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Cabeças doentes.

Cabeças doentes.

| Desfavor | | 4 comentários em Cabeças doentes.

O governo do presidente Donald Trump (republicano) lançou na 2ª feira (22.set.2025) uma campanha de combate à alta de diagnósticos de autismo nos Estados Unidos. A 1ª diretriz anunciada foi a contraindicação do Tylenol –que tem como ingrediente ativo o paracetamol– para gestantes. LINK


Não só foi um show de horrores de desinformação, como a reação do público ainda conseguiu piorar a situação. Desfavor da Semana.

SALLY

Queria muito entender por qual motivo quando um lado se porta de forma vergonhosa, ridícula e patética, o outro faz questão de se rebaixar e se igualar a ele. Será que ninguém consegue mais manter a sensatez, a maturidade e a dignidade?

Pessoas que são notoriamente conhecidas por serem idiotas em matéria de medicina e ciência disseram que fazer uso do medicamento Tylenol (Paracetamol) durante a gestação aumenta a probabilidade de a criança nascer com autismo. Isso, meus amigos, é de uma imbecilidade sem precedentes. É a versão moderna do “vacinas causam autismo”.

Se fosse só burrice, até passava. Mas é método. Trataram de empurrar outro remédio, sem qualquer eficiência, para tratar autismo e estão incentivando usar outros remédios para dor, claramente com interesses pessoais.

É curioso como esse público de negacionistas científicos, que vê em vacinas (exaustivamente testadas e aprovadas) um golpe da indústria farmacêutica para conseguir dinheiro, não vê nenhuma sombra de golpe em boicotar um remédio e promover outro sem evidências científicas válidas.

Se a vergonha fosse unilateral, nem seria tema desta coluna, pois rotineiro. Mas não. O outro lado, vendo o vexame, ficou com inveja e quis fazer pior.

Começaram a aparecer vídeos em redes sociais de pessoas tomando Tylenol, algumas em uma quantidade preocupante, para “provar” para o Trump que Tylenol não faz mal. Não sei nem por onde começar.

E tem vários problemas aqui. O primeiro e mais gritante é dar tamanha importância a alguém que você detesta. Imagina se dar ao trabalho de fazer um vídeo para antagonizar com o Trump e ainda ter orgulho disso. É descer ao chiqueiro para brigar com o porco e achar que está mandando muito bem!

Trump falou em gestantes, mas isso não impediu que todo mundo, se entupisse de Tylenol. Inclusive homens. O que caralhos você pretende provar ou contestar tomando um monte de Tylenol, meu anjo? Nada, né? Só quer aparecer mesmo. Olha lá o rebeldão, tomando Tylenol!

Outro problema é que nenhuma pessoa, grávida ou não, deve ingerir grandes quantidades de Tylenol ou até mesmo UM Tylenol de forma desnecessária, pois é um remédio que pode fazer mal ao fígado. Eu vi infeliz tomando 5, 10 comprimidos de uma vez. Virando pote de Tylenol na boca.

Isso é ser tão negacionista científico como o Trump, pois mostra que você não tem a menor ideia de como remédio funciona. Remédio não é bala, não é inofensivo. Tão burros quanto o outro lado, com o agravante dessa superioridade moral que acham que tem. A elite intelectual tomando 10 comprimidos de Tylenol: Idiocracy já foi um filme de comédia, hoje, é documentário.

E como a imbecilidade sempre escala quanto tem tanta gente empenhada em prestigiá-la, analfabetos funcionais resgataram uma postagem da conta oficial da Tylenol de oito anos atrás na qual o fabricante dizia que não recomenda o uso em gestantes e usaram isso como “prova” de que o Trump tinha razão.

Para começo de conversa, não recomendar o uso em gestantes não quer dizer que cause autismo no bebê. Pode causar um mal à gestante mesmo. E depois, a maior parte dos remédios faz esse aviso, para se resguardar: pessoas são idiotas, como bem podemos ver. Pessoas tomam remédio de forma indiscriminada. O fabricante tira o dele da reta. O obstetra, se quiser, por sua conta e risco, que prescreva.

