Sísifo moderno.
| Desfavor | Ele disse, Ela disse | 16 comentários em Sísifo moderno.
Começa a Semana de Sísifo aqui na República Impopular do Desfavor, onde celebramos a futilidade da existência. Para começar, Sally e Somir discutem sobre quais as pedras que empurramos morro acima só para vê-las rolar de volta da vida cotidiana. Os impopulares se esforçam… mesmo que não faça muita diferença.
Tema de hoje: qual é ao grande desafio do Sísifo moderno?
SOMIR
Manter-se informado. Saber o que acontece no mundo ao seu redor deixou de ser um bônus para conversas mais interessantes e virou uma falsa obrigação que na maioria dos casos só serve para gerar ansiedade.
E é importante separar informação de educação. As duas coisas estão relacionadas, mas existe uma clara diferença entre aprender algo que pode ser aplicado posteriormente e saber o que aconteceu no reality show na noite anterior. Informação por informação não significa muita coisa na nossa vida.
Informação pode ser apenas fofoca, funciona como cola social desde sempre. Em tempos pré-internet, uma das funções de socializar era compartilhar informações, hoje, com a enxurrada de informações disponíveis para a maioria de nós, a coisa descambou mais para o lado de dar opiniões sobre as informações que todos receberam.
E sim, existem níveis seguros de consumo dessa substância. Não quero vir com papo furado de que você só pode conversar sobre temas acadêmicos complexos, falar sobre outras pessoas sem o objetivo de aprender algo importante ou evoluir o pensamento é natural e tem suas vantagens evolutivas. Nos aproxima.
O ponto aqui é que, curiosamente, o excesso de informação gerado pela internet reduz a quantidade de novidades que conversar com outros pode te oferecer. Já percebeu que suas conversas não são mais tão focadas em contar algo novo para outras pessoas? Se você é de gerações mais recentes, provavelmente nem sabe do que eu estou falando. Historicamente, conversar com outra pessoa te abria um leque de novas informações (mesmo que erradas); mas hoje é mais sobre confirmação de conhecimento compartilhado.
Nos julgamos mais por opiniões porque opiniões são o que restou de contraste. E provavelmente sem perceber, começamos a ter essa expectativa do outro: que o outro tenha recebido a mesma informação e já tenha sua opinião pronta para compartilhar. É isso que vai criando o pedregulho diante de nós.
Se a informação for mero veículo para opinião, ela se torna descartável. Eu me sinto cada vez mais alienígena quando falo com alguém e começo a discutir a confiabilidade da informação. O esforço de acumular e processar informações é válido se você for capaz de entender o que está acontecendo e transformar isso em conhecimento aplicável no futuro. Se for só uma desculpa para trocar opiniões, você carrega a pedra morro acima só para ter que começar tudo de novo no próximo ciclo de notícias.
Adianta ter opinião forte sobre a polêmica da semana se na que vier logo depois você vai ter uma incompatível? O que a pessoa aprendeu com a informação anterior? Nada. É só um esforço de socialização que não fixa conhecimento nem modifica a visão de mundo. A pessoa se informa superficialmente para criar pontos de conexão com outras pessoas. Justo querer se conectar, mas o esforço não constrói nada além de conforto momentâneo de estar “por dentro” do tema da conversa.
Cada polêmica da semana desemboca em inúmeros temas complexos que quase ninguém quer lidar. É uma crítica constante aqui: a sociedade fica toda chocada e a resposta acaba sendo uma lei aleatória que só lida com os sintomas. É por isso que eu falo sobre como se informar vira uma tarefa inútil, você está apenas correndo atrás de uma adequação momentânea às expectativas dos outros, mas não gera nenhum avanço real na mente.
Se você está se mantendo informado e sua opinião sobre as coisas se mantém consistente depois de anos… sinto te dizer que tem algo errado. Não é realista acreditar que você já sabia como lidar com tudo desde o começo, que já tinha a “ideia certa” sobre o mundo. Informação é mesmo uma coisa perigosa se for bem absorvida, porque ela vai ficar erodindo suas certezas sem parar.
Muito se engana que resolve só escolher boas fontes de informação, porque uma parte da realidade está naquelas que são ruins. Relógios quebrados acertam a hora duas vezes por dia. Se você ficar correndo atrás da informação o tempo todo, nunca para o tempo suficiente para pensar nela. O que passa por estar informado hoje em dia não é exatamente ter uma visão de mundo mais educada, é saber o que “precisa” virar opinião na relação com outras pessoas.
