Pode confiar?

Sally e Somir concordam que confiança é uma das partes mais importantes de qualquer relação. Mas o caminho para conquistar essa confiança gera atrito na relação deles. Os impopulares dizem no que sente mais segurança.

Tema de hoje: qual a melhor forma de conquistar a confiança de alguém?

SOMIR

Cumplicidade. Eu já começo dizendo que não estou fazendo pouco da opção que a Sally vai escolher, nem um pouco. A questão aqui é não vivemos num mundo de relações ideais: percebam que a pergunta não é sobre conquistar a confiança de uma pessoa que te agrada ou que você acredita que vale a pena ter por perto por muito tempo, é sobre conquistar a confiança de alguém.

Alguém… sujeito indefinido. Alguém pode ser uma pessoa muito importante para você, mas pode ser qualquer um que você encontra por aí, e por um motivo ou outro, tem que formar uma relação. Não precisa ser profunda, não precisa ser valiosa, só precisa ser uma relação. E é aí que milhões de anos de evolução de vida social humana entram para apresentar um atalho: a tal da cumplicidade.

Cumplicidade pode ser um conceito bonitinho, como num casal de longa data que passou por todo tipo de situação juntos; mas pode ser uma definição mais criminal também: quando você e outra pessoa se juntam para fazer algo reprovável pela sociedade ou pela legislação vigente. Entre esses extremos, milhares de outras possibilidades de como passar pela mesma situação é uma das formas mais simples de gerar uma relação de confiança entre duas pessoas.

É um conceito neurológico, a própria Sally já escreveu aqui sobre neurônios-espelho, como o cérebro tem mecanismos naturais de compartilhar sensações com outras pessoas. Quando você vê outra pessoa passando pela mesma situação que você, abre-se o atalho para entender a mente alheia. Ou, pelo menos, acreditar que entende. Na prática, as coisas não podem ser diferenciadas.

Talvez o pessoal das gerações mais novas não lembre desse exemplo, mas tinha algo muito comum no passado de conversar em fila. As pessoas, antes de terem um celular para se distrair, ficavam de saco cheio juntas na espera por alguma coisa. A porta para abordar alguém e dizer “nossa, está demorando, né?” estava sempre aberta. E o outro ser humano – alguém que normalmente não estaria muito disposto a se abrir para um estranho – começava a conversar como se nada.

“Mas Somir, isso não é confiança!”

Comunicação é a raiz da confiança. E comunicação acontece de diversas formas, muitas delas nem são verbais. A relação com o outro precisa de uma faísca de compreensão para começar. A cumplicidade numa situação, seja ela positiva ou negativa, é uma das formas mais eficientes de gerar isso. Como a maioria de nós já deve saber, pouca coisa une tanto o ser humano como reclamar de um mesmo problema. Todo mundo parece disposto a desabafar sobre algo que percebe ser incômodo para o outro também.

Quando se planta a semente da cumplicidade, seja ela profunda ou superficial, a confiança começa a crescer. Porque é muito importante lembrar que confiança não é garantia de nada positivo: confiamos em gente perigosa, desconfiamos de gente segura. Muito antes de termos confirmação sobre a confiabilidade de uma pessoa, a maioria de nós já entregou a sua parte. Não é à toa que tanta gente é enganada por aí.

Eu nem acho saudável para a vida acreditar que confiança é algo tão especial assim. Não é só porque você sente que pode confiar no outro que o outro não vai trair essa confiança. É algo que a gente sente, e não importa o quanto você se esforce, é impossível controlar a mente alheia. A gente confia muito antes de ter provas. Tem gente que até fica com “alergia” a confiar por causa disso.

A verdade é que a vida é um jogo complexo e sem certezas. É natural que tenhamos desenvolvido alguns mecanismos para confiar mais rápido no outro, afinal, eu não desejo uma vida de desconfiança interminável nem para o meu pior inimigo. Confiar é importante para a saúde mental, mesmo que às vezes você quebre a cara. Se por um lado eu concordo com a Sally sobre como gerar boas relações através da confiança, isso não quer dizer que isso seja a resposta da pergunta de hoje.

Para gerar confiança no outro, não adianta focar na verdade, porque a verdade precisa de provas e tempo para se desenvolver. Se você quer a confiança de alguém, tudo começa com cumplicidade. Vulgo passar por uma situação junto com ela e sentir a conexão de sentir algo parecido. Vendedores são treinados para gerar algum ponto comum com o cliente potencial por esse motivo: o que eles chamam de “rapport” nada mais é do que gerar confiança superficial para desenvolver seu argumento.

