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Extrapolando.

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| Desfavor | | 6 comentários em Extrapolando.

Começa mais uma Semana Nerd na República Impopular do Desfavor, e em tempos de Inteligência Artificial, resolvemos especular loucamente, ou como se diz no jargão do setor: alucinar. Começamos com uma discussão sobre até onde essa tecnologia pode ir, não na máquina, mas no ser humano. Os impopulares fazem seus cálculos.

Tema de hoje: você acha que teremos uma escalada do virtual de forma desenfreada a ponto de desnaturar por completo as relações humanas ou vai acontecer um ponto de ruptura?

SOMIR

Sim. O erro mais comum na futurologia é considerar que as pessoas vão ter a mesma moral que temos agora. Moral é um termo mais relacionado com costumes de um povo, usam muito para falar sobre certo ou errado, mas o conceito mesmo é o que as pessoas de um determinado local e tempo consideram aceitável ou não.

Na Islândia, o moral é evitar qualquer tratamento diferente entre homens e mulheres. Na Arábia Saudita, o moral é não deixar mulher sair de casa sozinha. Tem a ver com as leis, mas normalmente são ideias que permeiam a sociedade com ou sem obrigação definida pelo Estado.

E é por causa disso que quando eu tento extrapolar o futuro, eu penso primeiro em como a moral de um povo vai mudar junto com a tecnologia e/ou os problemas do tempo. Se você pegar o ser humano médio agora e jogar ele numa sociedade lotada de inteligências artificiais e opções “infinitas” de entretenimento virtual, muita gente vai rejeitar a artificialidade.

Por princípio ou por limitação mesmo. A maioria das pessoas se confunde fácil com coisas eletrônicas, aplicativos são pensados para funcionar até com um chimpanzé na frente da tela. Vai ser confuso para o ser humano atual. E mais: o ser humano atual, de uma forma ou de outra, tem experiências reais para balancear e comparar.

Agora, o que precisamos entender nessa discussão é que enquanto a tecnologia avança, as pessoas vão mudando a sua moral. O que você pode achar distópico e até mesmo patético hoje pela desconexão com outros seres humanos vai ser só mais um dia para essa pessoa do futuro.

Alguém que foi formado como pessoa numa sociedade com mais opções artificiais de relacionamentos vai ver as coisas diferente. E a cada geração isso avança mais um pouco. Se alguém da Idade Média caísse no nosso mundo do começo do Século XXI, nos acharia uns incompetentes que nem sabem produzir a própria comida. Seres fracos e patéticos que parecem que vão morrer se sentirem um cheirinho estranho.

Eu acredito que a sociedade vai escalar para uma moral que não diferencia mais o real do virtual. É uma tendência histórica que as pessoas se tornem mais abstratas no pensamento e menos proficientes no mundo real. Vamos criando tecnologias que nos colocam em berços cada vez mais dourados e que eliminam sacrifícios que nossos antepassados faziam.

E socialização é um esforço constante altamente influenciado por tecnologia. Cada revolução muda a forma como convivemos, mesmo que a maioria dos nossos desejos e medos ainda sejam baseados nos instintos que herdamos dos homens das cavernas. O ser humano não precisa mudar fundamentalmente para viver em um mundo guiado por inteligências artificiais e realidades virtuais. Agora você acha estranho cobrir uma necessidade primal de pertencimento com um programa de computador, mas a discussão não é sobre você agora.

É sobre quem já vai nascer num mundo acostumado a usar IAs para interagir com a realidade. Pessoas que possivelmente vão ficar menos tolerantes com discordância ou mesmo demora para ouvir uma resposta. Não só vai se tornar mais comum tratar a IA como outra pessoa, como pessoas mais acostumadas com IA vão ter menos paciência com pessoas reais.

É uma mudança moral dupla: o artificial mais aceito e o humano menos. Eu entendo que assim como existem grupos antitecnologia hoje vão existir grupos parecidos no futuro, meio como os Amish, vivendo em sociedades isoladas que se recusam a usar a IA. Mas assim como esses grupos modernos, evidente que vão ser uma minoria, no máximo um refúgio para quem está sobrecarregado com a vida cotidiana.

E dependendo de quão fácil for viver dentro de uma casa com suas funções fisiológicas cuidadas por máquinas, mais e mais pessoas vão olhar para a vida virtual onde a IA cobre todas suas necessidades psicológicas e acharem uma boa ideia. Vai começar com os rejeitados, mas assim como outras tecnologias, massifica e vira normal. Eu vi o mundo onde rede social era coisa de perdedor e vivi até não ter rede social ser coisa de perdedor.

A moral não é baseada nas escolhas mais inteligentes, e sim nas escolhas mais feitas pelas pessoas. Costuma ir na direção do que é mais fácil de fazer, do que é mais confortável. Você pode rejeitar viver num mundo virtual, mas seus descendentes vão ver as coisas diferente. E são coisas que se retroalimentam, porque mais tecnologia gera mais mudanças na moral, e mais mudanças na moral tornam o avanço tecnológico mais desejável e recompensador.