Num mundo onde todos se dizem muito mais engajados, a verdade é que estar informado acaba sendo muito mais sobre passar a ilusão de compreensão das coisas do que realmente pensar sobre o assunto. A ilusão é suficiente para trocar opiniões, se ninguém vai te questionar sobre fontes e conexões entre dados, não passa de ser um papagaio de jornal ou de influencer. Parece uma conversa complexa, mas na verdade é só imitação.
Eu entendo as escolhas da Sally como tarefas repetitivas necessárias. Ênfase no necessárias. O esforço da manutenção é grande, mas ele constrói alguma coisa. Qualidade de vida real. Saúde, estética, organização… tudo isso soma e vira alguma coisa que vai ser útil. Informação no padrão atual de rolar um feed de rede social para saber do que as pessoas estão falando não constrói nada, porque mesmo as relações que você mantém por causa disso são muito superficiais: se você disser alguma coisa que vá contra as opiniões vazias do grupo, vira pária.
E além de tudo, você sai dessa tsunami de notícias e opiniões sem um entendimento básico sobre o que está sendo discutido. Quando acontecer a próxima polêmica da semana, não faz diferença o que você disse na anterior. O tema não avançou para uma compreensão maior, ele ficou travado naquele ponto porque era só uma desculpa para fingir conexão social imediata. Nem amigos você faz através disso, porque a mesma turma que bate palmas para sua opinião vazia hoje te cancela amanhã se você colocar suas crenças em dúvida.
Manter-se informado não é igual a aprender.
SALLY
Dando início a nossa semana temática do Dia de Sísifo, começamos com a seguinte discussão: Qual é o grande desafio de Sísifo moderno?
Na minha opinião, é estar em dia com os cuidados necessários para uma vida digna e funcional. Cuidado com a casa, com a vida profissional, com a família, com a saúde, com a beleza, consigo mesmo. Não há mais tempo suficiente para suprir a carga de demandas que temos. É surreal.
Quando a casa era um fogão e uma geladeira, quando cuidado com a saúde era tomar vitamina C para não ficar gripado, quando o cuidado com os filhos era se certificar que eles votem da rua depois de 8h de brincadeiras, tudo era mais fácil. Hoje é um eterno dia de Sísifo, quando você finalmente completa tudo, a coisa recomeça no dia seguinte.
Tem que comer e, de preferência, minimamente saudável, se não, depois de uma idade, custa mais caro (em todos os sentidos) comer mal. Se você tem alguém que prepara suas refeições para você, saiba que você é muito privilegiado. Ter que decidir o prato, comprar ingredientes, limpar, descascar, preparar e depois lavar tudo é exaustivo. E é uma demanda constante.
Estar apresentável (veja bem, eu nem digo bonito, é apresentável mesmo) é outro eterno dia de Sísifo: limpar, hidratar e protetor solar é o básico do básico, mas ainda tem depilação, cabelo, unhas, roupas (comprar, lavar, estender, passar, guardar, combinar), sapatos e acessórios. Desodorante, perfume, escovar os dentes, manter o cabelo limpo e cheiroso e tantas outras tarefas se renovam todos os dias.
As obrigações que temos na casa também se multiplicaram de forma desproporcional. Antes o problema era uma eventual lâmpada queimada, pois as coisas eram feitas para durar. Hoje, na era da obsolência programada, do produto xing ling, tudo quebra. E às vezes ao mesmo tempo. Tudo dá problema. Desconto indevido do banco, conta que veio errada, internet parou de funcionar, acabou a água, geladeira pifou, cano estourou, celular foi roubado, duzentos login e senhas para lembrar.
E esse mundo mais complicado cria obrigações mais complicadas para com aqueles que dependem da gente ou que coabitam conosco. Eu comia cachorro-quente sem problema na infância. Hoje eu não sou capaz de oferecer à minha família um cachorro-quente como jantar, pois sei o quanto faz mal. Quando eu era pequena meu cachorro comia ração, hoje, nem como uma arma na cabeça eu dou ração para o meu cachorro, pois sei o quanto faz mal. E só de pensar na gincana que é controlar o que seu filho faz online eu fico cansada.
Antigamente, a comunicação era um telefonema rápido no telefone fixo (pois a ligação era cara). Hoje em dia nos acionam por e-mail, redes sociais, celular, telefone fixo e por onde mais conseguirem. É gente tentando falar conosco o dia inteiro. Família, trabalho, amigos, vizinhos… criou-se um modo de funcionar no qual é normal falar com a pessoa todo dia, várias vezes por dia.
