
    “não podemos exigir tudo dos políticos assim, a gente tem que ir atrás, nada vem de graça não”;

    Sociedade que não cuida nem dos seus filhos, relacionamentos e finanças, quem dirá o que está fora de casa. É cruel “culpar” a vítima? Pra mim cruel é você se disciplinar, tentar manter uma boa saúde mental e fazer escolhas razoavelmente lógicas da vida e pagar o pato pela burrice da maioria ignorante em insistir em merdas dessas. Isso sim é cruel.

  • Só para desanimar vocês mais um pouquinho com o que está acontecendo…

    FALTAM PÁS, GALOCHAS E CAPACETES PARA BOMBEIROS TRABALHAREM NO RESGATE DAS VÍTIMAS DOS DESABAMENTOS CAUSADOS PELAS CHUVAS EM EM PETRÓPOLIS:
    https://br.noticias.yahoo.com/resgate-em-petropolis-faltam-pas-galochas-e-capacetes-para-bombeiros-154414081.html

    GOVERNADOR DO RIO ENTRA AO VIVO POR TELEFONE EM TRANSMISSÃO DE RÁDIO E PEDE DEMISSÃO DE JORNALISTA QUE CRITICOU SEU “FINGIMENTO” APÓS DESASTRE EM PETRÓPOLIS:
    https://br.noticias.yahoo.com/petropolis-governador-do-rio-pede-ao-vivo-demissao-de-jornalista-apos-ser-criticado-193700443.html

  • Construções em lugares que não deveriam ter sido construídas são efeito colateral da crise habitacional. Enquanto a lógica de construção de moradias for regida pelo lucro da especulação imobiliária, vamos ter pessoas morando em lugares impróprios, pois é o que resta pra elas, enquanto várias casas e apartamentos estão vazios pelas cidades porque o valor do aluguel é inviável para 99% da população.

    • O pior é que sempre aparece alguém para defender esses especuladores vagabundos, com a primazia de preservar o maldito mercado e, por conseguinte, o capitalismo.

  • Ô povo sem capacidade de memorização, entra ano e sai ano e a idolatria a políticos continua a mesma. Deve ser ausência paterna, não é possível. Um povo que surgiu primariamente de bastardos gerados em relações ilegítimas e passa a vida toda procurando um pai.

  • Aluno de Engenharia Civil

    Construção de encostas? Meus olhos doem com essa colocação.
    Barreiras para contenção de taludes (que seria o recorte no solo entre os niveis) seria o jargão adequado.
    De qualquer forma, nada mudou. Sempre deram mais importância para o turi$$$mo do que para as condições de segurança na região.
    Pra variar, demandas de curto prazo são consideradas em primeiro lugar. O resto se arrasta pelo caminho.
    Inclusive o vice-prefeito estaria envolvido com desvios de recursos na época do desastre de 2011.

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