Não, não é um texto niilista: não estou dizendo que confiança não vale nada, estou apenas argumentando que não se pode idealizar confiança. Ela pode ser conquistada com atalhos, ela pode ser depositada em lugares errados. E você não é um fracasso se for sacaneado eventualmente. Basta uma situação onde você e outra pessoa acreditam estar passando por algo parecido com reações emocionais parecidas e pronto: a confiança vem.

Meu ponto é que o jeito mais rápido é o melhor no dia a dia: a maioria das coisas que a gente faz e depende de terceiros na vida não tem tempo de maturação suficiente para gerar confiança pela verdade. Precisamos resolver muita coisa rápido e confiar meio às cegas para funcionar. Gerar o tipo de confiança que permite longas relações saudáveis é complicado, é demorado, e tem mil coisas que podem dar errado. O resultado é muito melhor, desde, é claro, que a pessoa valha a pena no final das contas. Mas o mecanismo custa muito caro em tempo e energia. Não é inteligente gastar tantos recursos com qualquer um…

Confiança não é necessariamente uma decisão certa ou errada, é algo que precisamos para sobreviver até mesmo no curto prazo. E nessa versão mais prática, nada melhor do que ter algo em comum para acreditar que entende a cabeça do outro.

Para dizer que não confia no que eu escrevo, para dizer que desconfia de todos e é cansativo, ou mesmo para dizer que vai concordar com a Sally porque tem um coração: somir@desfavor.com

SALLY

Qual é a melhor forma de conquistar a confiança de alguém?

Não é apenas a melhor, mas também a única: falando a verdade. Se usarmos qualquer outra forma, não estamos conquistando a confiança e sim manipulando.

Essa afirmativa vem de uma construção complicada, que talvez gere rejeição a muitos, então, vamos bem devagar, desde o começo: se você for ao dicionário, verá que confiar está descrito como “acreditar na sinceridade de algo ou alguém”. Portanto, a sinceridade é parte essencial do conceito.

Qual é a melhor forma de convencer alguém de que você está sendo real, sincero, honesto? Sendo! Falando a verdade. Qualquer outra coisa que não seja falar a verdade, trai automaticamente o conceito de confiança e passa a ser apenas uma manipulação com o objetivo de convencer alguém de que você é confiável.

Quem não fala a verdade, por mais agradável que seja o que se diz no lugar, não é confiável, já que você nuca saberá o que esperar dessa pessoa, pois não sabem quem ela realmente é ou o que realmente pensa. O que nos leva a um problema: a maior parte das pessoas de fato não sabem quem realmente são, usam máscaras impostas ou construídas ao longo da vida e se esquecem da sua essência. Sim, a maior parte das pessoas não sabe falar a verdade pois desconhecem a verdade a respeito delas mesmas.

Então, meu primeiro parágrafo sobre falar a verdade pode soar quase alienígena para essas pessoas. Qual é a verdade? Talvez nem eles lembrem. Talvez a verdade esteja tão contaminada por crenças, rituais e imposições que a maioria das pessoas tenha uma real dificuldade em conhecer (e, portanto, falar) a verdade a respeito delas mesmas.

Sim, a maior parte das pessoas não é confiável, pois quem não é capaz de conhecer e te mostrar a verdade pura do que é não é digno de confiança, não por maldade, mas por confusão e desconhecimento mesmo. Uma pessoa que um dia te ama e no outro briga com você por você não dar a ela o que ela quer não é confiável. Uma pessoa que te promete coisas que não pode cumprir (embora ela acredite que pode) não é digna de confiança.

Confiança não é apenas sobre traição, sobre fidelidade. Confiança é sobre estabilidade: saber que aquela pessoa segue aqueles valores, aquelas regras e que se você se alinhar com elas, existirá uma convivência pacífica e harmônica. Se comportar de forma instável, incoerente, imprevisível é uma forma de trair a confiança. Logo, o primeiro grande passo para ser digno de confiança é conhecer bem a si mesmo. O segundo é compartilhar isso com a outra pessoa, falando a verdade.