E na vida profissional a coisa não fica mais fácil. O crescimento exponencial faz com que, o tempo todo, a gente tenha que aprender algo novo ou até reinventar o que faz, se não, fica para trás. A vida está sempre um passo à frente e nós temos que correr atrás. Por exemplo, se você acha que está moderníssimo usando IA para consultar informação, saiba que você vai ser tratorado. IA se usa para criar, para gerar algo novo e o bom usuário de IA tem a ideia sobre o que de novo e útil ela pode criar.
Tem que beber pelo menos dois litros de água por dia. Tem que comer fibras. Tem que socializar. Tem que checar se seus pais/filhos estão bem. Tem que passear com cachorro, pois a única coisa nessa vida que faz mais mal do que ração é cachorro não sair para passear, mesmo que viva em uma casa enorme. Tem que cultivar o hábito da leitura, pois ele gera benefícios (inclusive de concentração e cognição) que nenhum outro gera.
Tem que limpar a casa. Tem que trocar de travesseiro a cada seis meses, se não ele vira basicamente um amontoado de cocô de ácaro. Tem que limpar o filtro de água se não você bebe amebas. Tem que tirar o lixo. Tem que lembrar de levantar e fazer um intervalo a cada hora para não ter LER e hemorroidas. Tem que virar o colchão, se não ele deforma. Trocar toalha e roupa de cama toda a semana.
Tem que fazer supermercado. E hoje, fazer supermercado não é mais escolher entre Confort e Mon Bijou. Hoje é complexo. Tem que comparar preços e quantidades. Se for comida, tem que olhar o rótulo, ver a validade, ver se tem coisas que fazem mal. Não é só escolher entre Neve e Fofo, tem que ver se a porra do papel higiênico tem folha dupla, pois com a reduflação, os de folha simples rasgam só de olhar.
E tem que cuidar da saúde mental. Tem que descansar a mente. Meditar. Acalmar a mente, mesmo com essa infinidade de coisas para fazer. Tem que estar presente, viver o momento. Tem que controlar a ansiedade, treinar sua mente para ficar no agora. Respirar fundo, de preferência respiração diafragmática, enchendo a barriga de ar, não aquela respiração curta enchendo o peito de ar, pois faz mal.
Tem que pagar os boletos, pagar as contas, pagar as despesas e conferir se tudo veio certo e se o boleto é real mesmo ou é golpe. E conferir o extrato bancário, para ver se não fizeram um desconto indevido. E conferir o valor da gasolina, do condomínio, do plano de saúde, da academia, da mensalidade do streaming e de basicamente tudo que te cobrem.
Rastrear encomenda, pois se a compra não chegar, tem que reclamar. Lembrar de aniversário de amigos que se ofendem se você esquece a data. Se você tiver azar e tiver casado mal, tem que lembrar de aniversário de casamento e mais não sei quantas outras datas comemorativas. Dia do pais, dia das mães, dia da criança, dia do caralho a quatro. Páscoa, Natal, Carnaval. O ano todo um inferno de datas e feriados que te tomam tempo e criam obrigações.
E tem o lazer, se não por você, pela pressão das pessoas que te cercam. Vai deixar os filhos trancados em casa nas férias? Não vai fazer nada com a esposa? Se fodeu. Viagem, cinema, jantar, bar, festa e o que mais for. E não implica apenas em estar lá, presente, fisicamente. Implica em socializar, em se arrumar. Roupa, sapato, maquiagem. Preparativos, deslocamento.
Fora que, para se manter minimamente saudável uma pessoa precisa, além de fazer tudo isso, se exercitar por, no mínimo uma hora, três ou quatro vezes na semana e dormir, em média, oito horas de sono de qualidade e seguidas por noite. Além disso, tem que fazer ao menos quatro refeições saudáveis por dia e cuidar da sua saúde com checkup anual de clínico geral, oftalmo e ginecologista (se for mulher).
E no minuto e que você acaba cada uma dessas tarefas, começa a contar o cronômetro para seu tempo de expiração, quando você terá que repeti-las. Desculpa, mas dá para viver não estando muito bem informado, se você tiver bons curadores de conteúdo (como nós), mas a louça, meus amigos, não vai se lavar sozinha.
Sally, tbm tenho interesse na dieta BARF…faz um texto? Plisss?
