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Não nasceu ontem.

Não nasceu ontem.

| Desfavor | | 12 comentários em Não nasceu ontem.

Pouco mais de um ano antes de as denúncias do influenciador Felca provocarem uma onda de comoção nacional e mobilizarem o Congresso Nacional, acusações semelhantes contra Hytalo Santos resultaram em uma ordem judicial para remoção do conteúdo. LINK


O tema continua porque quanto mais se mexe nele, mais fede. Desfavor da Semana.

SALLY

Continuamos no assunto. A coisa é tão séria, tão profunda, com tantas camadas, que falamos sobre isso durante a semana e continuamos hoje: o Brasil comete todo tipo de abuso, desde os mais violentos, até os mais sutis (e nem por isso menos danosos) com crianças e ninguém consegue sequer conversar com seriedade sobre o assunto, quanto menos agir.

Questões preliminares já foram tratadas neste texto. Vamos seguir em frente e aprofundar um pouco mais.

Primeiro ponto: adultos infantilizados criam crianças adultizadas. A maior parte das pessoas não tem tempo, recursos e maturidade/sanidade emocional para ter filhos, então, querendo ou não, consciente ou não, expõe demais seus filhos e funciona como uma engrenagem nessa máquina de abusos. Como o ganho secundário é enorme (vaidade, ego, likes, dinheiro ou outros que não cabe citar), as pessoas jamais vão refletir ou admitir isso.

Aí, quando eu faço um texto dizendo que não tem que postar foto de criança em rede social, vem uma enxurrada de xingamento e justificativa. “Ain mas meu perfil é fechado”. “Ain mas você é muito radical”. “Ain mas todo mundo faz”. NÃO INTERESSA. NADA DISSO INTERESSA. Conheçam o país no qual vivem. Não exponham criança em rede social. Não postem foto. Não permitam que criança tenha ou use rede social.

Aí vem meu argumento favorito: “Mas se a gente for pensar assim, não vive”. Quão putrefato tem que estar o cérebro de quem acha que não postar foto em rede social é não viver? Qual o grau de retardo mental, futilidade e inversão de valores que alguém tem que experimentar para achar que não postar foto em rede social é sinônimo de uma privação grave?

Eu sei, eu sei, é uma batalha que não vale à pena ser travada, pois já está perdida. A pessoa, em sua imensa necessidade de atenção e validação, sempre vai postar coisas da sua vida privada em redes sociais. Só quero deixar registrado que pedófilo age assim por ser doente, então, por mais errado que seja, há uma explicação. O que os pais fazem com seus filhos no Brasil não tem explicação científica, é pura imbecilidade.

Outro desfavor que vimos: mudar o foco do que é importante. “Ain o Felca não pode falar pois postou isso e aquilo”. “Ain o influencer preso é petista”. Por favor, podemos focar na questão urgente? O Brasil violenta crianças de forma sistemática, repetida e abundante por décadas, inclusive muito da violência acontece dentro da própria casa. Podemos olhar para isso? Podemos debater uma solução para isso? Não. Pois dói muito. Dá desespero. As pessoas preferem acreditar que o Papai Estado vai criar lei e resolver para elas, como se lei resolvesse alguma coisa no Brasil.

Mais um ponto que precisa ser falado: abuso com criança acontece muito no Brasil. Abuso e sexualização de criança acontece muito, muito mais do que as pessoas imaginam, pois criança dificilmente consegue se livrar de um abusador mais velho, denunciar, ser ouvida. Acontece em todas as classes sociais. Certamente VOCÊ, da rede social fechada, que acha que tá seguro postar foto dos pimpolhos, conhece mais de uma pessoa que julga ser normal, mas que de alguma forma, sem você saber, abusa de crianças. Ou seja, há muita procura por isso. Os números não mentem: há uma demanda enorme por esse tipo de conteúdo. Ninguém faz, mas quem promove isso tem milhões de seguidores e visualizações… o que significa que esse conteúdo movimenta muito dinheiro.

E se movimenta muito dinheiro, das mais diferentes formas, podem ter certeza de que nenhuma empresa e nenhum governo corrupto vão permitir que essa fonte de renda lhes seja tirada. As empresas inclusive vão largar dinheiro nas mãos do governo por debaixo dos panos para que possam continuar explorando esse nicho. Todos vão continuar fazendo o que fazem: fingir que estão tomando providências com regras, leis e medidas que sabem que não vão funcionar.

