Sentimento falso.
Sentir o mesmo que o outro é tão importante para a nossa função social que o cérebro conta com partes focadas em espelhar o sentimento alheio. Mas nem sempre você consegue ter essa empatia verdadeira. Sally e Somir sentem algo bem diferente diante dessa situação. Os impopulares fingem ou não.
Tema de hoje: é válido emular um sentimento para que o outro simpatize com você?
SOMIR
Sim. Não estou dizendo que é algo nobre e desejável, mas estou dizendo que em algumas situações, pode ser muito válido. Aliás, eu nem estou dizendo que eu faço isso, porque apesar de acreditar que existem vantagens de comunicação para quem consegue emular sentimentos na frente dos outros, eu mesmo sou péssimo nisso.
Talvez alguns dos seres mais socialmente ineptos que nos acompanham consigam entender: se você é meio avoado e escravo de interesses momentâneos como eu, já deve ter percebido como perde um monte de oportunidades sociais por simplesmente não ler bem os sentimentos e “dicas sociais” que os outros nos passam diariamente.
Se eu ganhasse um real para cada mulher que me disse depois do fato que estava dando mole para mim, eu teria mais de 10 reais. Não é muito, mas é estranho poder comprar uma coxinha e um guaraná com essa fonte de renda, não? Pois bem, isso tudo para dizer que eu só não faço isso por não ter capacidade, porque a lógica da coisa me parece muito sólida.
Explico: muito da comunicação humana acontece de forma não-verbal, mesmo se você for uma pessoa muito articulada, o jeito que você fala, a forma como se porta, sua aparência, gestos e tudo mais contam muito na forma como o outro te percebe. E essa comunicação é muito importante.
Você complementa ideias muito complexas com o sentimento que demonstra para o outro. “Errei…” pode ser engraçado, irritante, desinteressado, provocativo, sincero, doloroso e tudo mais de acordo com o sentimento que você demonstra ao dizer a palavra. Colocar sentimento no que você fala aumenta exponencialmente sua capacidade de comunicação. Gente que sabe colocar essa energia extra no que diz costuma ser muito mais carismática, e por tabela, persuasiva.
Claro que eu entendo que honestidade na demonstração do sentimento é o melhor caso, mas existe sim uma área cinza nessa conversa: sentimento não se discute. Curiosamente foi a Sally que me ensinou essa valiosa lição de vida, eu passei a entender o mundo por esse ângulo e percebi melhoras consideráveis nas minhas relações. O sentimento do outro não precisa da sua aprovação ou concordância, ele simplesmente existe.
Daí a escolha de lidar com o que estava na minha frente ou de teimar que eu era a baliza do que os outros podiam ou não sentir. Eu tinha uma mania terrível de fazer a segunda opção: se eu não achasse o que o outro sentia válido, ignorava ou até tentava combater. Na melhor das hipóteses acabava pisando em alguém fragilizado, na pior, criava um clima ruim que acabaria em ressentimento futuro. Inteligência emocional negativa…
Tem muita coisa entre o que se diz e o que se sente, e são coisas que não podem ser ignoradas. Se você lida com isso ou se finge que não existe, tanto faz: o sentimento vai impactar nas suas relações, e não tem nada que você possa fazer contra isso. Faz mais sentido aceitar essa parte da vida e tentar ficar melhor nessa tal de “conversa entre sentimentos”.
O que não quer dizer que você é obrigado a entender profundamente o sentimento do outro, como já disse, ele não depende de você concordar para existir. Muitas vezes você tem que tentar racionalizar algo que não sente para achar algum caminho para lidar com o outro. E não tem nada de maligno nisso: somos todos diferentes, tem coisas que outras pessoas sentem que você simplesmente não sente.
Para não pegar o caminho da negação e estragar suas relações, você usa o racional para ter alguma conexão. É melhor do que ficar atrás de uma parede. E por isso eu inverto a lógica para falarmos sobre emular sentimentos: mesmo que não seja ideal, é uma forma do racional tentar cobrir a distância que a simples fala ou escrita não consegue atravessar.
Tem coisas que o outro só entende se os seus neurônios-espelho ativarem, uma palavra usada com o sentimento certo tem significados extras que complementam a comunicação. Se às vezes você precisa usar o racional para entender um sentimento do outro, por que não usar o racional para emular um sentimento que o outro vai entender?
A gente tem um inconsciente poderoso, é até inocência achar que estamos no controle do que demonstramos para o outro, existem vários mecanismos que nos fazem exibir sentimentos que quando bem pensados, nem concordamos muito. Quando eu falo de não ser esse crime todo emular felicidade, tristeza e similares para se comunicar com uma pessoa, eu também estou dizendo que é parte do nosso pacote humano.
Seu cérebro tem propensão a copiar o sentimento do outro, quem nunca se pegou vendo uma história triste de outra pessoa de forma meio fria e racional, e de repente, ao ver a pessoa começando a chorar de tristeza, sentir algo parecido numa pancada só?
