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Crescimento difícil.

Crescimento difícil.

| Desfavor | | 2 comentários em Crescimento difícil.

A vida adulta tem suas benesses, mas não é fácil. Sally e Somir valorizam a independência, mas se é para reclamar do que vem em contrapartida, seguem caminhos distintos. Os impopulares crescem e aparecem.

Tema de hoje: qual a pior parte da vida adulta?

SOMIR

Socialização. E não é tão papo de antissocial como pode parecer: socialização que vem da infância e socialização que começa na vida adulta são categorias diferentes. Apesar de ser mais caseiro, eu ainda continuo gostando de passar tempo com pessoas queridas, mesmo que signifique ir para lugares nem tão confortáveis.

A socialização que eu discuto aqui é aquela mais forçada que ocorre na vida adulta. A com interesses adicionados além de passar seu tempo com quem você gosta. Costumamos ter uma prévia disso na escola, onde você lida com outras crianças por um objetivo maior. Mas como nessa fase da vida você provavelmente nem percebe isso, seus amigos acabam se tornando a atividade-fim. Você vai para a escola para ver sua turma, e por tabela faz as “missões” estudantis.

Mas quando já se presume que você está no banco do motorista da própria vida, socialização por interesses externos começa a ocupar muito mais espaço. O seu ambiente de trabalho já tem muito disso, e eu argumento que até quem trabalha de casa paga um preço, por causa de reuniões. Muitas delas são inúteis por motivos técnicos, mas obrigatórias para você continuar sendo visto.

Eu faço também, porque é necessário, mas tem algo bem escroto no mix de cordialidade forçada e passivo-agressividade em muitas delas. E pode até ser um preconceito meu, mas quanto mais a pessoas se importa com fazer reuniões e “passar uma boa imagem”, mais incompetente ela é. Então normalmente você fica mais pressionado a fazer a coreografia esperada desses eventos justamente com as pessoas que menos te acrescentam.

E nem comecemos com socialização “fora do trabalho” que na verdade é coisa de trabalho. Confraternização que só vai quem quer, mas que a pessoa que manda em você vai te julgar por não ir. Não sei se é carência, se é conselho de coach de Instagram, mas como tem chefe por aí que acha que funcionário é criança, que não tem mais o que fazer e que precisa de eventos para se manter motivado.

Falando em mercado, se você estiver disponível no sexual, suas opções são cada vez mais nefastas: baladas ou aplicativos. No começo da vida adulta eu até argumento que uma balada ou outra faz bem para o desenvolvimento de alguma habilidade sociais, mas com o passar dos anos você vai ficando cansado, não só fisicamente, mas mentalmente desse ambiente de “encontrar pessoas”. Bebida é a cola social desses sistemas, e se você não estiver disposto a se entorpecer, percebe rapidamente a futilidade e o tédio da coisa toda. Sorte de quem gosta de dançar de verdade, pelo menos deve compensar.

E na área dos aplicativos, vai muito além do Tinder: os tempos incentivam conexões online, seja para procurar sexo, seja para procurar emprego. As ferramentas digitais são úteis para nos conectar, mas socializar online ainda me parece um tanto quanto limitante. Popularidade de rede social não parece compensar para ninguém, vamos ver mais e mais influencers se queimando com vidas de fingimento sem criar laços reais.

Eu já recebo olhares atravessados quando digo que não tenho redes sociais. Parece que virou obrigação colocar um vitrine pessoal para que outros possam te julgar rapidamente. Eu não acredito em bosta nenhuma da rede social dos outros e não sei como alguém acreditaria em algo na minha. Talvez tivessem que ensinar publicidade nas escolas, as pessoas ficariam mais safas.