Se você conversar com qualquer médico obstetra ele vai te confirmar que, entre todas as opções de remédios para a dor, o Tylenol é o mais seguro para gestantes. É 100% seguro? Não, pois nenhum remédio é 100% seguro para gestantes, o ideal é que grávida não tome remédio. Mas, precisando tomar, Tylenol costuma ser o mais indicado. Porém, sempre prescrito pelo médico, gestante não pode tomar remédio algum por conta própria.

Alguns imbecilóides (inclusive mulheres grávidas) que tomaram grandes quantidades de Tylenol foram parar no hospital, por uma questão hepática mesmo. E isso bastou para o pessoal do Trump berrar que eles tinham razão, ainda que a causa da hospitalização fosse uma superdosagem e sem qualquer relação a problemas com o bebê. Os imbecilóides que queriam desmentir o Trump, deram ainda mais munição para ele e seus malucos. É cansativo, sabe?

Por sua vez, esses pequenos indícios desconexos como o post da marca oito anos atrás e os idiotas que se intoxicaram com superdosagem, fez com que a coisa se espalhe de uma forma que virou pós-verdade, e quando isso acontece, os efeitos nocivos se propagam no tempo.

Nos próximos anos veremos gestante socando ibuprofeno ou, no Brasil, dipirona, ambos menos indicados, ambos com chances de causar problemas. Vamos ver mamães e bebês com problemas por não querer tomar Tylenol para não ter problemas.

Para culminar, vemos gente usando esse enorme esmerdeio para panfletar, colocando a culpa de tudo isso no fato do Trump ter sido eleito, como se esse povo maluco dele não fosse acreditar em qualquer merda, independente de cargo. Nunca houve (até onde se sabe) um Presidente terraplanista e o mundo está cheio deles. A culpa não é do cargo, é do ser humano.

Resumo dessa brincadeira:

1) Não há evidências científicas de que Tylenol cause autismo, mas há evidências do Trump e sua turma tenham ganhos por boicotar o Tylenol.
2) Não há benefícios de que o remédio indicado pelo Trump (me recuso até a divulgar o nome) trate de alguma forma o autismo.
3) Ninguém pode tomar Tylenol indiscriminadamente, pois, entre outras coisas, faz muito mal ao seu fígado.
4) Gestante não pode tomar NENHUM MEDICAMENTO sem autorização expressa do SEU médico. Não de “um” médico, mas do SEU médico que a acompanha e conhece seu histórico.
5) Nada, ninguém ou nenhuma evidência vai tirar da cabeça das pessoas que Tylenol causa autismo, está consolidado como pós-verdade.

O ser humano, meus amigos, é uma merda.

Meteoro, eu autorizo.

SOMIR

Minha primeira reação ao anúncio nem foi ficar chocado com as bobagens que Trump, RFK Jr. e companhia disseram, foi uma espécie de resignação com a era da pós-verdade: eu sei que décadas no futuro vai ter gente repetindo que ouviu falar que esse remédio “deixa a pessoa autista”. Não vai saber nem de onde veio, só vai ficar com uma daquelas informações que vai se enfiando na mente das pessoas e começa a ser repetido sem nenhuma crítica.

Porque o ser humano médio, eu e você incluídos, não sabe muito mais do que sabe. Desde que começamos a falar, trocamos informações que ouvimos falar, é natural e em média ajudou mais que atrapalhou na nossa evolução. Só que uma coisa é falar sobre que tipo de planta pode comer e onde tem predadores, outra completamente diferente é trocar informações científicas complexas.

A ideia de “bom senso” funciona com o básico da vida. Se o número de ovelhas na sua fazenda começar a diminuir rapidamente, é bom senso presumir que tem um predador por perto. Se muita gente começa a passar mal depois de comer o pão feito por uma padaria, é bom senso não ir mais lá. Mas quando você estica esse bom senso além das coisas que você realmente conhece, ele começa a dar problema.

Trump e todos os outros participantes daquele show de horrores repetiam sem parar como o número de autistas aumentou absurdamente nas últimas décadas. Eles mesmos usam bom senso como argumento. Se aumentou tanto, e os dados comprovam isso, tem alguma coisa deixando as pessoas autistas, não?

Mas será que o bom senso entende os detalhes dessa informação. Trump disse que “alguns anos atrás” tínhamos um autista a cada 10.000 pessoas; disse também que hoje é um autista a cada 31! Tem algo deixando as pessoas mais autistas, óbvio, e só pode ser algo que começamos a fazer pouco tempo atrás, certo?