Bom, na minha atual condição fico com o Somir, “informações”: a nova droga/dependência parece que a maioria das pessoas estão adictas :(
Por favor, escreva, Sally…
Acho que o texto da Sally dá pra ser resumido em: cansei da vida adulta, é difícil demais ser adulto. Entendo bem isso, viu? Assim como muitos, imagino eu.
Comecei a ler a parte da Sally e me veio à mente o vídeoclipe da Madonna (“Ray of Light”).
Deixamos de ser homo sapiens para sermos homo faber.
Provavelmente a maioria dos leitores homens vai escolher o ponto de vista do Somir, enquanto nós, mulheres, nos vemos direitinho na descrição da Sally…
Geralmente mulher faz muito mais coisa do que homem, por isso estamos muito mais sobrecarregadas do que eles
Eu comecei a filtrar um pouco as notícias que leio e a frequência com que as leio. Notícias ruins geram mais engajamento e mais estresse, mas a maioria não vale a ansiedade que causa.
Uma sensação de Sísifo que acredito ser comum a nós mulheres é a de que todos os produtos essenciais acabam ao mesmo tempo. Protetor solar, hidratante, aquele leave-in caríssimo que recuperou seu cabelo… parece que criam vida e combinam de acabar juntos no dia em que você tem menos dinheiro. Fora os produtos de maquiagem, que a gente pode até ficar sem por alguns dias, mas acabam na pior hora. Eu nunca me maquiei tão rápido quanto quando fiquei sem corretivo horas antes de uma entrevista de emprego, bem quando tinha uma mancha enorme de espinha cicatrizando. Agora tenho uma planilha mental de produtos que estão acabando, e em algum momento vou fazê-la no BI!
Essa planilha mental eu passei para o papel, pois descobri que me toma muito da disponibilidade emocional, de memória e de produtividade. Se você é jovem, não vai te afetar, mas se passou dos 40, considera passar ela para o papel…
“Eu comecei a filtrar um pouco as notícias que leio e a frequência com que as leio. Notícias ruins geram mais engajamento e mais estresse, mas a maioria não vale a ansiedade que causa.”
Faz muito bem, Paula. E eu concordo com você.
Estou com a Sally. Agora acrescente escala 6×1 e você fica à beira de enlouquecer todo dia. Trabalhar 8 horas, pegar trânsito, chegar em casa e tem várias coisas pra fazer, hora de dormir chegando, o tempo livre é uma contagem regressiva pra começar tudo de novo no dia seguinte. É muito difícil me dedicar ao meu hobby ou aprimoramento pessoal, mas por enquanto não posso mudar de emprego.
PS.: Como assim ração faz mal pra cachorros? O que eles comem então?
Comida natural, obviamente, pensada para as necessidades do cão.
O meu faz dieta BARF, que se propõe a dar o mesmo tipo de alimento que um cão comeria na natureza, quando ainda não era domesticado. Desde que começou essa dieta, todos os problemas de saúde desapareceram (e algumas eram consideradas irreversíveis). Anos sem ir ao veterinário, só para dar vacina.
Muito interessante! Vou lembrar disso quando eu puder ter cachorros num futuro distante, é meu sonho
Super recomendo a dieta BARF para cães e gatos
Entendo o ponto de vista da Sally, de termos que nos desdobrar ciclicamente em múltiplas frentes tentando dar conta das cada vez maiores demandas de nossas vidas só para recomeçar tudo de novo no dia seguinte, mas eu fico com o Somir nessa. Nesta nossa atual “era da informação”, com uma enxurrada initerrupta de coisas nos sendo jogadas na cara e clamando pela nossa atenção, é importantíssimo:
1 – saber filtrar o que nos chega, para não perder tempo com inutilidades e não surtar
2 – conseguir diferenciar fato de opinião, para não repetir besteiras e conseguir pensar coma própria cabeça
3 – ter algum grau de educação/conhecimento prévio, para saber o que fazer com tanta informação
Isso de ter tanta gente se metendo a dar pitaco o tempo todo sobre tudo o que acontece, ainda que sem ter a devida bagagem intelectual para fazer as três coisas que mencionei acima é preocupante (porque evidencia como tem cada vez mais tapados neste mundo), cansativo (é sempre a mesma coisa maçante e repetitiva ) e infrutífero (ninguém aprende nada e a sociedade não anda para frente).
Mas para isso você pode escolher bons produtores de conteúdo, nos quais confie, que resumam ou selecionem a informação para você.
Para lavar sua louça e sua roupa não tem ninguém.
Concordo, W.O.J. E eu também já estou com o meu saco bem saco cheio de palpiteiros…