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Mal educados.

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| Desfavor | | 16 comentários em Mal educados.

O uso de crianças como “escudo humano” nos bloqueios das rodovias realizados por manifestantes bolsonaristas será investigado pelo Ministério Público de Santa Catarina (MPSC). Segundo o órgão, o principal objetivo é evitar que menores sejam expostos a situações de risco. Crianças foram flagradas em interdições de Itajaí e Itapema, no Litoral Norte catarinense. LINK


Imagina se não fossem defensores da família e das crianças, hein? Desfavor da Semana.

SALLY

Todo mundo viu as atrocidades que aconteceram esta semana e quase todo mundo deve ter pensado “olha que absurdo, fizeram isso” ou “olha que absurdo, fizeram aquilo”. Mas o que pouco se comentou foi o contexto. Quando a gente coloca dentro de contexto, a coisa fica ainda pior.

Estamos falando de um grupo cuja bandeira é zelar pela família e pela proteção das crianças. Criança não deve tomar vacina pois não é seguro o suficiente. Criança não pode ver casal gay pois pode fazer mal para sua cabeça. O direito à vida é tão valorizado que menina de dez anos não pode fazer aborto, mesmo que a gestação coloque em risco a sua vida. O que se espera de um grupo com pensamentos tão extremados? Que seja o maior protetor do bem-estar físico e mental de uma criança.

O que o grupo fez? Levou criança para protestos, manifestações e bloqueio de estradas pedindo intervenção militar, ou seja, um conflito armado. Vacina é perigoso, mas usar criança como escudo-humano, coisa que efetivamente fizerem e existe vídeo comprovando, tá dentro do tolerável. Aborto é um atentado contra o corpo e a vida, mas colocar menina como barreira no meio da estrada até um carro passar por cima tá dentro do tolerável.

O que vimos vai um pouco além da incoerência ou da hipocrisia. Por mais arrombada que seja uma pessoa, eu quero supor que, salvo em casos extremos de psicopatia, ela se preocupa com seus filhos. Aqueles pais que estavam ali com seus filhos provavelmente não estavam pouco se importando com a vida deles, me parecem pessoas que perderam completamente o discernimento e hoje são incapazes de questionar informações ou entender riscos.

Não vou me aprofundar na minha teoria sobre os bolsonaristas. Meu questionamento é outro: como foi que deixamos todas essas atrocidades da última semana acontecerem? É preciso que todo mundo se coloque no contexto da situação. Não se dizem uma sociedade preocupada com a liberdade, com a democracia e com o bem-estar social? Pois bem, se o grupo de lá errou dentro do seu contexto, o resto da sociedade também.

O que nos leva novamente à pergunta: como foi que deixamos todas essas atrocidades da última semana acontecerem? Não me refiro permitir que as pessoas cheguem a esse ponto de insanidade, pois isso é sagrado direito de cada um, me refiro a permitir que insanos coloquem inocentes em risco e tumultuem a vida de todo mundo.

A coisa que eu mais perguntei para pessoas que moram no Brasil esta semana foi: “por qual motivo a polícia não dispersa os bloqueios?”. Eram ilegais, estavam impedindo o deslocamento de pessoas que realmente precisavam (por exemplo, pacientes oncológicos que iriam realizar uma cirurgia), estavam impedindo a circulação de insumos essenciais (por exemplo, oxigênio para hospital), estavam causando prejuízos à sociedade. Ninguém me deu uma explicação satisfatória. Era algo ilegal, não precisaria de decisão judicial, a polícia poderia agir sem ordem de ninguém.

Meu ponto é: não adianta apontar e escrotizar bolsonarista dizendo o quanto ele é maluco, sem-noção ou imbecil. Vamos olhar para o que podemos mudar? O país permitiu que alguns malucos coloquem inocentes em risco, causem transtornos sérios e prejudiquem a vida, a saúde e a segurança da coletividade. Por qual motivo isso não foi contido a tempo e evitado? Quem deveria ter agido e não agiu? Como será responsabilizado por isso? O que será feito para que isso não aconteça mais? Hora de olhar para frente.

Eu sei que o Brasil está com ranço de bolsonarista, mas as pessoas têm o sagrado direito de serem loucas, sem discernimento e manipuladas. Sempre vai ter gente assim. O que elas não têm direito é a transtornar a vida da sociedade e colocar inocentes em risco. E isso lhes foi permitido. Vamos olhar para isso? Para quem permitiu em vez de para quem fez? Quem fez não podemos mudar, mas quem permitiu que se faça sim pode ser reorientado.