Por cima de tudo isso ainda temos pessoas monotemáticas com a ladainha de regular redes sociais. Meus queridos, a maior parte dos abusos acontece dentro da casa da criança! Pelo pai, pelo padrasto, pelo avô, por um amigo da família. Redes sociais não são a causa! Acontece e acontecia sem rede social. Rede social só mostra o que estava escondido.

Que tal ir ao cerne do problema em vez de ficar culpando redes sociais? O brasileiro (educar, civilizar) e os pais (obrigar a não expor os filhos). Ah mais isso ninguém quer, pois se você responsabiliza as pessoas, elas não gostam, elas se chateiam, elas se ofendem e a pessoa que fez isso perde votos.

Tem uma frase muito boa que se aplica a essa situação: “para que as coisas continuem como estão, é preciso que mudemos”. É justamente isso que fazem com o povo. Para que sexualização e abuso de criança continue rendendo fortunas, é preciso que algo mude e os envolvidos finjam que se importam e que estão tentando fazer algo a respeito. Como em todos os outros casos que explodiram, em duas semanas o povo vai esquecer, pois vai achar que Papai Estado vai criar uma lei para solucionar tudo. Resolver de verdade ninguém quer.

O primeiro passo seria o brasileiro entender o tamanho do problema, entender o tamanho da precariedade do povo. Não apenas do pobre ou do sem instrução, do povo. Tem rico fazendo isso, tem político fazendo isso, tem empresário fazendo isso.

Mas, cada vez que a gente tenta falar, o brasileiro fica na defensiva: “problema todo lugar tem” e “ain mas também temos muitas coisas boas”. Não reconhecer o problema (ou a dimensão do problema) é a maior garantia da manutenção do problema. Brasileiro, na média, não aceita críticas sem ficar na defensiva, sem se incomodar, sem se ofender. E enquanto continuar assim, não vai melhorar.

Dados oficiais (que conste, muito inferiores aos dados reais, por motivos que já explicamos) mostram que no Brasil mais de dez crianças são vítimas desse tipo de violência por hora. POR HORA. Se você acha que em todo país é assim, você está fora da realidade. Não é assim. E quanto antes cair essa ficha, antes você consegue dimensionar o quanto seu filho precisa de proteção e pensar em soluções realísticas para o problema.

Por enquanto, o que a gente vê é que ninguém quer discutir ou resolver. O povo por estar em negação da seriedade da questão e por insistir em evadir sua privacidade em troca de ganhos secundários. O governo e as empresas por um lucro violentíssimo que obtém disso.

Depois ficam “ain o brasileiro tem mais é que se foder, olha as escolhas que faz”. Que tipo de saúde mental, desenvolvimento e cognição pode ter um povo que é abusado dessa e de muitas outras formas na infância? Não tem como criar um adulto saudável, um povo saudável, uma sociedade saudável nesse contexto.

Não tem como um país melhorar se seu cidadão já começa a vida dessa forma, não importa o que um governo faça.

Comecem a entender a dimensão do problema sem relativizar ou mitigar, só assim soluções condizentes podem começar a surgir.

SOMIR

Quando os holofotes apontaram para Hytalo (eu prenderia só por causa do nome), o grande público parece ter ficado chocado com os conteúdos publicados por ele e sua trupe de menores. Mas tem algo que me chamou muito mais atenção: os milhões e milhões de seguidores que tinha em suas contas de rede social.

E é curioso como esse ponto não ganhou tanta atenção assim. Mesmo sabendo que influenciador quase sempre tem muito mais bot que seguidor de verdade, os números continuam sendo impressionantes. Algumas milhões de pessoas de verdade acompanhavam o que ele postava. A demanda existe, e existe em grandes números.

Minha teoria é que a mídia e boa parte da discussão sobre o tema pularam essa parte porque é algo incômodo: incômodo admitir que esse conteúdo é muito desejado pelo brasileiro e incômodo por causa da zona cinza entre sexualização de crianças e sexualização de adolescentes quase adultos.

Toda essa indústria exposta recentemente se baseia em não dar bandeira demais. Os perfis de crianças gerenciados profissionalmente tentam manter uma aura de inocência e espontaneidade para não chamar atenção para sexualização e abusos “trabalhistas” cometidos contra suas estrelas. Já os perfis de adolescentes gerenciados por eles mesmos ou por terceiros ficam num limite tecnicamente antes do conteúdo erótico/pornográfico, jogando com a ideia de que esfregar a bunda numa câmera de celular faz parte da cultura online brasileira. E não nos enganemos… faz sim.