Além disso, tem uma outra questão: na vida adulta você começa a acumular mais famílias. Tem a sua, a da esposa ou marido, dos amigos, de primos… muita gente começa a ter filhos. Seus amigos de infância que vinham em pacotes definidos pelos seus gostos agora são grupos. Isso começa a te colocar em rota de colisão com os programas de índio dos outros. Antes você só tinha os seus, agora tem festa de criança e casamento de um monte de gente que você acaba indo. Meus amigos mais queridos são justamente os que não me colocam nessas frias, então disso eu não posso reclamar. Mas eu sei que na média não é assim.

O que costumava ser algo feito para te entreter na infância se torna uma série de compromissos na vida adulta. É claro que você ainda vai ter momentos bacanas com as pessoas com as quais quer conviver, mas começa a virar “trabalho”, você precisa manter laços que não são por afinidade para funcionar em sociedade.

Eu prefiro declarar imposto de renda do que evento social que “tem que ir para não ser esquecido”. Eu prefiro uma conta de água cara por causa de um vazamento do que “dar um pulinho na festa da filha da Fulana”. Prefiro fazer exame de rotina no médico a fazer “reunião para o chefe te conhecer”. A parte ruim da vida adulta não me parece responsabilidade de vida adulta, porque com ela vem a contraparte de você estar no controle.

Mas socialização genérica? É meio como voltar a ser criança na parte ruim de ser criança: precisa fazer sem você sequer entender a vantagem. É para outras pessoas que acham que isso é importante. Gente que posta foto de viagem “que deu uma perspectiva nova da vida” (a pessoa foi para a Disney) no Instagram e texto motivacional no LinkedIn dizendo que saúde mental é essencial (bebe todos os dias depois do trabalho).

Tem que fazer, eu sei. Ninguém é uma ilha. Mas que é um porre, é.

SALLY

Qual é a pior parte da vida adulta?

A quantidade de responsabilidades que vamos acumulando.

Já falamos sobre isso em outros textos: ser adulto hoje é ter muito mais responsabilidade do que quem era adulto nas décadas passadas. A carga de responsabilidade é desumana se você quiser fazer tudo bem-feito na sua vida.

Antigamente você pegava uma pasta e ia trabalhar. Hoje você precisa saber inglês, dominar o mundo online, ter boa aparência, saber fazer política no local de trabalho e muitos outros requisitos que nossos avós nem sonhavam.

Para montar uma casa não basta um colchão e uma geladeira. Se você não tiver wi-fi está desconectado do mundo, desatualizado e inacessível a seus familiares e empregador. É preciso ter plano de saúde, ao menos para os filhos, porque depender do SUS pode significar morte, como vemos em várias notícias semanalmente.

As contas vêm caras pois, entre outras coisas, as temperaturas extremas do planeta demandam um consumo grande de recursos para ter um mínimo de conforto térmico. Precisamos de mais eletrônicos que as gerações passadas desconheciam, com celular, que, por mais que se escolham modelos básicos, custam caro. Até comida, o item mais fundamental, está ficando cara no atual cenário mundial.

Isso nos obriga a trabalhar, muitas vezes em mais de um emprego. O que nos tira boa parte do tempo, tornando ainda mais difícil cuidar de nós (seja corpo ou mente), manter uma família unida, educar filhos, cultivar amizades verdadeiras, estudar constantemente, estar atualizados e em frequente aprimoramento profissional.

Hoje, em um mercado de trabalho abarrotado, se você não tiver um diferencial, cai no desemprego e não sai mais. É preciso constante atualização, aprimoramento e estudo. Com que tempo e dinheiro? Problema seu, se vira.

Hoje, o padrão de beleza é muito mais exigente. A pessoa tem que ser magra, os dentes têm que ser perfeitos e de preferência de um branco tão branco que nem existe na natureza. É creme para isso, perfume para aquilo, são infinidades de exigências estéticas e de moda. Ou você tem aparência de filtro de Instafram ou está errado. Dá teu jeito.

Educar os filhos também virou uma questão estressante. Antigamente se colocava as crianças na escola mais perto de casa e vida que segue. Hoje tem um monte de critérios para escolher a melhor escola, a melhor educação em casa, as melhores atividades.