“Ain tá passando pano para bolsominion”. Veja bem, o objetivo desta coluna (e do Desfavor como um todo) é trazer um novo ponto de vista. Sempre foi. Se a gente ficar repetindo tudo que todos estão falando sobre bolsonaristas, não vamos trazer um novo ponto de vista, apenas alimentar seu viés de confirmação de que essa gente é ______ (insira o que você pensa deles). Nosso novo ponto de vista sobre essa insanidade é: que porra de sociedade é essa que permite que uma minoria de malucos cause tanto estrago e coloque tantas pessoas em risco?

Onde se está falhando e o que pode ser feito para impedir que malucos tenham esse poder? Qualquer resposta produtiva deve considerar atos daqui para frente. O passado já passou e não pode ser mudado. Mas, nessas horas, a maioria não quer ajudar, a maioria quer ter razão e começa a discursar como a pessoa sabia, a pessoa avisou e como se tivessem escutado o que ela avisou seria diferente.

Avisar não é solucionar. Se você quer ser essa pessoa, então ao menos se vanglorie de ter apresentado um plano de ação eficaz que foi ignorado, caso contrário, era inútil te escutar. E um grupo de malucos incapaz de discernimento não é uma criação do Bolsonaro, isso vem se formando muito antes: Terra plana, o homem nunca pisou na lua, a neve é uma mentira do governo e tantas outras coisas que eram motivo de piada, mas que cresceram e agora prejudicam a sociedade.

Não é sobre o bolsonarismo, é sobre pessoas viciadas em pertencimento, em viés de confirmação, em fanatismo. Elas existem, e existem faz séculos. Calhou de agora elas se unirem e se organizarem em torno de uma alegoria comum, mas, tirar essa alegoria não faz com que elas desapareçam, elas encontrarão outra alegoria e se reunirão em volta dessa nova alegoria.

Então, tem que parar de colocar o foco de ação na alegoria (Bolsonaro) e focar no problema: um grupo de pessoas sem discernimento, sem autopreservação e sem sanidade mental que estão dispostas, voluntaria ou involuntariamente a causar danos a si mesmas ou a terceiros. Essas pessoas existem. Essas pessoas transcendem o Bolsonaro ou a política. Essas pessoas não vão desaparecer. O que será feito a respeito?

É preciso começar a traçar estratégias para lidar com esses grupos daqui pra frente, preferencialmente, em duas frentes: contenção (impedir que o que já estão ativos causem estragos) e prevenção (impedir que mais pessoas sejam sugadas para essa insanidade).

Vai acontecer? Não vai acontecer. O brasileiro vai personificar tudo de ruim em alguém (no caso, no Bolsonaro) e ficar xingando muito em rede social. Quando esse monstro crescer e piorar, espero que cada um assuma sua parcela de culpa de ter perdido seu tempo focando na alegoria em vez de tentar realizar a contenção e prevenção do problema real.

Para dizer que se Lula tivesse perdido veríamos vários desequilibrados do outro lado (concordo), para dizer que é mais fácil ficar batendo no bolsonarismo ou ainda para dizer que precisamos postar coisas alegres para que leitor não entre em depressão profunda (estamos providenciando): sally@desfavor.com

SOMIR

Eu fico repetindo isso: na última década, pelo menos, o Brasil é a versão de camelô dos EUA, com dois anos de atraso. Toda maluquice que surge por lá dá seu jeito de vir pra cá. A eleição de Bolsonaro espelhou a de Trump, a rejeição do lado perdedor à derrota na eleição subsequente também. Nos próximos dias, os americanos devem eleger deputados e senadores que vão retomar o controle republicano sobre o legislativo, muitos deles fazendo campanhas que dizem explicitamente que a eleição para presidente foi roubada.

É bem provável que Biden passe os dois próximos anos amarrado, constantemente ameaçado por pedidos de impeachment. Muitos dos governadores, senadores e deputados que devem se eleger a partir do dia 8 de novembro já prometeram que vão garantir que nunca mais um democrata seja eleito, pois vão vigiar de perto a apuração dos votos.

Claro, eu não estou achando que os EUA vão deixar de ser uma democracia tão rápido assim, mas pesquisas de opinião demonstram que ao contrário do esperado, a cada dia que passa mais pessoas se bandeiam para o lado de Trump: acreditando que ele ganhou a eleição e foi roubado pelo “sistema”.

Alguns especialistas em política americana já estão dizendo que a volta do homem laranja em 2024 é inevitável. Vai ser eleito num país cada vez mais desconfiado do processo eleitoral, com metade da população achando que a outra metade é maligna.

O que isso tem a ver com o Brasil? Oras, se os últimos anos são indicativo de alguma coisa, tem muito a ver. Se a coisa está ficando cada vez mais bizarra por lá, não é nenhum exagero acreditar que vamos seguir um caminho bem parecido. Já temos quase metade da população votando no Bolsonaro, uma pequena (mas barulhenta) parcela deles estão esperneando sobre os resultados da eleição, e nada indica que o país vai ser pacificado pelo governo Lula. Até porque assim como lá, cá temos vários problemas econômicos que só aumentam o grau de insatisfação popular.