Perfis como o de Hytalo e sua trupe conseguiam ficar escondidos à plena vista porque para a maioria dos brasileiros em seu estado natural, não tem nada tão chocante assim em sexualizar adolescentes. Desde, é claro, que esse brasileiro não tenha que dizer isso em voz alta. Se você colocar um microfone na frente da maioria das pessoas, a idade de consentimento deveria ser de 40 anos! Então, é claro que a opinião pública pareceu escandalizada.

Mas os milhões de seguidores estavam lá o tempo todo. E até quem não era fã e sabia que acontecia não parecia realmente preocupado com isso. É nessa dissonância entre o que o povo faz e o povo diz que faz que mora o problema abordado aqui. É claro que temos problemas sociais sérios com a tal da “adultização” de crianças e adolescentes: na hora de pedir ação do poder público e dar opinião o povo é extremamente conservador, na hora de lidar com crianças e adolescentes, é extremamente liberal.

E aí ninguém sabe como agir.

Numa sociedade que age de forma conservadora, como o brasileiro diz que é, o povo se regula de forma a suprimir sexualidade de jovens mesmo que não existam leis. Se vai ficar no pé de todo mundo menor de idade para “andarem na linha”, até faz sentido essa visão cristã de manter o jovem ignorante sobre o tema. Aí tem lógica interna dar chilique porque a escola quer ensinar como funciona o sistema reprodutor da criança. A escolha é por mantê-los no escuro e suprimir qualquer comportamento nesse sentido.

Numa sociedade que age de forma liberal, como o brasileiro realmente é, a liberdade dada aos jovens de explorar sua sexualidade necessariamente tem que vir com educação. Se a menina de 14 anos já está fazendo sexo, que ela saiba muito bem como não engravidar, como se proteger de doenças, e até mesmo como lidar com a carga emocional relacionada com o sexo. E para ela saber disso aos 14, tem que começar a conversar com ela sobre o tema bem antes.

Agora, o país acaba se organizando de forma a pressionar o jovem a lidar com sexo muito cedo ao mesmo tempo que trava uma cruzada contra ele aprender sobre o tema, ou mesmo poder conversar francamente sobre o que sente. É contraproducente em todos os sentidos. Não é à toa que o perfil do influencer fez tremendo sucesso enquanto as pessoas podiam fingir que não estavam vendo: ele estava entregando o conteúdo que o povo realmente queria ver, só não queria que soubessem que estavam vendo.

E isso vai muito além de sexo, o conceito de adultização explorado no vídeo também englobava a forma como crianças e adolescentes são jogados em elementos da vida adulta sem preparo. O que é mais uma das confusões do povo sobre o que realmente quer do jovem: o que não falta por aí é gente que não valoriza estudo ou qualquer tipo de preparo para tocar a vida; mas novamente, se colocar um microfone na frente, a maioria vai te dizer como é importante a criança estudar e como o governo não se interessa por isso.

Uma sociedade que quer preparar seus jovens tem que investir neles e esperar chegarem os resultados. Ou você pressiona essa pessoa em desenvolvimento a valorizar dinheiro e status acima de tudo, ou você deixa o ensino fazer seu trabalho. E a parte da sexualização de novo se mistura aqui: o que aquelas jovens fazem na frente da câmera é uma profissão, e quase sempre uma das únicas que são habilitadas para seguir.

Você consegue imaginar uma adolescente passando dias fora de casa com um estranho numa família minimamente estruturada? Podem até ser super liberais com sexualidade, mas é sobre o cuidado de manter essa pessoa em formação por perto, longe dos perigos da vida e próxima o suficiente para continuar aprendendo o que eles julgam correto.

Muitos desses jovens explorados estão fazendo a única coisa que conseguem. É precariedade que vem muito antes de rebolar de forma sugestiva na rede social. Podem derrubar o perfil desse influenciador, mas tem oferta de jovens sem mais nenhuma opção clara e demanda de um povo que quer consumir a juventude deles. Enquanto existir mercado, vai ter produto e vendedor.

Eu realmente acho que o Brasil precisa escolher um caminho, eu voto no caminho liberal, porque é melhor corrigir abusos de liberdade do que ficar preso num sistema autoritário engessado. Mas honestamente? Se pelo menos esse povo resolvesse bancar seu discurso “para deus ver” e decidisse agir no cotidiano como um povo conservador, seria melhor do que essa bagunça.

É um sistema feito para falhar com crianças e adolescentes. E adivinha só, aconteceu justamente isso.

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