Certo! Mas a lógica não é o que a maioria das pessoas espera. Até os anos 80, casos de autismo severo eram tratados como esquizofrenia. Poucos especialistas sequer pensavam nesse transtorno. Então, de fato, existem informações sobre os anos 60 com esse número de 1 a cada 10.000; e se você pegar os dados mais recentes, vai mesmo ver 1 a cada 30 e poucos.

Quando o autismo foi reconhecido pelo que realmente era, pessoas começaram a ser diagnosticadas, e é óbvio que o número aumentou. E com o passar das décadas, a definição de autismo começou a aumentar para abarcar muito mais do que aqueles casos graves de pessoas que ficam batendo a cabeça na parede. A ideia de espectro autista é super recente. Nenhum autista minimamente funcional na sociedade era diagnosticado.

Se você aumenta o tamanho do grupo de pessoas que pode ser chamada de autista, é óbvio que aumenta o número de autistas. Vi uma analogia excelente sobre isso: imagine que a definição de pessoa alta só contasse quem tivesse mais de 2 metros de altura. Teríamos poucas pessoas assim. E se mudássemos a ideia de pessoa alta para quem tem mais de 1,80m? De repente teríamos centenas de milhões de pessoas a mais nesse grupo. Não quer dizer que as pessoas ficaram mais altas da noite para o dia, quer dizer que o conceito de pessoa alta mudou para encaixar mais gente.

É a mesma coisa com o autismo. Primeiro ninguém estava diagnosticando, depois começaram a chamar de autistas só os casos mais graves, mais recentemente encontraram uma definição de autismo que inclui muito mais gente. Sim, o número de autistas aumentou, mas não porque as pessoas começaram a ficar autistas da noite para o dia.

No fundo, toda a conversa sobre o Tylenol era uma desculpa para empurrar aquele velho discurso antivacina, que também foi empurrado com força na mesma coletiva de imprensa. E os argumentos desse povo sempre passam por essa análise retardada sobre o aumento de autistas no mundo. Os casos de autismo só cresceram tanto quando todo mundo começou a ser vacinado, na cabecinha deles isso significa que só pode ser a “medicina moderna”.

Todos eles dizem que em sociedades onde as pessoas são menos vacinadas existe menos autismo, e falam disso porque eles vão veem pessoas autistas nesses lugares. Estudos reais feitos por cientistas com milhares (às vezes milhões) de pessoas demonstram que as pessoas continuam nascendo com autismo em todo tipo de sociedade. A prevalência de autistas não muda com uso de vacinas e remédios como o Tylenol. Eles acham que muda, ignoram estudos reais e pronto, vão para rede nacional dizer que sim.

Não é nem uma hipótese nova essa do Tylenol. Fizeram vários estudos, inclusive um na Suécia com mais de 2 milhões de crianças separando as mães pelos remédios que tomaram na gravidez. Não apareceu nenhuma relação. Os estudos que existem dizendo que pode ter relação – e que provavelmente foram usados por RFK Jr. para tomar essa decisão – não chegam a ter estudado 10.000 pessoas somados.

Isso foi tirado da bunda de uma forma incrível. E a minha putez é que como é muito mais fácil repetir essa baboseira do Tylenol e das vacinas do que entender a burrada incrível que é achar que o número de autistas está aumentando por qualquer motivo que não o número de diagnósticos, eu tenho certeza que vai virar “sabedoria popular” nos EUA e os macacos de imitação brasileiros vão fazer a caveira do Paracetamol até esse povo que mal sabe entender o que lê, quando lê, começar a repetir o comportamento e ensinar um para o outro que tomar vacina e remédio de febre faz a pessoa “virar autista”. Nem o Trump entendeu do que estava falando, ele estava basicamente dizendo para criança não tomar Tylenol para não ficar autista, e para tomar vacina de Hepatite B depois dos 12 para evitar… autismo!

Eles nem sabem o que é autismo. Acham que é uma gripe. E o assustador é que o povão pode acabar dizendo que confia mais no Trump do que nos médicos porque os médicos são as elites! O presidente dos fuckin’ EUA vai ser o rebelde antissistema para eles.

Eu não quero a morte de pessoas burras, eu só quero que elas não tenham cargos de poder. É pedir muito?

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