Além disso tem que ficar de olho no universo digital, afinal, ninguém quer ver o filho vítima de pedófilo, sendo sugado por seita social ou até cometendo crimes. Tem que estar atento a tudo: desde conteúdo de redes sociais até o que o filho está assistindo online. 24 horas por dia. E se você não entende nada desse mundo, tem que passar a entender.

E o relacionamento? Não pode relaxar. Não pode engordar. Não pode se acomodar. Não pode não ter tempo ou disposição para o parceiro. E, dependendo do parceiro, ainda vai ter que sair, ir ao cinema, sair com outros casais, viajar, pois, até onde entendo, pessoas normais costumam exigir que o outro saia de casa.

Tem que desenvolver algumas habilidades também. Prestação de serviço custa cada vez mais caro, seria saudável que a pessoa saiba fazer pequenos reparos em casa, preparar refeições básicas, performar alguns cuidas pessoais, para não depender de prestador de serviço para tudo. Chegue cansado do trabalho e cozinhe. Problema seu. Conserte privada, prepare um risoto e faça suas próprias unhas. Se vira.

Tem a burocracia também, que todos nós, de tempos em tempos, somos obrigados a enfrentar. Conta veio no valor errado? Liga e atura duas horas de musiquinha até um ser humano falar com você. Venceu a validade do cartão. Tem que renovar CNH. Plano de saúde ficou muito caro, é hora de trocar por outro. Prazo para imposto de renda tá aí. As demandas são infinitas.

E não pode descuidar da saúde. Não é só aquele checkup anual com o clínico geral não! Tem que consultar o dentista regularmente. Tem que ir ao ginecologista ou proctologista para revisão. Tem que ir no oftalmo para ver se o grau aumentou. Tem que ir em vários especialistas trabalhando 8h por dia. Fora as vezes que a gente realmente adoece e precisa ir ao médico para ser corretamente medicado.

Tem as redes sociais, que para muitos, não são opcionais. Só quem é visto é lembrado, isso acorrenta muita gente que está procurando por parceiros, clientes ou trabalho a redes sociais. E redes sociais precisam ser atualizadas diariamente, de preferência várias vezes por dia. E com conteúdo interessante, pois sua concorrência é o resto do mundo. Como faz conteúdo que se destaque no meio de bilhões de pessoas? Se vira.

E os afazeres domésticos? Não dá para deixar a casa um chiqueiro. A louça não se lava sozinha. Precisamos de roupa limpa para vestir. Tudo isso consome tempo e dinheiro, pois mesmo que você faça tudo sozinho, vai ter que comprar produtos de limpeza para fazê-lo. Chegou cansado do trabalho? Ninguém se importa, vai faxinar banheiro. As costas estão doendo? Foda-se.

Ah sim, tem que dormir pelo menos 8 horas por noite, se não, fica muito mais difícil conseguir dar conta de tudo, pois um cérebro que não está descansado não rende bem. Mesmo com obrigações transbordando, mesmo fazendo mil trabalhos e tarefas até cinco minutos antes de ir para a cama, a pessoa tem que conseguir deitar, relaxar e dormir bem por muitas horas. Se vira.

São muitas responsabilidades, pouco tempo, custo de vida elevado e salários baixos. Tantas responsabilidades geram ansiedade (e é normal que gerem), o que prejudica a saúde mental, a concentração e a produtividade, gerando um círculo vicioso que se retroalimenta: a pessoa performa pior, a ansiedade aumenta.

Então, francamente, socialização é chato e exaustivo, mas você tem a opção de não fazer ou de fazer menos, ou de fazer do seu jeito. As responsabilidades não. Não dá para ficar sem pagar conta, não dá para não ter roupa limpa para vestir, não dá para não cuidar dos filhos. Me parece bem mais difícil.

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