É muito fácil olhar para isso tudo e colocar a culpa no ressurgimento da direita extremista. Não são os comunistas fechando estradas e exigindo a prisão ou morte dos seus inimigos. É um jeito de enxergar a coisa. Mas não é o único: eu estou colocando a culpa no terraplanismo mesmo. É ele que está crescendo de forma exponencial nos últimos anos, é ele que troca de nome e de causa a cada dia, mas sempre mantém o mesmo padrão de duvidar de tudo e de todos.

O terraplanismo (seja ele sobre o formato do planeta, a eficácia das vacinas ou o funcionamento de um sistema democrático) se infiltrou com mais facilidade nas brechas deixadas pela direita política. Em algumas questões ele também infecta o pensamento historicamente mais de esquerda, mas eu tenho a clara impressão de que essa rejeição ao conhecimento existente e a necessidade de criar uma realidade paralela é um fenômeno que consegue se esconder muito melhor no lado do conservadorismo.

Para não dizer que não fui claro: eu acredito que o que estamos vendo como direita hoje em dia é terraplanismo. Ele fica camuflado atrás de discursos clássicos reacionários, mas quem leva o povo a ter reações insanas como as que estamos vendo nos bolsonaristas é muito mais profundo que inclinação política, ou talvez até mesmo religiosa.

Eu reclamo muito dos políticos e líderes religiosos populistas porque eles estão explorando uma doença social em troca de dinheiro e poder. É abuso de gente com problemas de compreensão básica da realidade. O discurso inflamatório que deixa as pessoas com medo e com raiva do “inimigo” faz as pessoas arranjarem brigas na família, no trabalho, criarem guetos para si de onde não conseguem mais sair.

Quando você faz uma pessoa se sentir perseguida por um inimigo muito poderoso e a incentiva a desconfiar de toda informação que não vem da sua bolha, você cria alguém neurótico, tomado pelo medo e pela dúvida o tempo todo. Essa gente que aparece nas notícias todos os dias cortando relações, dando chilique, partindo para a violência, cantando para pneu… é gente que está muito acuada pelo terraplanismo generalizado. Terraplanismo que é incentivado por gente escrota para ganhar mais dinheiro e influência.

“É tudo mentira, é tudo conspiração, todos podem ser o inimigo, vão fechar sua igreja, vão te fazer passar fome, vão forçar seu filho a usar vestido…”

Alguém tomado pelo medo vai perdendo a capacidade de raciocinar. Quem coloca criança no meio de uma pista para parar o trânsito? Quem faz barreira de contenção de policiais com os filhos? Eu quero acreditar que esse povo não é bicho, que se importa muito com a cria. Que tudo isso é o reflexo dessa doença social que é a dúvida generalizada sobre a realidade. O ser humano parece estar perdendo a capacidade de identificar o que está enxergando na sua frente. Com medo constante do “inimigo” entrar na sua casa e o forçar a fazer o que acha mais abominável.

Quando o Bolsonaro foi eleito, foi um festival de lacrador chorando na rede social, certos de que seriam levados para um campo de concentração. Mesmo com toda a loucura de Damares e cia., não aconteceu nada de tão grave assim. Os bolsonaristas agora estão numa fase parecida, achando que o apocalipse se aproxima, só que se eles estão mais infectados pelo terraplanismo, o perigo é continuarmos imitando os americanos: escolhendo representantes cada vez mais malucos que reflitam essa desconfiança de tudo e de todos, tão desesperados por segurança e estabilidade ao ponto de entregarem todo o controle da sua vida para o mito da vez.

Também não acho que a democracia brasileira vai ruir tão cedo, mas estamos sendo tomados por um povo cada vez mais assustado e com dificuldades de absorver informação realista. Esse povo está aí e precisa de ajuda para sair dessa armadilha de neurose e ansiedade. Não adianta carimbar eles como direita e lavar as mãos, porque eles não têm pra onde ir, vão continuar aqui, cada vez piores.

O combate é contra aquilo que tratávamos como piada poucos anos atrás, como meia dúzia de malucos que achavam que a Nasa fazia as fotos do planeta no Photoshop, mas agora o conceito se espalhou de tal forma que precisa ser resolvido. Se você achar que o problema é a direita e torcer para essas pessoas serem esmagadas, ele vai infectar a esquerda também.

E aí, é só escolher a cor da bandeira da ditadura da estupidez que vai tomar conta. Pode não ser tão cedo, mas sem enfrentar o terraplanismo, vai acontecer.

Para dizer que somos fascistas, para dizer que só quem concorda exatamente com você é do bem, ou mesmo para dizer que essas crianças já estavam perdidas faz tempo: somir@desfavor.com

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