Já tem algo que pode ser chamado de mentiroso na nossa relação com o sentimento alheio. O espelhamento acontece de forma mecânica, é uma vantagem evolutiva que desenvolvemos. É naturalmente uma “mentira útil” que o cérebro nos conta, sentir o que o outro sente aumenta coesão do grupo, cooperação e taxa de sobrevivência.
Não acho fundamentalmente errado emular um sentimento para aumentar a força de uma conversa ou argumentação. É natural, é muito provável que todos façamos isso de forma inconsciente, e nesses casos eu argumento que é até mais ético tentar trazer isso para a consciência: você consegue perceber mais rápido se está seguindo um caminho que não acha correto. O inconsciente não vai parar de usar essa vantagem evolutiva, mas você consciente pode diminuir a intensidade dessa pancada ou até mesmo se controlar para parar se achar que está fazendo algo errado.
No final das contas, é o seu senso de ética que vai ditar como as coisas vão acontecer. Gente escrota vai ser escrota emulando sentimentos, gente que tenta ser melhor do que isso vai ser melhor do que isso emulando sentimentos. Como sempre, não é a arma, é quem puxa o gatilho.
Você tem essa capacidade, eu acho melhor usá-la de forma consciente.
Para dizer que ficou triste ao ler o texto, para dizer que eu sou um mentiroso escroto, ou mesmo para dizer que sentimento de cu é rola: comente.
SALLY
É válido emular um sentimento para que o interlocutor simpatize com você? –
Não. Por diversos motivos, mas, o principal deles e que isso só piora a situação, gerando uma bola de neve de mentiras que, mais cedo ou mais tarde, serão desmascaradas.
Se estamos falando de uma pessoa que respeitamos, não acho que seja válido emular sentimentos por uma questão de respeito e consideração: é desleal fingir. Existem outras infinitas formas de dar acolhimento que não envolvem mentira. Não é preciso sentir o que a pessoa sente para ter a capacidade de validar, compreender e respeitar – e se alguém te exige que você também sinta o mesmo que a pessoa sente, corra, é maluco.
Se estamos falando de pessoas que não respeitamos ou que não temos interesse em desenvolver qualquer tipo de relacionamento (pode ser desde uma pessoa com a qual você só vai conversar 15 minutos na sua vida em uma sala de espera até um sequestrador que te mantém em cativeiro), a estratégia também é ruim. Mentira custa caro e é muito facilmente desmascarada, por mais que os mentirosos adorem acreditar que não.
No minuto em que você concorda em fingir um sentimento para obter a simpatia do seu interlocutor, está chamando para si a obrigação de escrutinar tudo que você vai dizer e como vai agir sempre que interagir com essa pessoa ou com pessoas que a conheçam. É bem arrogante pensar que vai conseguir fazer isso com perfeição e manter a coerência.
Mesmo que desse certo, o custo disso é altíssimo. É quase que uma escravidão velada que, além de exaurir, não se sustenta por muito tempo. E quando a máscara cai, a pessoa fica duplamente puta: por você não se sentir como ela e por você ter enganado ela.
Nada tem o peso, a força e o impacto da verdade. Se existe uma saída, é através da verdade sua melhor chance. E quando eu digo “verdade”, não quero dizer ser rude, direto, grosseiro com o outro. É possível falar verdades sem ofender, tudo depende da forma como se fala. Dizer como se sente de verdade sem julgamentos, sem condenação e sem desmerecer quem pensa diferente costuma ser a melhor alternativa.
Inclusive tem mais mérito não se sentir como a pessoa, mas, ainda assim, fazer o valioso exercício de se colocar no lugar dela e compreender e validar como ela se sente. Validar por você também sentir igual é quase que um egoísmo. Divergir e ainda assim ser capaz de compreender e validar o sentimento é gastar um tempo da sua vida para olhar para o outro de forma amorosa e compassiva.
Por mais que a maioria das pessoas não tenha esse mecanismo tão claro na cabeça, a pessoa sabe quando ela está sendo olhada, ouvida e acolhida. Ela sente. E geralmente ela fica grata. Mesmo os mais doidos da cabeça costumam valorizar mais quem os acolhe como eles são do que aqueles que pensam da mesma forma que eles. Fingir que concorda com a pessoa flerta com puxa-saquismo e, de alguma forma, isso acaba sendo percebido.
Todo mundo, por mais maluco, chato ou escroto que seja, já teve alguém que concorde com seu pensamento, sobretudo em tempos de redes sociais, uma ferramenta maravilhosa para aglomerar maluco que pensa igual. Então, eu não vejo valor, nem mesmo como ferramenta de manipulação, tentar emular um sentimento para que o interlocutor simpatize com você. Isso já é feito em larga escala, por sinal.
O que nem todo mundo teve na vida é um olhar verdadeiro, alguém prestando atenção no que você é, no que você quer, nas suas dores. Alguém que, mesmo discordando, se coloca no lugar do outro e compreende que ele se sinta assim. Isso é raro. Isso é valioso. Isso faz as pessoas sentirem ao menos algum resquício de gratidão.