Eu realmente não vejo isso como uma questão de “se”, mas uma questão de “quando”. O ser humano eventualmente não vai se importar mais se suas relações são reais ou virtuais, e provavelmente o virtual vai ser mais eficiente em entregar o que essas pessoas vão querer da vida. Nem sei se vai ser bom para a humanidade ou não, só sei que não me parece algo que pode ser evitado sem um evento gigantesco que nos empurre de volta alguns séculos em tecnologia.

E mesmo assim, se não acabar com a humanidade, uma hora ou outra chegaremos nesse ponto de novo.

SALLY

Você acha que teremos uma escalada do virtual de forma desenfreada a ponto de desnaturar por completo as relações humanas ou vai acontecer um ponto de ruptura?

Por mais que eu ache que o mundo virtual vai tomar proporções avassaladoras muito além do que seria saudável, também acredito que existirá um ponto de ruptura. Comportamento geralmente encontra limites na biologia, e somos animais sociais. Isso não vai mudar em poucas décadas.

Em algum momento, o mundo excessivamente virtual vai começar a causar tantos danos físicos e mentais (e talvez econômicos) que Governos, médicos e as próprias pessoas vão se empenhar em um resgate de algo do social. Talvez não seja exatamente como o que conhecemos hoje, mas será algo para sair do virtual excessivo.

Quem gosta do virtual, quem se beneficia do virtual, tem essa ilusão de que dá para ficar só no virtual de boa. Não dá. Mesmo pessoas que hoje passam suas vidas massivamente no virtual, eventualmente tem alguma obrigação de se relacionar com outros seres humanos, nem que seja encontrar os pais no aniversário, ir ao shopping comprar algo ou atender um cliente. Por isso, essas pessoas não têm a menor ideia do que é realmente romper com relações humanas. No dia que o fizerem, verão que não dá, que o custo é alto demais.

Dá para ficar com muito pouco de relações humanas na sua vida? Acredito que sim. Dá para ficar com 0%? Não. E nem é uma opinião minha, é o entendimento que prevalece entre os estudiosos da mente. É uma necessidade vital do ser humano, assim como respirar ou beber água, com a única diferença que não te mata se você não a executar, apenas te adoece. Corpo e mente.

“Mas Sally, eu posso tranquilamente nunca mais ter contato real com qualquer outro ser humano e passar todas as minhas relações para o virtual”. Pode sim. O que não pode é fazer isso de uma forma sustentável. Tem um preço e a humanidade não consegue pagar. E não será você, querido floquinho de neve único e especial, que vai conseguir de boa algo que a humanidade não consegue.

Se você analisar a história, verá que sempre que fazemos uma escolha merda que nos adoece e ameaça nossa existência, criam-se mecanismos para contornar isso. Não é por prazer que o ser humano passa a vergonha de pegar um carro, ir até a academia e ficar andando em uma esteira. É necessário. A própria sociedade se encarregou de que seja necessário, estabelecendo um mecanismo forte de exclusão para quem não o faz.

Acredito que o mesmo vá acontecer quando o virtual chegar em um ponto nocivo e começar a causar danos reais, significativos, que ameacem a nossa existência. Algum mecanismo de interesse será construído para nos obrigar a resgatar algo do social, não sei de que forma, não sei como, mas vai acontecer. Somos previsíveis, meus queridos.

O ser humano é burro, mas nosso cérebro está fortemente programado para sobreviver. Essa é a meta, por mais que muita gente ache que a meta é comer mulher, defender político ou xingar muito na internet. E cérebros cuja prioridade é a sobrevivência vão encontrar formas, mecanismo, interesses que obriguem o humano fazer, ainda que manipulado ou enganado, o que precisa ser feito para sobreviver.

Gostamos de acreditar que estamos no controle, mas não estamos. A porção racional-consciente do nosso cérebro é infinitamente menor do que a inconsciente. E adivinha quem está ao volante na maior parte do tempo?

Eu comparo o mundo virtual a uma piscina: no começo todo mundo quer, todo mundo gosta, todo mundo usa, mas como o tempo, enjoa e gera desinteresse. “Mas Sally, eu sou viciado no mundo virtual há anos!”. Ok, mas em termos de “significância” para a humanidade, isso é zero. Esse tempo se conta em séculos. Eventualmente a humanidade vai enjoar do virtual, é apenas um brinquedo novo.

Ou enjoa pelo excesso, ou enjoa por algum mecanismo criado para isso, de modo a impedir nossa extinção por todas as consequências negativas que esse excesso vai gerar. Se o ser humano fosse capaz de se extinguir por sua própria imbecilidade, isso já teria acontecido faz tempo. Tem algo na nossa programação que nos salva.

Essa conversinha de relações acabarem é papo de Incel e derivações, é terraplanismo emocional. Não se sustenta. Em algum momento nosso sistema de alerta liga e nos obriga, pela força ou pela manipulação, a recalcular a rota.

Vai ser tranquilo? Claro que não, a humanidade vai ter que se foder muito antes desse mecanismo de salvação ativar. Quem estiver vivo verá horrores, vivenciará horrores. Mas em algum momento, a ruptura com a vida virtual vai acontecer e teremos um resgate das relações humanas, ainda que repaginadas.

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