Então, no meu ponto de vista, confiança está inevitavelmente atrelada à verdade: se você é verdadeiro, o outro sabe tudo que precisa saber a seu respeito e você se torna confiável, uma vez que a pessoa sabe claramente o quanto você pode dar e como. E a verdade, meus amigos, é sentida, não é racionalizável. As pessoas sentem quando você fala a verdade.

Qualquer outra coisa, como cumplicidade, disponibilidade, afinidade e afins, pode gerar uma identificação imediata que talvez alguns confundam com confiança, mas, cedo ou tarde, haverá um atrito de interesses.

Em algum momento haverá discordância onde a negativa de um gerará expectativa frustrada no outro. Ninguém está 100% de acordo com o outro o tempo todo e, quando a discordância chega, é muito comum que as pessoas se sintam traídas se elas foram induzidas a colocar a afinidade como pilar de sustentação daquela relação.

Uma pessoa parecida ou com os mesmos interesses é muito legal, mas somos complexos, não existe alguém igual a você, não existe alguém que sempre será seu cúmplice, com os mesmos valores e interesses. Em algum momento o conflito bate à porta e, se não há uma verdade muito clara colocada à mesa, a sensação de confiança traída é quase certa.

Então, mais poderoso do que prometer afinidade e cumplicidade é prometer a verdade, assim, por mais que existam discordâncias, todos estarão cientes delas e ninguém se sentirá traído. Sim, a verdade liberta, a verdade une e a verdade inspira a real confiança.

O problema é que a verdade nem sempre é agradável. Isso faz quem tem um ego frágil balançar: “se eu falar a verdade essa pessoa não vai querer ficar ao meu lado”. E daí a pessoa omite a verdade para manter uma pessoa na sua vida. Spoiler: só está adiando a partida da pessoa, que é certa, é apenas questão de tempo, pois, adivinha? Não se pode enganar o outro o tempo todo.

Por outro lado, vem aí uma geração que acredita que falar a verdade, quando essa verdade vai contra seus pensamentos, é quase que uma ofensa. Sinceramente? O problema está com eles, eles devem resolver.

Ninguém vai concordar com você, te aplaudir ou te apoiar em qualquer merda que você faça. Ao menos não se a pessoa realmente gostar e se preocupar com você. Se uma pessoa que eu gosto está indo por um caminho muito errado, me comportar com cumplicidade certamente não será uma opção. Cumplicidade afaga, a verdade salva.

Eu não confiaria em alguém que passa a mão na minha cabeça não importa o que eu faça. Mas sim, confiaria em alguém que externa a sua verdade, o que a pessoa realmente acha (ainda que não coincida coma minha). Acha que eu estou no caminho errado? Que eu estou fazendo merda? Prefiro que fale a verdade do que me dê apoio para continuar.

“Mas Sally, se eu sair falando todas as verdades que eu penso eu fico sem amigos e acabo preso”. Existe uma diferença entre verdade e sincericídio. Certas coisas só devem ser ditas se te forem expressamente perguntadas. Não vai apontar para a amiga e dizer o quanto ela está gorda esperando ganhar sua confiança. A verdade à qual me refiro aqui no texto é a verdade sobre você mesmo, sinceridade sobre o que você é, o que você pode dar, sobre o que você quer.

Fale a verdade e dê à pessoa a real oportunidade de decidir se o que você tem a oferecer é compatível com o que ela quer ou não. Nada que escape disso será uma relação saudável, nem duradoura nem será digna de confiança.

Para dizer que se você falar a verdade ninguém vai ficar perto de você, para dizer que se você falar a verdade as pessoas legais não ficarão perto de você ou ainda para dizer que mentiras sinceras te interessam: sally@desfavor.com

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Comments (4)

  • Confiança é algo realmente difícil de se conquistar, e quando se perde então é bem difícil até mesmo tentar retomar. Tendo a concordar com a Sally nessa, já que a sinceridade e verdade são bons pilares pra estabelecer vínculos de confiança com a pessoa. Claro que não é da noite para o dia, demora, leva tempo e empenho, e ser sempre sincero ajuda e muito para que a pessoa te conheça melhor e confie em ti.

  • Eu não confio nas pessoas muito diplomáticas, que não dão opinião, que fazem de tudo pra não ofender, uma incógnita que ninguém conhece de verdade. Confiável pra mim é pessoa sincericida, pavio curto e que diz o que pensa na lata, assim eu sei com quem tô lidando. Prefiro lidar com quem é transparente do que quem sempre ensaia o que falar e o que fazer.

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