E a melhor parte é que oferecendo sua empatia, sua compaixão, seu olhar amoroso, você não corre o risco de ser desmascarado em alguma fala ou algum ato. “Mas Sally, eu nunca mais vou ver essa pessoa na minha vida”. Você não pode ter certeza disso, não é mesmo?
Às vezes a pessoa com a qual você briga na fila do supermercado, no dia de amanhã, pode ser o entrevistador para uma vaga de emprego que você deseja. Faça pontes, em vez de queimá-las. Quando não houver outra forma, paciência, queime uma ponte, mas nesse caso existem outras opções tão boas quanto ou até melhores.
Todos nós podemos nos conectar com alguém sem precisar mentir. Todos nós somos capazes de compreender a dor do outro e de acolhê-lo sem precisar mentir. Todos nós somos capazes de entender de onde vem um ato, por mais errado que ele seja e por mais que achemos que ele tem que ser passível de punição. Se você quer que alguém simpatize com você, a primeira regra é: não minta. Busque verdades que sejam capazes de te conectar com essa pessoa.
Simpatia por concordância é suborno, você tem que ficar pagando, cada vez mais, se não dá merda. Um caminho bem preguiçoso para interagir e se conectar com as pessoas. E todo mundo perde: o outro que é enganado e feito de trouxa e você que fica escravo de sustentar uma mentira e vai ter que lidar com o dobro de putez quando for desmascarado.
Não compliquem. Verdade. Sempre.
Para dizer que enganar o outro te dá uma sensação gostosa de poder, para dizer que nem fodendo se dá ao trabalho de olhar e conhecer o outro ou ainda para dizer que não sabe opinar para não nos desagradar: comente.
Desfavores relacionados:
Etiquetas: mentira, relacionamentos, sentimentos
F
Espero que vocês não estejam lendo aquelas merdas de Comunicação Não Violenta (CNV).
Fumem crack, mas não leiam esses livros. É seita. Fujam.
Sally
Ah, o rapport… a forma mais artificial, plastificada e cafona de tentar criar empatia!
Paula
Eu tento me colocar no lugar das pessoas, mesmo se for pra entender melhor como comunicar que acho que elas estão extremamente erradas. Fazer isso o tempo todo é exaustivo, e não dá pra acolher e ter empatia com todo mundo, principalmente quando precisamos reagir rápido. Mas facilita muito a vida e torna os relacionamentos muito mais genuínos e fáceis.
Aprendi a aplicar – ou pelo menos emular – um certo rapport quando aprendi a vender e negociar, mas aplico bem mais nos meus relacionamentos interpessoais. Foi um dos aprendizados que mais me ajudou a ter relacionamentos mais pacíficos.
Anônimo
Eu sei que as mulheres são loucas, mas eu aprendi com uma ex namorada que o melhor a se fazer pra ter paz de espírito é concordar com a outra pessoa. Se ela surtava e eu não entrava na dela, me chamava de frio, sem empatia, que falar comigo e com parede dava no mesmo. As pessoas gostam disso e não me custa nada também então já peguei o jeito.
Sally
Talvez só mulheres loucas fiquem ao seu lado, por algum motivo, as normais estão se afastando. Reflita.
Anônimo
Como alguém que sofreu todo tipo de agressão, negligência e exclusão, inclusive da própria família, durante boa parte da vida antes de ser diagnosticado com TEA e fazer tratamento, digo SIM. Essa é a vida real. Se não jogar o jogo, ninguém vai gostar de você, se lembrar de você, te achar atraente, te dar oportunidades… eu só consegui amigos, ficantes e trabalho porque eu criei um personagem, com roteiro e tudo, pra interpretar fora de casa. Até minha família me trata melhor agora. Pratico gestos e expressões faciais no espelho, pesquiso as coisas populares do momento, observo as pessoas até aprender e imitar. Se eu seguisse o caminho do “seja você mesmo” eu teria virado um Chris Chan ou uma Tidinha da vida. Masking é questão de sobrevivência.
Sally
Eu espero sinceramente que você pare de se convencer de mentiras e de promover essa violência contra você mesmo antes que seja tarde demais.
Muito triste ver uma autoestima tão baixa que leva o racional a fazer malabarismos para sustentar que mentir é o único caminho.
Isso que você está fazendo com você mesmo vai te cobrar um preço muito caro. Pare. Reflita. Recalcule a rota e se cerque de pessoas que te aceitem como você é, se não, você estará construindo castelos de areia.
UABO
Esse relato do Anônimo me deixou chocado…
Gabs
Bem vindo ao mundo dos neurodivergentes, UABO. Ele não é o primeiro nem o último. O que mais tem em hospital é autista que foi agredido, às vezes até a morte (teve um caso recente que deu grande repercussão, lembram?). Ainda tem muita ignorância sobre o assunto, inclusive em instituições renomadas. Exemplo, a Universidade de Oxford associando dificuldade de contato visual com racismo, sendo que é uma das características mais marcantes de pessoas autistas.
https://www.bbc.com/news/uk-england-oxfordshire-39742670
Sally
Racismo? Inacreditável, principalmente vindo de pessoas com boa formação, que deveriam saber melhor. Tá insuportável este mundo…